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Os desafios do ensino de Ciências nas escolas públicas

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escola pública
Foto: EBC/ABr

A falta de infraestrutura nas escolas públicas também é um grande desafio às autoridades e professores. Falta quase de tudo nessas escolas

Ensaio de Rosângela Trajano

Estudei a minha vida inteira na escola pública, e me lembro bem do meu ensino fundamental I e II numa escolinha pequenina do meu bairro que se dedicava a ensinar tão somente língua portuguesa e matemática de uma forma simples. Aprendíamos a soletrar as palavrinhas e a fazer continhas de somar e subtrair, as demais ficavam em terceiro plano.

Nos anos 70, já tínhamos um ensino público carente de recursos didáticos, com professores mal remunerados e sem condições financeiras de comprarem livros ou pagarem uma pós-graduação para se aperfeiçoarem. O ensino era precário demais. Até hoje tenho uma certa dificuldade com as ciências exatas, principalmente física e matemática.

Há, sim, muitas dificuldades nas escolas públicas para o ensino de Ciências às crianças, principalmente àquelas mais pobres e de periferias esquecidas das autoridades. Eu mesma nunca tive uma experiência de Ciências no ensino fundamental. Isso me desestimulou e me fez seguir a carreira literária, pois tinha o sonho de ser uma neurocientista já com sete anos de idade.

Uma das principais dificuldades de se ensinar Ciências às crianças pobres de escolas públicas é a falta de recursos financeiros, principalmente o investimento em laboratórios equipados com materiais práticos para experimentação que possam ajudar o aluno no seu ensino-aprendizagem. Também faltam materiais didáticos para o incentivo do estudo na escola e em casa, os professores não estão preparados para este tipo de ensino, não sabem quais ferramentas usar, como ensinar, quais metodologias e didáticas melhores devem ser utilizadas em um ou outro assunto que deve ser abordado.

Acredito que devia ser criada uma união de forças dos governos, das escolas e da sociedade civil para superar essas barreiras e levar às crianças pobres de escolas públicas o incentivo no estudo das Ciências. Sabemos das grandes dificuldades que a educação pública precisa vencer nas disciplinas de matemática e língua portuguesa, mas não podemos podar os sonhos dos nossos alunos como fizeram com os meus.

Na minha pequena escola sequer tinha uma biblioteca, imagine um laboratório de Ciências. As pequenas escolas dos municípios pequenos espalhados pelo Brasil e por onde tenho passado também não têm laboratórios de Ciências e os alunos aprendem apenas o que está ali no material didático desatualizado, mofado, com cupins ou páginas amareladas e com suas imagens cortadas para algum trabalho de artes que precisava delas. É triste saber que podíamos ter mais engenheiros, cientistas, astronautas e tantos outros profissionais das Ciências. Eis porque importamos tantos cientistas e nunca recebemos um Prêmio Nobel.

A falta de infraestrutura nas escolas públicas também é um grande desafio às autoridades e professores. Falta quase de tudo nessas escolas. Laboratórios improvisados, salas de aulas quentes e superlotadas, instalações precárias tornam difíceis o ensino desta disciplina e as coisas se complicam a cada ano que passa, pois por mais esforços que os professores façam não se pode fazer ciências sem material adequado, sem recursos financeiros para comprar o necessário para que os alunos possam fazer os seus experimentos.

A primeira vez que entrei em um laboratório de Ciências foi no ensino superior e fiquei maravilhada. Infelizmente quase explodi o laboratório com um experimento, mas foi coisa de quem fica admirado e espantado com tanta boniteza ao seu redor e quer experimentar de tudo ao mesmo tempo. De repente, me vi pensando nas crianças pobres do meu bairro que estudam numa escolinha pública perto da minha casa que nunca entraram em um laboratório daqueles.

As condições socioeconômicas das famílias dessas crianças também é um desafio para o ensino das Ciências. Elas não recebem em casa o apoio merecido, não são incentivadas a estudarem esta disciplina e delas é exigido apenas que saibam ler, escrever e fazer contas. Como seria bom que os nossos alunos soubessem fazer mesmo essas três coisas! Não passaríamos vergonha nos testes de educação internacionais e nem mesmo nos nacionais.

As Ciências é uma disciplina tão bonita e tão gratificante de ser ensinada e aprendida! Causa espanto e admiração mostrar às nossas crianças explicações científicas das coisas que acontecem ao nosso redor e mostrar-lhes que para tudo há uma resposta física. Não permitir que as crianças fiquem somente com o pensamento do senso comum, mas que experimentem e pratiquem novas teorias, novas hipóteses, novas práticas e levantem outras questões empíricas em relação às coisas que ainda não foram respondidas pelos atuais cientistas.

O ensino de Ciências é necessário e preciso para todas as crianças. Falo aqui da criança pobre na escola pública, mas me volto para o ensino no geral. Não me detenho ao ensino privado porque sei que neste sempre há um espaço dedicado para as ciências mesmo que seus laboratórios sejam pequenos, porque os materiais para equipá-los são caros por demais. Imagine se um familiar vai deixar de presentear seu filho com um bom tênis esportivo para comprar um microscópio? Ele não tem cultura para fazer isso e nem a criança sabe o valor de um aparelho como este.

Os livros didáticos não condizem com a vivência da criança pobre e trazem sempre atividades que fogem do seu cotidiano não despertando o interesse para o estudo da disciplina de Ciências. Muitas vezes a atividade solicitada não traz um estímulo, uma reflexão, um espanto e passa despercebida pela criança que sente fome e calor numa sala de aula onde o barulho e a indisciplina reinam porque o professor não consegue ter domínio da turma grande demais.

É preciso capacitar os professores para ensinarem Ciências de uma maneira que cause espanto e admiração nos alunos. O apoio das autoridades, a ampliação de políticas públicas educacionais maiores nessas escolinhas de municípios com poucos habitantes, mas com crianças que têm os mesmos sonhos das de cidades grandes.

Também um programa de formação continuada para os professores numa parceria com as universidades públicas seria muito bom, também. É essencial que a criança pobre tenha as mesmas oportunidades que a criança da escola privada, não diria que a criança rica, mas a que estuda nas melhores escolas. O ensino das Ciências é lindo porque ele explica o que apenas vemos acontecer no nosso cotidiano sem sabermos e nem darmos conta de que um acontecimento físico tem a sua explicação científica.

As crianças aprendem desde cedo a temerem as coisas do mundo, como dizem os seus avós. Contudo, elas precisam saber que este temor não é necessário, pois as Ciências explicam todos os fenômenos e acontecimentos da natureza e até de nós mesmos. Por muitos anos as crianças acreditam no que lhes contaram seus avós sobre as estações do ano, as marés, os eclipses, o fim do mundo, a morte sem darem conta de que para tudo isso existe uma explicação científica que pode sanar o medo.

Eu me lembro que uma vez no meu curso de filosofia o professor contou que o filósofo grego Tales de Mileto, quando criança, gostava de explicar os fenômenos da natureza para os seus familiares e amigos e que diziam ele viver no mundo da lua, quando na verdade ele estava certo em todos os seus experimentos científicos até descobrir na sua physis que a origem da vida estava na água para mais tarde ter a sua teoria revogada por outro filósofo. E assim são as Ciências, esta é a sua boniteza, ela está sempre em movimento como as águas do rio do filósofo Heráclito que dizia que não entramos no mesmo rio duas vezes.

Encontramos no documento da Base Nacional Comum Curricular – BNCC, uma proposta em espiral para o ensino das Ciências às crianças, ou seja, que os assuntos vão se aprofundando com o passar dos anos até se tornarem compreensivos à criança visando o seu desenvolvimento e maturidade. Não me parece coisa simples, mas é assim que está lá escrito. A minha pergunta é a seguinte para quem redigiu este documento: Como a criança vai criar maturidade e desenvolver habilidades naquilo que nunca experimentou? Num ensino que fica muitas vezes na teoria e que quase sempre é deixado de lado para dar lugar ao ensino da escrita, leitura e aprendizagem das quatro operações matemáticas.

No documento da BNCC faz-se referência a assuntos como atmosferas, sustentabilidade, biodiversidade, ecossistemas etc., quando a maioria das crianças do fundamental I e II nunca tiveram acesso a essas palavras que acham estranhas e difíceis de serem pronunciadas imaginem explicar o que elas querem dizer.

Nas feiras de Ciências que algumas escolas públicas de ensino fundamental I e II ainda insistem em fazer por exigência das secretarias de educação dos municípios as crianças reproduzem com a ajuda de maquetes criadas pelos professores de artes um ensino teórico repetitivo e cansativo que nada diz e nada explica na verdade.

Eu mesma já presenciei isso em várias feiras de ciências que visitei nas escolas públicas do Brasil. As crianças apresentando felizes as suas maquetes e com uma cola da explicação científica nas mãos, sem saber na verdade o que está por trás do experimento que aquela maquete quer representar.

Não vemos uma escola pública fazer rifas ou balaios juninos para aquisição de livros de Ciências ou para compra de materiais para um laboratório. Infelizmente, somos o país de pouquíssimos astronautas, talvez dois apenas viajaram pelo espaço até hoje, são eles os senhores Marcos Pontes e Victor Correa Hespanha, que não fizeram nenhum esforço para mudar essa história das Ciências nas escolas públicas. Espero que ainda haja tempo do senhor Marcos Pontes, senador pelo Estado de São Paulo rever os seus conceitos de Ciências na educação brasileira.

Desde 2016, no dia 11 de fevereiro comemora-se o Dia Internacional das Meninas e Mulheres na Ciência. A data foi definida pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2015, com o objetivo de aumentar a conscientização sobre a presença e a excelência das mulheres na ciência. Segundo dados da Unesco, as mulheres representam 33,3% de todos os pesquisadores no mundo e apenas 12% delas são membros de academias científicas nacionais. Ao olhar para áreas de tecnologia e inovação a presença de pesquisadoras cai ainda mais: elas são apenas uma em cada cinco profissionais. A fonte destes dados é do Jornal UNESP, datado de 10 de fevereiro de 2023 com o seguinte título “A ciência precisa de mais mulheres”. É isso que vemos no Brasil, o patriarcado ditando o lugar da mulher como sempre.

Se é difícil para os homens conseguirem a formação de astronautas num país que não investe em projetos de exploração espacial como o nosso, imagine as mulheres que nas escolas aprendem mal aprendem a ler e a escrever e já se tornam mães aos 13 ou 15 anos incompletos. Sendo que 73% dessas mulheres são negras, ou seja, o racismo se fazendo presente mais uma vez tirando as chances das nossas meninas conquistarem os seus sonhos da formação acadêmica que poderia proporcionar-lhes uma vida melhor.

Assim sendo, é um esforço coletivo e coordenado de diversos segmentos da sociedade o reconhecimento e valorização do ensino das Ciências nas escolas públicas onde estão a grande maioria das crianças pobres deste país. Começando pelas autoridades educacionais até a escola em si. Não é tarefa das mais fáceis, mas quem sabe possamos formar um outro Newton ou Einstein pelo sertão ou cerrado brasileiros.

Portanto, o desafio do ensino de Ciências às crianças pobres das escolas públicas do nosso país é grande por demais.

É preciso um esforço conjunto para compra de material didático escasso nestas escolas, construção de laboratórios equipados com bons materiais e a capacitação continuada dos professores despertando neles o interesse pelo ensino-aprendizagem aos seus alunos.

Para finalizar de verdade, trago o poema “Acima da verdade” do heterônimo Ricardo Reis criado pelo poeta português Fernando Pessoa que nos diz “Acima da verdade estão os deuses. / A nossa ciência é uma falhada cópia / Da certeza com que eles / Sabem que há o Universo…” Que a ciência seja para as crianças não uma falhada cópia, mas um espanto de uma maçã ao cair nas suas cabeças em plena manhã de outono despertando para uma nova teoria física, matemática ou outra ciência qualquer. Que as nossas meninas pretas, pardas ou de qualquer outra cor de pele possam subir ao espaço e pisarem na lua como pisamos no chão de terra seca do nosso sertão, porque elas também são deusas e podem tudo!

Rosângela Trajano, Articulista do EcoDebate, é poetisa, escritora, ilustradora, revisora, diagramadora, programadora de computadores e fotógrafa. Licenciada e bacharel em filosofia pela UFRN e mestra em literatura comparada também pela UFRN. É pesquisadora do CIMEEP – Centro Internacional e Multidisciplinar de Estudos Épicos. Com mais de 50 (cinquenta) livros publicados para crianças, ministra aulas de Filosofia para crianças na varanda da sua casa, de forma voluntária. Além disso, mora pertinho de um mangue aonde vai todas as manhãs receber inspiração para poetizar.

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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