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Artigo

Alguns pontos cegos da questão indígena, na atualidade

 

artigo de opinião

Por Ricardo Luiz da Silva Costai

1. O binômio Povo – Terra indígena.

Os povos indígenas, no Brasil, na condição de grupos social e culturalmente diferenciados, tem seus direitos assegurados de autoidentidade e autodeterminação, enquanto indivíduo e povo.

Isto é, trata-se de fundamento jurídico nacional em consonância com regras do direito internacional, por exemplo, a Convenção nº 169 da OIT/ONU 1, ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 143/2002, em relação ao trato jurídico das relações entre os Estados-Membros (países independentes) signatários da ONU, com esses de povos originários ou tribais que coabitam em seus territórios.

Porém, no que afeta a terra indígena, como bem da União, os direitos associados de propriedade nesse caso pertencem ao Estado brasileiro, com base no instituto jurídico da Nua-Propriedade 2; isto é, a Terra Indígena (TI) pertence à União (Nua-Proprietária); entretanto a mesma, reconhece e concede ao grupo indígena habitante da área considerada de ocupação e uso tradicional indígena, o direito à posse permanente e ao usufruto exclusivo (Usufrutuário) da terra e dos bens naturais nela existentes, em nível de solo.

Ressalvando que, tal condição é definida mediante a instauração do devido processo administrativo de regularização fundiária, fundamentado segundo critérios técnicos estabelecidos na forma da lei 3, que certifiquem o reconhecimento formal da ocupação e uso tradicional de determinada TI. E a instituição oficial que cuida desse processo, até que se mude o status quo da legislação atinente à matéria, é a instituição Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI).

Por isso, não dá para desvincular os assuntos relativos a povo indígena, sem considerar o papel institucional da Funai, de responsabilidade administrativa pelas TI’s, enquanto bens naturais pertencentes ao patrimônio da União. Assim, conforme registros da Funai, essas Áreas Protegidas, atualmente abarcam cerca de 13,75% do território brasileiro, correspondente a 736 Terras Indígenas (TI’s), em diferentes estágios de situação fundiária (em estudo, identificada, declarada, homologada, regularizada); sendo que, desse total, 64,81% encontram-se regularizadas 4.

2. A questão da tutela.

A Constituição Federal (CF/88), em plena vigência, no Capítulo VIII dedicado aos Índios, conforme seu artigo 232 5, representa um divisor de águas para a temática indígena no Brasil, e por extensão ao serviço indigenista brasileiro. Por isso, não soaria absurdo mencionar, dentro dum enfoque histórico, que, em tese, existem dois modos Funai a serem abordados. Um, antes e outro depois da CF/88.

Antes de 1988 todas as ações indigenistas do Estado brasileiro, em relação ao trato do binômio povo/terra indígena, eram concentradas no âmbito institucional da Funai, criada em 1967 no governo do general Costa e Silva. Lembrando que essa Fundação herdara o polo passivo do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que praticamente fundou a escola do indigenismo brasileiro, a partir de 1918 6, organizado sob a liderança de Cândido Mariano da Silva Rondon, mais conhecido como Marechal Rondon, figura histórica nacional reconhecido por grandes feitos como engenheiro, militar e sertanista brasileiro. O SPI foi extinto em 1967 e no lugar surgiu a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), hoje nominada Fundação Nacional dos Povos Indígenas, que manteve a sigla FUNAI.

Com o advento da CF de 1988, veio também o fim da tutela do Estado em relação ao indivíduo indígena, na forma instituída pela lei 6.001/1973, o Estatuto do Índio; porém, a nova ordem constitucional instituiu outro tipo de tutela, a de direitos coletivos do povo indígena, numa perspectiva teórica de exercício de direitos sociais e cidadania; assim como, válido para todos os brasileiros legítimos.

E assim, as ações indigenistas antes sob o monopólio da Funai, desta feita, passariam a ser partilhadas com outros órgãos da administração federal, de acordo com as respectivas áreas temáticas de atuação, por exemplo, saúde, educação, meio ambiente, atividades produtivas, benefícios sociais, etc.; restando para essa Funai, pós CF/88, apenas o controle das questões relativas a terra (questões fundiárias), e além disso, a supervisão operacional das ações indigenistas partilhadas, e a coordenação dessas ações dentro das TI’s. Isso não é pouca coisa, os desafios são gigantescos e se renovam automaticamente na proporção direta do crescimento populacional indígena; enquanto a estrutura institucional da Funai, nos últimos 40 anos, só fez decair na razão inversa das demandas indígenas reclamadas, sejam aquelas oriundas das aldeias em TI’s; sejam aquelas vindas de comunidades indígenas em outros ambientes externos, inclusive em áreas urbanas; quer dizer, fora das aldeias de origem.

Desse modo, hoje o segmento social indígena, embora considerado culturalmente diferenciado frente aos demais segmentos da sociedade nacional, também, tem acesso assegurado aos mesmos direitos e benefícios sociais ofertados ao conjunto da sociedade nacional, como todo cidadão brasileiro deve ser tratado, pelos órgãos competentes, operadores desses serviços, seja da esfera pública ou privada.

Diante desse cenário novo, automaticamente surgem novas demandas e desafios de identificação étnica, a serem superados pelo segmento social indígena, que ainda se encontra numa fase inicial de transição, e adaptação, entre esses dois períodos (pré e pós CF/ 88) determinantes nessa dinâmica social indígena, de acesso aos direitos sociais e cidadania, digamos assim de modo diferenciado; quais sejam, a saúde, a educação, ao trabalho, a segurança, a justiça, a sobrevivência etc. Para tanto, eles (indígenas) tiveram que transpor a barreira da comprovação de identidade indígena, fazendo uma travessia de tempo, do antigo Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI), em que era tutelado, emitido pela Funai, para a atual, Autodeclaração, também nominada de Declaração de Pertencimento Étnico (DPE), documento agora válido para esse fim, emitido pelas próprias Organizações Indígenas, como forma de salvaguarda específica de acesso a direitos sociais e cidadania, por meio das políticas públicas disponibilizadas aos indígenas nacionais 7.

Nesse contexto, não se pode deixar de observar um fato marcante, a ser considerado, cautelosamente; ou seja, se no passado, houve situações distorcidas, em casos pontuais de abusos e falsidades na emissão de RANI’s por agentes desidiosos da Funai, já mapeados e extirpados; também, no presente, surgem os mesmos problemas ligados a ocorrência de possíveis esquemas fraudulentos na emissão de DPE’s, desta feita, através de práticas mercenárias de falsas lideranças indígenas, que transformam esse direito indígena de cidadania em mercadoria e barganha de poder politiqueiro. Algo que precisa ser investigado, apurado e devidamente tratado pelos órgãos competentes de defesa dos direitos indígenas.

3. O atual papel da FUNAI junto aos povos indígenas do Brasil.

Ainda que desgastada institucionalmente, por atuar em terrenos opostos de interesses, ligados a setores poderosos conflitantes com a pauta de direitos indígenas, em escala nacional e até internacional, entretanto, pode se afirmar que a Funai exerce papel preponderante no campo do indigenismo nacional, enquanto agente estatal executor e moderador da política indigenista oficial do Estado Brasileiro, e ao mesmo tempo, como já referido no ponto 2, de órgão coordenador e supervisor das ações indigenistas partilhadas com outros órgãos oficiais responsáveis, na implementação de políticas públicas voltadas ao atendimento do público indígena em geral; e de modo específico, no que se refere ao trato em regime de administração especial (enquanto Área Protegida), das territorialidades indígenas, de competência exclusiva do poder executivo federal, nesse caso exercido, por intermédio dessa Fundação. Quer dizer, em tese legal, nada pode ocorrer, ser instalado ou feito dentro de territórios indígenas, (Terra Indígena, Reserva Indígena, e Parque Indígena), de origem externa ou estranha à cosmovisão indígena, sem a devida manifestação acautelatória da Funai, sob pena de nulidade jurídica, e responsabilização civil e penal, sobre qualquer ato praticado sem o cumprimento dessa exigência formal.

Além do que, não há como menosprezar a experiência acumulada pela Fundação, granjeada ao longo de 106 anos de indigenismo oficial, na lida cotidiana com as mais variadas questões que afetam ao binômio povo/terra indígena, presentes em todo o território nacional. São questões fundiárias, agrárias, ambientais, sociais, culturais, policiais, jurídicas e outras; mas sobretudo, transversalmente humanas. Em síntese, a atuação da Funai, junto ao seu público-alvo, é essencialmente humanista, na acepção exata da palavra, considerando o que há de mais elementar e profundo, expressado pela sociobiodiversidade extraordinária desses povos originários, como blocos construtivos, de formação da nacionalidade brasileira; isto é, pela contribuição adimensional derivada de nossas raízes indígenas. Por isso o papel institucional da Funai deveria ser mais valorizado, e preservado, na forma de instituição de Estado, forte e capaz, para defender e proteger direitos e interesses indígenas, ao menos enquanto existirem povos indígenas e seus territórios inseridos no contexto da comunhão nacional. Porque em caso contrário, não restará pedra sobre pedra do Capítulo VIII – Dos Índios inscrito na Carta Magna da República Federativa do Brasil promulgada em 5 de outubro de 1988.

4. A excrescência da tese do marco temporal.

Em princípio, essa ideia não tem fundamento legal nenhum, o que existe sim, é uma ideologia preconceituosa nutrida em fontes anti-indígenas, portanto de cunho racista, contrária ao direito indígena, que distorce completamente aquilo que está gravado no texto constitucional, no que concerne ao conceito de Terra Indígena, na forma do artigo 231 e seus parágrafos, “in verbis”:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1o São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2o As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3o O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas, só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4o As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5o É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6o São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

§ 7o Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3o e 4o.”

Nota-se aí, que não há nenhuma referência clara ou inferência objetiva, expressada pelo legislador constituinte, que remeta a essa ideia desligada da perspectiva teórica do direito indígena, contida no texto constitucional de 1988. Portanto, dentro da Constituição Federal vigente, não há porque se falar de marco temporal; ao contrário, o que deve prevalecer na interpretação isenta da Carta Magna, é o marco atemporal do direito originário dos povos indígenas sobre as terras por eles ocupadas, desde antes da própria organização do Brasil país, logicamente que, tal condição deve estar alicerçada em critérios legais e técnicos, que fundamentam o conceito de terra indígena vinculada a ocupação tradicional do território, em plena consonância com a ordem constitucional; isto é, “ as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.” Inclusive considerando aqueles casos excepcionais, judicializados ou não, decorrentes de clara violação de direitos, de esbulho possessório, de usurpação e turbação etc. contra o patrimônio indígena, que geraram (e ainda hoje geram) conflitos, expulsões ou fugas temporárias do povo indígena vilipendiado de seu habitat original. É por isso que, justamente, o STF no exercício de suas funções de guardião da Constituição Federal, assim vem atuando firme sobre essa matéria, reiterando que não há fundamentação teórica sustentável nessa tese do marco temporal, frente a Constituição. Até porque, as súmulas, jurisprudências e acórdãos emanados pelo próprio STF, considerando o direito indígena cláusula pétrea, não têm efeito de caráter supressivo ao mandamento constitucional; tampouco, de caráter usurpatório das competências privativas das câmaras legislativas federais, que por seu turno, para alterarem cláusulas pétreas da constituição, precisaria ser promulgada nova constituição.

Portanto, a luz do direito sob a ótica constitucional vigente, em condições normais de temperatura e pressão no ambiente político nacional, ideologias desse tipo, inversas e reacionárias a direitos e garantias fundamentais, não devem jamais prosperar. Em que pese, convém mencionar, a composição e posição majoritária da atual legislatura do Congresso Nacional que, em retaliação a decisão definitiva do STF sobre essa matéria (marco temporal), considerada inconstitucional, então, resolveu em tempo recorde deliberar sobre, gerando e aprovando a recente Lei 14.701, de 20/10/2023 8, sancionada pelo Executivo Federal, que ao final acabou introduzindo essa excrescência na estrutura jurídica do País. Agora a bola está com a sociedade civil organizada, que, democraticamente, pode questionar, no fórum apropriado, os princípios de constitucionalidade dessa lei.

5. Exploração econômica de recursos naturais dentro de TI’s.

Pode? Não pode? Como pode? Eis os desafios postos em relação ao aproveitamento econômico de bens naturais dentro de territórios indígenas. Uma coisa é certa, a resposta primeira, não é pode tudo; pois que, assim seria o caos ou a figura do inferno de Dante.

Nesse sentido, a ação necessária a ser trabalhada no trato desses desafios é de providência cautelar, por meio de ferramentas de planejamento estratégico e participativo de gestão da TI, considerando, previamente, desde a consulta e o consentimento do coletivo indígena, a pesquisa, o dimensionamento, as viabilidades, até a elaboração e implementação do projeto executivo, porém com uma ressalva imprescindível, condição sine qua non, de considerar também, em todas essas etapas, o envolvimento e a participação decisiva da comunidade indígena interessada, como principal beneficiária desse processo de aproveitamento econômico de recursos naturais, disponíveis em TI’s.

Desse modo, convém lembrar aqui, que no âmbito da Funai existe uma política muito interessante nesse sentido, ainda pouco internalizada pelo sistema Funai, ou digamos assim pouco utilizada nas TI’s, na forma denominada Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), como instrumento de gestão da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) 9 de modo que somente a comunidade indígena envolvida, por meio de ferramentas de planejamento participativo, poderá decidir sobre questões relativas ao aproveitamento econômico sustentado de recursos naturais e culturais em TI’s. Em outras palavras, é pelo PGTA que as próprias comunidades indígenas, a partir do conhecimento prévio e consolidado sobre as potencialidades de recursos naturais disponíveis ao usufruto exclusivo delas, poderão responder com segurança e assertividade acerca do que pode? Do que não pode? E sobretudo do como pode ser feito o aproveitamento econômico de tais potencialidades, em bases sustentáveis, na perspectiva de gestão responsável da TI, enquanto uma modalidade de Área Protegida.

6. Poder de polícia da FUNAI.

No papel, teoricamente, de acordo com a lei que criou a Funai (Lei nº 5.371, de 05/12/1967; art.1º e dentro da lei que instituiu o Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973; arts. 34º e 35º, sempre existiram referências claras sobre a necessidade de regulamentação do emprego do poder de polícia pela Funai no exercício de suas atribuições institucionais de proteção, conservação e valorização do patrimônio indígena, bem como, dos direitos e interesses associados, do povo indígena do Brasil. Porém, na prática, essa ideia até o presente momento ainda não saiu do papel, fato que de acordo com o grau de complexidade da situação conflituosa apresentada acaba por limitar e gerar vulnerabilidades e instabilidades a servidores, e indígenas, empenhados em ações de proteção e vigilância territorial e ambiental de Terras Indígenas; além do que, também acaba implicando em efeitos negativos de prejuízos e desvalorização ao patrimônio indígena; uma vez que, na maioria dos casos ligados a apreensões; autuações e multas geradas em razão crimes ambientais, por exemplo, ocorridos dentro de áreas indígenas, os resultados físico-financeiros de ações fiscalizatórias acabam sendo externalizados para outros fins, que não aqueles que lhes deram causa, isto é, os bens do patrimônio indígena esbulhado.

Neste caso, dada a relevância do tema associada ao pressuposto legal existente sobre essa matéria, é razoável se pensar que, está faltando capacidade gerencial e disposição política das autoridades competentes da Funai, e agora se pode citar também o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas, no sentido de regulamentar esse dispositivo legal, de importância fundamental ao serviço indigenista em prol da defesa dos direitos e deveres dos povos indígenas; notadamente, aqueles relacionados com a proteção do patrimônio indígena e seus recursos naturais.

7. População indígena em situação de contexto urbano.

Trata-se de um fato irreversível que, também emergiu no bojo das mudanças provocadas nas sociedades indígenas, no período pós CF/88, com o fim da tutela estatal e o advento da autonomia jurídica do cidadão indígena (Art.232/CF). O fato é que a partir daí, derivou-se um novo processo de fluxo migratório na população indígena, porém, feito de forma desordenada, não planejada, que geralmente, fazendo-se uma análise corriqueira da relação riscos/benefícios, se conclui que desse modo tal processo gerou ainda mais problemas do que melhorias à população indígena envolvida nessa movimentação. E aqui não cabe nenhum juízo de valor qualitativo sobre esse direito conquistado, muito ao contrário, a intenção ora em pauta se concentra no debate construtivo na busca de soluções alternativas viáveis, frente aos problemas enfrentados por essa população.

Independente dos motivos que levaram ou levam essas pessoas indígenas saírem de suas aldeias ou comunidades, em TI’s localizadas no meio rural, indo parar no meio urbano, a realidade cruel é que elas não dispõem dos recursos básicos necessários para enfrentar essa nova realidade de vida. Ou seja, não têm moradia, não têm emprego ou qualificação profissional, não têm renda, enfim; só têm a cara e a coragem pois que precisam sobreviver, no entretanto, agora fora da terra indígena, onde certamente que as condições de vida eram (e continuam sendo) muito mais favoráveis do que na cidade, logicamente, dependendo do ponto de vista de cada um.

Convém lembrar que no meado da década de 1980 (1985/86), conforme (Bigio, 1987) 10, a população indígena do Brasil era estimada em mais ou menos 220 mil indígenas; sendo que, cerca de 80% dessa população habitava em TI, isto é, era população aldeada. Hoje, quase 40 anos depois o cenário é outro completamente diferente, a população indígena quase que octuplicou, e se encontra conforme o último censo do IBGE (2022) 11, estimada em 1.693.535 pessoas indígenas; sendo que, desse total 36,73 % encontram-se habitando dentro de TI (população aldeada) e os outros 63,27 % encontram-se em situação de habitante fora de TI, inclusive em situação de contexto urbano.

De outro lado, cabe esclarecer também, que as políticas e ações indigenistas oficiais ora disponíveis para implementação pela Funai, são dirigidas especialmente às populações indígenas aldeadas, isto é, àquelas encontradas dentro de TI’s. Lamentavelmente, ainda não tem no Brasil uma política indigenista que contemple essa população indígena encontrada fora de TI, inclusive em contexto urbano.

Nesse contexto, fora dos territórios indígenas já juridicamente reconhecidos no meio rural, essa população vai buscar seus “direitos” de formas juridicamente instáveis e algumas vezes atropelando direitos alheios, como por exemplo, questões relacionadas a invasão de terras particulares dentro de perímetro urbano, com todas as consequências negativas que geralmente recaem sobre os invasores. Além de outros problemas sociais extremamente graves associados a tráfico de drogas e correlatos, que, na condição vulnerável em que os indígenas urbanos se encontram, acabam se tornando uma presa fácil do crime organizado.

Diante desse cenário dramático, e considerando tratar-se de povo indígena, seria de bom tom que a Funai, com o reforço do Ministério dos Povos Indígenas, dentro de suas atribuições institucionais, articulasse com Estados e Municípios, que convivem com essa situação de indígenas em contexto urbano em suas superfícies, no intuito de construírem formas jurídicas estruturantes que viabilizem a concepção de políticas públicas direcionadas ao atendimento desse público-alvo. Afinal de contas, não custa nada lembrar que esses indígenas, enquanto cidadãos brasileiros são eleitores, podem eleger e ser eleitos, e boa parte deles foi ou é mobilizada de suas aldeias de origem, muitas vezes por motivos políticos (eleitorais ou eleitoreiros), de responsabilidade das três esferas federativas.

Por enquanto, deste do ponto de vista, aqui estão alguns pontos considerados cruciais, que se apresenta ao debate, como gargalos a pressionar o atual serviço público indigenista e, ao mesmo tempo, a desafiar a todos os interessados nesta pauta, no sentido de buscar meios e formas viáveis e efetivas de enfrentamento e superação desses problemas, assim como outros mais que, com certeza, existem por aí e que podem ser acrescentados aqui, dependendo do olhar atento e ampliado de cada observador ou observadora. Sejam bem-vindos.

1 Convenção 169 da OIT – Convenção n° 169 sobre povos indígenas e tribais e Resolução referente à ação da OIT / Organização Internacional do Trabalho. – Brasília: OIT, 2011 1 v.

3 CF 1988, ART.231; Lei 6001/1973; Decreto Federal 1775/1996 e Portaria nº 14/MJ, de 09/01/1996.

5 CF/1988, art, 232 – Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

6 Bigio, Elias dos Santos – A ação indigenista brasileira sob a influência militar e da nova república (1967 – 1990); – Revista de Estudos e Pesquisas, FUNAI, Brasília, v.4, n.2, p.13-93, dez. 2007.

8 Lei nº 14.701, de 20.10.2023 – Regulamenta o art. 231 da Constituição Federal, para dispor sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas; e altera as Leis nºs 11.460, de 21 de março de 2007, 4.132, de 10 de setembro de 1962, e 6.001, de 19 de dezembro de 1973. – https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14701.htm

9 Decreto Federal 7.747, de 12.6.2012.- Institui a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas. – https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7747.htm

10 Bigio, Elias dos Santos – A ação indigenista brasileira sob a influência militar e da nova república (1967 – 1990); – Revista de Estudos e Pesquisas, FUNAI, Brasília, v.4, n.2, p.13-93, dez. 2007.

i Eng. Florestal – Esp. em Gestão Florestal e Gestão Ambiental. – Mestre em Gestão de Áreas Protegidas.

Formas de contato: ricaluz23@hotmail.com

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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