Usos e abusos do conceito de racismo ambiental
Usos e abusos do conceito de racismo ambiental, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
A expressão “racismo ambiental e climático” virou foco de muita discussão na semana passada, principalmente após a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, ter divulgado na rede X (antigo Twitter), no dia 14 de janeiro de 2024, a curta mensagem: “Estou acompanhando os efeitos da chuva de ontem nos municípios do Rio e o estado de alerta com as imensas tragédias, fruto também dos efeitos do racismo ambiental e climático”.
Percebe-se dois problemas na mensagem. O primeiro diz respeito sobre a intempestividade da mensagem, pois a ministra não falou nada (pelo menos nada com tanta repercussão) sobre o efeito do racismo ambiental e climático quando da grande seca da Amazônia do ano passado e nem das grandes enchentes no Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul. O segundo é que a mensagem abriu espaço para que a população entendesse o recado como se o meio ambiente, o clima e desastres naturais como terremotos fossem racistas, o que seria um contrassenso.
É claro que o tema é complexo e, ao ser tratado na régua de 140 caracteres, tende a gerar mal-entendidos e simplificações. Em uma sociedade politicamente polarizada, tudo vira memes e/ou discurso de ódio. O pior é que muitas pessoas que questionaram a mensagem da ministra foram quase automaticamente acusadas de racista. Algumas vezes com razão e outras não. Outro complicador é o tal “direito de fala”, onde prevalece o argumento “ad hominem”, ou seja, uma tentativa de refutação do argumento a partir da crítica ao seu autor, e não ao seu conteúdo. Se o ministério é da igualdade racial, todas as raças importam!
A origem do termo “racismo ambiental” remonta ao início da década de 1980, quando o ativista norte-americano Benjamin Chavis, ativista do movimento dos direitos civis, protestou contra a discriminação racial deliberada quando da exposição de minorias étnicas aos perigos dos resíduos tóxicos. No prefácio do livro “Confronting environmental racism: voices from the grassroots” (Bullard, 1993), Chavis apresentou uma definição mais precisa do conceito de racismo ambiental:
“Discriminação racial na elaboração das políticas ambientais, aplicação e regulação de leis, com ataque deliberado às comunidades de cor por meio de instalações de resíduos tóxicos, a sanção oficial de venenos e poluentes cuja presença causa risco de vida para nossas comunidades e a história da exclusão de pessoas de cor da liderança dos movimentos ecologistas”
Segundo a definição do Oxford Reference: “O racismo ambiental pode ser definido como a discriminação racial intencional ou não intencional na elaboração de políticas ambientais, aplicação de regulamentos e leis, e direcionamento de comunidades para a eliminação de resíduos tóxicos e localização de indústrias poluentes”.
Portanto, o mais correto seria definir o conceito como “racismo nas políticas ambientais e climáticas”, pois o racismo não está no meio ambiente e nem na crise climática, mas sim na inação irresponsável e nas políticas públicas voltadas ao ambiente e ao clima que prejudicam, intencionalmente ou não, as populações mais vulneráveis e, em especial, grupos étnicos discriminados.
Voltando à mensagem da ministra Anielle sobre o desastre das enchentes na baixada fluminense, resultado das chuvas de 13 e 14 de janeiro. Ela tem razão em dizer que as pessoas mais afetadas foram da população parda e preta. Mas daí concluir que isto é fruto do “racismo ambiental e climático” é, provavelmente, uma conclusão apressada, pois faltam dados mais precisos da composição étnico racial da população afetada. Não existem dados disponíveis, por exemplo, sobre as características de raça/cor das pessoas que morreram nas enchentes. Estes dados seriam fundamentais para avaliar se existe um viés racial nas cerca de 11 mortes ocorridas (ou um viés entre as principais vítimas dos prejuízos econômicos).
O que se sabe é que os municípios fluminenses mais afetados pelas enchentes de janeiro possuem mais de dois terços da população não branca. A tabela abaixo, com dados do censo demográfico de 2022, mostra que nos 3 municípios da baixada fluminense mais atingidos pelas tempestades, a população branca constitui menos de um terço do total, a população parda cerca de 50%, a população preta cerca de 20% e uma percentagem muito pequena de amarelos e indígenas.
Portanto, não é surpresa esperar que as enchentes ocorridas nos 3 municípios da tabela abaixo atingisse um maior número de pessoas pardas e pretas. Sem dúvida a sociedade brasileira tem uma formação classista, sexista e racista, pois os pobres, as mulheres e as pessoas que se autodeclaram pardas, pretas e indígenas estão sobrerepresentadas na pobreza e nas situações de vulnerabilidade social e ambiental. Quando há um evento climático extremo, a tendência é afetar estas populações “dominadas e exploradas”, para usar um velho termo muito citado quando se falava muito de luta de classes.
Um outro fenômeno climático extremo que ocorreu no Brasil recentemente foi a seca extrema que atingiu a Amazônia no ano passado. É incrível que na maior floresta tropical do mundo e na maior bacia hidrográfica do mundo muitos ribeirinhos tenham ficado sem água potável para beber e que tenha faltado ar limpo para a população de Manaus respirar.
A população mais atingida foi a parda e a indígena, pois elas são maioria em diversos municípios amazônicos. A tabela abaixo mostra a composição por raça/cor de 3 municípios do estado do Amazonas que foram muito atingidos pela seca. Manaus, a maior cidade da região, possui menos de um quarto da população que se autodeclara branca, 70% são pardos, 5,6% pretos, 0,2% amarelos e 0,9% indígenas.
A cidade de Tefé – onde foram encontrados mais de 150 Botos-cor-de-rosa mortos pela alta temperatura das águas e a falta de oxigênio – possui apenas 9% de brancos, percentagem menor do que os 10,6% de indígenas e maior do que os 3,8% de pretos. A maioria absoluta da população de Tefé (76,6%) se declara parda. Já a cidade de São Miguel da Cachoeira possui 88,7% da população se autodeclarando indígena, apenas 7,2% parda, 3,2% branca, 0,9% preta e zero amarela.
Desta forma, é de se esperar que os mais atingidos pelo desastre climático e ambiental da Amazônia de 2023 sejam os pardos em Manaus e Tefé e os indígenas em São Gabriel da Cachoeira. Mas este fato não configura em si um evento para se chamar “racismo ambiental e climático”, a não ser que a proporção de pessoas que morreram e tiveram grandes prejuízos materiais seja muito maior do que a composição de raça/cor dos municípios. Seria muito importante que o governo e a academia promovessem uma avaliação científica destes eventos com reconstituição dos dados e análises estatísticas adequadas.
O terceiro exemplo de grande desastre que ocorreu recentemente no Brasil foram as enchentes do Vale do rio Taquari, que deixaram mais de 50 pessoas mortas e um grande prejuízo social e econômico. Só o pequeno município de Muçum registrou 16 mortes (mais do que as mortes registradas na baixada fluminense em 13 e 14 de janeiro). Não há dados disponíveis para uma análise mais apurada, mas reportagens da imprensa mostram que a grande maioria das mortes e das vítimas ocorridas em Muçum e no Vale do Taquari foram de pessoas que se autodeclaram brancas.
Isto também não é nenhuma surpresa, pois a população branca predomina na região. A tabela abaixo apresenta os dados do censo 2022 para 3 municípios gaúchos muito afetados pelas enchentes do ano passado. Nos 3 municípios, a população que se autodeclara branca é superior a 84%, a população parda fica em torno de 11%, a população preta em torno de 4% e um número muito pequeno de amarelos e indígenas.
Não só a periferia, mas também bairros centrais dos municípios foram afetados pelas enchentes. Aqui também seria muito importante que o governo e a academia promovessem uma avaliação científica destes eventos com reconstituição dos dados e análises estatísticas adequadas.
O que estes 3 exemplos mostram é que os desastres ambientais e climáticos possuem impactos diferenciados conforme a composição de raça/cor da população local. Nos desastres da baixada fluminense as populações mais afetadas foram pardas e pretas, no Amazonas foram as populações pardas e indígenas e no Vale do Taquari foi a população branca.
Não resta dúvida de que o Brasil é, de modo geral, um país com grandes desigualdades de classe, gênero e raça e que as principais vítimas dos desastres ambientais e climáticos são os pobres, as mulheres e a população parda, preta e indígena. Mas o conceito original de “racismo ambiental e climático” foi elaborado para avaliar o papel das políticas públicas na área ambiental e climática e se estas políticas fortalecem o racismo ou se elas buscam mitigar os efeitos de uma sociedade com grande desigualdade social e regional. Este tipo de análise é importante e necessário.
O Programa Bolsa Família é um exemplo de política pública que busca reduzir as desigualdades sociais, pois transfere renda para as pessoas pobres, as mulheres (especialmente mães solo) e as populações etnicamente mais vulneráveis (pardos, pretos e indígenas). O monte de recursos investidos no programa aumentou muito em 2023 e o Bolsa Família é uma política pública fundamental para reduzir a fome e a pobreza extrema. Desta forma, pode-se considerar que o Programa Bolsa Família é uma ação pública que contribui para combater o racismo ambiental e climático. Lamentavelmente, é um programa emergencial (embora já dure mais de 20 anos) que melhorou a vida de milhões de pessoas, mas que não conseguiu acabar definitivamente com a pobreza no país.
O Brasil tem muitos programas voltados para aliviar a situação de pobreza da população mais vulnerável, como: Minha Casa Minha Vida, Benefício de Prestação Continuada (BPC), Seguro Defeso, Programa de erradicação do trabalho infantil, Pró-jovem e educação infantil, Seguro desemprego, Diversas ações do SUS como o Programa de Saúde das Famílias, Programa Nacional Imunização, Farmácia Popular, Transplante de órgãos, Prevenção e controle de HIV/Aids, etc. De modo geral, todos estes programas são implementados de maneira intersetorial visando reduzir as desigualdades de classe, gênero e raça. Uma avaliação detalhada de classe, gênero e raça destes programas é necessária para ressaltar os impactos positivos (ou negativos) sobre as populações mais vulneráveis.
O fato é que o Brasil tem inúmeras políticas que buscam reduzir as desigualdades sociais e minimizar os efeitos dos desastres ambientais e climáticos. Até uma parte da iniciativa privada tem buscado adotar políticas de diversidade. Se todas estas políticas públicas e privadas não estão dando certo, ou se elas são insuficientes é uma questão a ser estudada, avaliada para se propor novas alternativas.
Por tudo isto, pode-se dizer que seria um equívoco simplesmente falar que o Brasil é um país onde prevalece o “racismo ambiental e climático”. O primeiro engano é deixar passar a ideia de que o ambiente e o clima são racistas. O certo seria analisar o racismo nas políticas ambientais e climáticas. Desta forma, falar simplesmente em “racismo ambiental” gera mais confusão do que esclarecimento.
O debate ocorrido nas redes sociais na semana passada no Brasil ficou eivado de um tom identitarista, com muitas pessoas dando exemplos aleatórios de minorias que são atingidas pelos eventos climáticos extremos. Certamente, não faltarão amostras de pessoas e camadas de populações vulneráveis que são e serão muito atingidas pelos desastres ambientais e climáticos. Mas a tentativa de racializar os efeitos dos desastres ambientais e climáticos pode exagerar na dose e ser um tiro pela culatra que acabe fortalecendo a extrema-direita e os conservadores de todos os tipos.
Em síntese, o Brasil é um país que tem o classismo, o sexismo e o racismo entrelaçado na base de sua formação social histórica. São desigualdades marcantes e constitutivas do dia a dia da população brasileira. Mas carece de fundamentação a ideia de que há, de maneira generalizada, racismo na maioria das políticas públicas brasileiras voltadas para o meio ambiente e para o clima.
Em agosto do ano passado a ministra Anielle Franco anunciou a criação de um Comitê de Monitoramento da Amazônia Negra e Enfrentamento ao Racismo Ambiental propondo “Colocar nossos povos tradicionais, comunidades quilombolas, povos de terreiro no protagonismo da proteção da Amazônia é dever não só do governo brasileiro, mas do mundo”. Iniciativa totalmente louvável.
Promover políticas públicas para fortalecer o protagonismo das populações mais vulneráveis no processo de mitigação e adaptação à crise ambiental e climática é o caminho correto. Mas utilizar as enchentes da baixada fluminense para divulgar nas redes sociais, de maneira rápida e superficial, um conceito controverso e com problemas de formulação não é o melhor caminho para se construir um país próspero, pacífico, harmonioso, com inclusão econômica e justiça social e ambiental.
José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
[ Se você gostou desse artigo, deixe um comentário. Além disso, compartilhe esse post em suas redes sociais, assim você ajuda a socializar a informação socioambiental ]
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
A manutenção da revista eletrônica EcoDebate é possível graças ao apoio técnico e hospedagem da Porto Fácil.
[CC BY-NC-SA 3.0][ O conteúdo da EcoDebate pode ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, à EcoDebate com link e, se for o caso, à fonte primária da informação ]
Os questionamentos economicos e socioambientais por pessoas que são grandes beneficiárias daquilo que combatem, é ridícula. Desfrutam de todos os confortos proporcionados pela tecnologia que eles mesmos nominam como predadoras. Para distrair focam em questões genéricas e sem sentido prático, vivendo destas artimanhas. É como penso, se pensar nao for crime, senao eu des penso…
Quem nao trabalha e nao quer trabalhar se beneficia de programa de incentivo a NÃO TRABALHAR… Eu tenho observado gente que ri quando ofereço trabaalho… “por que trabalhar se reçebo sem trabralhar?”