Alimento à instabilidade: Comida se torna motivo de radicalização política no mundo e alarma autoridades
Foi aos gritos de “temos fome” que manifestantes no Haiti forçaram o primeiro-ministro a renunciar.
Em Camarões, protestos ligados ao aumento do custo dos alimentos deixaram pelo menos 24 mortos. No Egito, 11 pessoas morreram nos últimos dois meses na fila do pão subsidiado. Costa do Marfim, Somália e Bangladesh também foram palco de manifestações com morte. Por Sabrina Valle, do O Globo, 11/05/2008.
Protestos violentos contra a alta do custo de vida irromperam simultaneamente em vários pontos do mundo, mostrando que a “tsunami silenciosa” da crise dos alimentos trouxe mais do que o fim de três décadas de comida a preços razoáveis. Fome e miséria – historicamente motivo de conflitos – voltam a ter destaque no rol de fatores que geram instabilidade política no mundo.
– Se a resposta à crise não for eficaz teremos sérios problemas de insegurança – alerta, da Itália, o funcionário do Programa de Alimentos das Nações Unidas (PMA), Ramiro Lopes da Silva.
Segundo ele, a grande ameaça não vem necessariamente em forma de guerra, mas em migrações e nos cortes em nutrição, educação e saúde, que podem fazer países em desenvolvimento perderem sete anos de avanços em relação às metas do milênio.
Alimentos viram arma política
Para especialistas em segurança, a crise pode alterar a geopolítica mundial, com os alimentos se tornando catalisadores de outros conflitos e até instrumento de pressão política.
– Quem controla o fornecimento de alimentos para refugiados, por exemplo, tem um poder político imenso na mão – diz o Michael Moodie, do programa de segurança internacional da Chatham House, em Londres.
Moodie diz que instabilidade em países como o Egito, que já enfrenta uma série de outros conflitos políticos e desempenha um papel fundamental para o equilíbrio do Oriente Médio, são mais alarmantes.
– O que vai acontecer em cada lugar dependerá dos problemas que esses países já enfrentam, seja pobreza, urbanização, desemprego…
Num ambiente desses é sempre um risco que a comida vire ferramenta política. Os alimentos podem virar catalisadores de conflitos de uma forma como não se viu até agora.
Peter Zeihan, vice-presidente de análises do centro britânico de análises estratégicas Stratfor, lembra que Estados Unidos, União Européia e a Austrália concentram grande parte da produção mundial de alimentos.
– Os países mais vulneráveis são os importadores líquidos de alimentos.
Até a Arábia Saudita, com tanto petróleo, pode ter problemas porque é importadora. A última vez que tivemos falta de alimentos no mundo foi durante a Guerra fria. Na época os EUA fizeram um embargo de grãos e usaram isso como ferramenta de pressão política – disse. – Hoje é ainda mais provável que os alimentos virem instrumento político, já que o Ocidente controla quase todo o comércio mundial.
Cem milhões podem entrar na miséria
A situação é crônica para os países em desenvolvimento, já que seus habitantes gastam em média 70% do orçamento familiar com comida, contra 10% dos países ricos, diz Lopes da Silva.
A crise também tirou poder de fogo do PMA, já que ficou mais caro nos últimos meses distribuir a mesma quantidade de comida.
– Nosso orçamento de 2008, aprovado em outubro passado, era de US$ 3 bilhões. Agora, para atender as mesmas 33 milhões de pessoas precisamos de US$ 3,8 bilhões.
Hoje, cerca de um bilhão de pessoas vivem com US$ 1 por dia, índice usado como parâmetro para a pobreza extrema. Segundo o Banco Mundial, a crise de alimentos pode fazer mais cem milhões de pessoas atravessarem essa barreira e engrossarem a conta dos miseráveis.
Já o PMA diz que cem milhões de pessoas (não necessariamente as mesmas) podem engordar a lista dos que sofrem de má nutrição crônica.
Hoje, há 850 milhões nesta situação.
O quadro é mais grave na África e na Àsia – onde 1,7 bilhão de pessoas vivem com até US$ 2 por dia, o equivalente a dois terços dos pobres do mundo.
A inflação de alimentos fez os bengaleses reduzirem a quantidade de comida ingerida por dia. Na Costa do Marfim, onde a polícia dispersou protestos com gás lacrimogêneo, a câmara de comércio classificou a situação como “explosiva” e disse que a estabilidade política estava ameaçada. No continente americano, o Haiti, onde 66% da população vivem com menos de US$ 1 por dia, é o exemplo mais alarmante. Houve protestos também na Rússia, na Argentina, no Peru, no Vietnã e na África do Sul. Países como Bangladesh, Índia e Vietnã limitaram a exportação de grãos para garantir estoques e controlar preços. No Brasil, o governo restringiu as exportações de arroz.