Levantamento revela perfil das mulheres que praticam aborto no país
A maioria dos abortos no país é feito por mulheres de 20 a 29 anos de idade, que trabalham, têm pelo menos um filho, usam métodos contraceptivos, são da religião católica e mantêm relacionamentos estáveis. Elas têm até oito anos de escolaridade e estão no mercado de trabalho com renda de até três salários mínimos, exercendo funções como as de doméstica, manicure e cabeleireira. Matéria de Adriana Brendler, da Agência Brasil.
O perfil foi traçado por um estudo que reuniu resultados de mais de 2 mil pesquisas sobre o aborto no Brasil, elaboradas nos últimos 20 anos, com base principalmente em informações de mulheres atendidas em serviços públicos de saúde de grandes cidades depois de induzir o aborto em casa.
As informações fazem parte do Relatório Aborto e Saúde Pública no Brasil, levantamento realizado por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), com financiamento do Ministério da Saúde e das Organizações Pan-Americana e Mundial de Saúde, aponta o uso do medicamento de venda controlada misoprostol, conhecido como Cytotec, como principal método abortivo utilizado no país.
De acordo com uma das coordenadoras do estudo, Débora Diniz, o perfil apontado não traz surpresas, pois reproduz as características gerais das brasileiras em idade reprodutiva. A antropóloga da Unb destacou, no entanto, o fato de mais de 70% das mulheres que abortaram serem mães.
“Essas mulheres decidem pelo aborto já tendo um filho. Diferente do que vulgarmente poderia se imaginar, são mulheres já com experiência de cuidado com filhos. Elas tomam a decisão pelo aborto do alto da responsabilidade da maternidade”, ressaltou.
Para Débora, o uso de métodos contraceptivos por cerca de 70% das mulheres que abortaram indica que eles podem estar sendo utilizados inadequadamente ou de forma descontínua, mas também que o aborto está sempre no horizonte das escolhas reprodutivas femininas.
”Mesmo para as mulheres que se referem ao uso contínuo de métodos anticonceptivos, dado o índice de falha possível deles, o aborto está dentro do horizonte das práticas reprodutivas”, afirmou.
Segundo ela, o uso dos contraceptivos foi registrado na maior parte dos estudos da Região Sudeste, principalmente em São Paulo, onde mais se conhece a realidade do aborto no país. Já no Nordeste, onde menos pessoas foram pesquisadas, a situação é oposta: mais de 50% das mulheres que interromperam a gestação não usaram métodos anticoncepcionais.
O relatório mostra que cerca de 200 mil mulheres foram hospitalizadas no Sistema Único de Saúde (SUS) em decorrência de tentativas de aborto em 2005. Os pesquisadores consideram que o número representa 20% do total de casos ocorridos no país e assim estimam mais de 1 milhão de abortos para aquele ano. A estimativa, no entanto, fica prejudicada, pois não há dados sobre interrupções induzidas de gestação fora das grandes cidades, em casa e ou em clínicas particulares.
De acordo com coordenadora, os dados mais confiáveis sobre o aborto no Brasil são de uma pesquisa realizada nos anos 90 e reaplicada em 2000 pela Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), pois foram obtidos em levantamentos domiciliares, utilizando o método de urna, que garante sigilo às mulheres e, conseqüentemente, melhora a qualidade da informação. Segundo o estudo, cerca de 3,7 milhões de brasileiras entre 15 e 49 anos já induziram aborto, aproximadamente 7,2% das mulheres em idade reprodutiva no país.
Medicamento controlado é principal método abortivo no país
Venenos, líquidos tóxicos, instrumentos perfurantes e a ação de parteiras, métodos utilizados para realizar abortos no país até a década de 80, foram substituídos nos últimos 20 anos pelo uso do medicamento de venda controlada misoprostol, conhecido como Cytotec.
Indicado para problemas gástricos, a substância capaz de interromper a gestação foi usada por até 84% das mulheres que fizeram abortos no país de 1997 a 2007. Na década de 80, medicamentos eram usados como métodos abortivos apenas entre 10 e 15% dos casos.
De acordo com antropóloga Débora Diniz, da Unb, embora o uso da substância tenha reduzido os riscos para a saúde das mulheres associados ao aborto, trouxe outros problemas.
“Nos anos 80, tínhamos mulheres perdendo o útero e com processos infecciosos graves. Com a entrada do misoprostol, o período de internação e as seqüelas associadas ao aborto diminuem consideravelmente no cenário brasileiro. Mas a única experiência verdadeiramente segura para as mulheres praticarem o aborto seria uma lei que o autorizasse, porque todas as outras formas impõem uma série de riscos. Dizer que diminuiu a morbidade não significa ignorar que há riscos numa prática ilegal ”, afirmou.
Entre os novos riscos, ela aponta as evidências de que o Cytotec esteja sendo comercializado por traficantes de drogas, em muitos casos com a composição adulterada, favorecendo a aproximação dos compradores com o mundo do crime.
Além disso, Diniz destacou o uso do medicamento sem orientação médica, que, por ser ingerido em subdoses, exige atendimento médico para completar o abortamento e combater as reações decorrentes do processo inicial, como hemorragias e dores abdominais.
Segundo ela, em doses adequadas, o medicamento pode interromper a gestação em 90% dos casos sem necessidade de atendimento médico. Como exemplo, ela citou a experiência de Cuba, onde o misoprostol vem sendo adotado como método abortivo doméstico por indicação do governo.
As mulheres que responderam as pequisas normalmente procuram os hospitais públicos nas primeiras 24 horas depois de usar o medicamento, com dores abdominais e sangramento. Entre 9,3% e 19% delas apresentavam sinais de infecção. Na maioria dos casos, o tempo de gestação era de até 12 semanas e a internação durou em média um dia.
Além do Cytotec, os estudos também registraram o uso de chás e ervas em até15% dos abortos induzidos. Os dados do relatório dizem respeito apenas à realidade de grandes cidades onde foram concentradas as pesquisas e incluem somente informações de mulheres que começaram o processo abortivo em casa e acabaram buscando os hospitais públicos para completá-lo.
De acordo com Cristião Rosas, presidente da Comissão Nacional de Violência Sexual e de Interrupção da Gravidez nos Casos Previstos em Lei, da Federação Brasileira de Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), o misoprostol é contra-indicado para pacientes anêmicas, com problemas hepáticos e cardíacos, que usem anticoagulantes ou que já tenham passado por cesariana.
Ele destacou, no entanto, que, usado sob critérios médicos, o remédio é muito eficiente na área obstétrica em casos de indução do trabalho de parto, abortamentos retidos e hemorragias pós-parto, contribuindo para a redução da mortalidade materna.
Estudo aponta presença masculina na maior parte dos abortos
A compra do medicamento Cytotec, de comercialização controlada e usado por até 84% das mulheres que fizeram abortos nos últimos 20 anos, é uma atribuição predominantemente masculina.
O levantamento indica a participação masculina, seja no processo de decisão, seja na viabilização da maioria dos abortos no país.
De acordo com os dados, consolidados a partir de mais de 2 mil pesquisas sobre o assunto realizadas nos últimos 20 anos, mais de 70% das mulheres que resolveram abortar vivem uma relação considerada segura ou estável. Além disso, apenas 2,5% das gestações interrompidas foram fruto de relações eventuais.
“A vasta maioria das mulheres identifica algum personagem masculino tanto no projeto reprodutivo quanto no processo de decisão pelo aborto”, afirma a antropóloga Débora Diniz, uma das coordenadoras do estudo.
Segundo ela, as pesquisas evidenciam que na grande maioria dos casos o homem é quem compra o medicamento. “Como há um indício de que o mercado do Cytotec segue o mercado do tráfico de drogas, essa é uma atribuição masculina. Os papéis de gênero levam os homens a esse ambiente”, avaliou Diniz.
Para a pesquisadora, as informações sobre a participação masculina no processo abortivo levam a interpretações ambíguas, podendo sinalizar tanto situações de parceria, como de pressão do homem sobre a mulher.
“Alguns estudos mostram que há um processo [do homem] de se eximir da sua responsabilidade – está aqui, estou dando o medicamento – e outros revelam a participação masculina numa distribuição de tarefas”, relatou.
A antropóloga alertou, no entanto, que os estudos sobre o papel masculino nas decisões pelo aborto são ainda feitos com pequenos grupos, amostras reduzidas que ainda precisariam ser ampliadas para conclusões mais abrangentes.
A antropóloga alertou, no entanto, que os estudos sobre o papel masculino nas decisões pelo aborto são ainda feitos com pequenos grupos, amostras reduzidas que ainda precisariam ser ampliadas para conclusões mais abrangentes.
Opção por aborto não tem relação direta com a pobreza, diz antropóloga
Quanto maior a renda e a escolaridade, maiores as chances de a primeira gravidez resultar em aborto entre mulheres de 18 a 24 anos.
Segundo a antropóloga Débora Diniz, uma das coordenadoras do relatório, dados obtidos a partir da pesquisa Gravidez na Adolescência, feita em Porto Alegre, Salvador e Rio de Janeiro com financiamento da Fundação Ford, em 2003, mostram que a opção pelo aborto não tem relação direta com a pobreza.
“Não há correlação imediata de que a pobreza é o que leva à decisão pelo aborto. São decisões sobre planejamento reprodutivo, concepções de família, concepções de vida, de inserção no mundo do trabalho, que levam as mulheres a essa tomada de decisão”, avaliou.
Para Diniz, a pesquisa que abordou fatores associados ao aborto como desfecho da primeira gestação é uma das mais importantes do cenário brasileiro sobre o tema, tanto pelos resultados apresentados quanto pela metodologia utilizada que contemplou consultas domiciliares.
Segundo ela, embora o foco geral do estudo tenha sido a adolescência, os resultados se aplicam às mulheres de uma maneira geral, já que incluem a faixa etária até 24 anos.