Pax Transgênica, artigo de Rafael Cruz e Sérgio Leitão
A maior parte do ônus fica com a sociedade civil, que é obrigada a conviver com a negação do direito básico de saber o que está comendo
[Folha de S.Paulo] NO FINAL do século 19, enquanto republicanos e monarquistas debatiam o fim do Império e o nascimento da República no Brasil, a população permaneceu à margem de todo o processo. Alheios à transição política que estava em plena ebulição no país, os brasileiros assistiram “bestializados” à queda de d. Pedro 2º e à formação do novo governo, conforme constatou um desapontado Aristide Lobo, republicano de primeira hora. O império se foi e o brasileiro permaneceu apático, sem saber bem o que estava acontecendo.
Ainda que o espírito republicano tenha aberto espaços de participação popular nos destinos do país, certos setores da sociedade não aprenderam a incluir o cidadão comum nas discussões que lhe dizem respeito. O debate sobre os transgênicos no Brasil, por exemplo, é um caso emblemático de “bestialização” moderna.
As indústrias de biotecnologia e de alimentos, a comunidade científica, os grandes produtores rurais e os ambientalistas se digladiam há anos por meio de termos científicos, técnicos, ambientais, agrícolas e econômicos sem se preocuparem em traduzir essa sopa de letrinhas para a parte mais interessada: os consumidores.
Apesar de serem plantados no Brasil desde 1997, quando a soja geneticamente modificada foi introduzida ilegalmente nos campos do Sul do país, contrabandeada da Argentina, os transgênicos continuam sendo um grande mistério para os brasileiros.
Pesquisa realizada em 2007 pelo Instituto Ipsos, a pedido do Greenpeace, revelou que a maioria (70%) expressa dúvida muito grande sobre a validade ou não do consumo de transgênicos. O que mostra que os cidadãos não estão recebendo informação necessária que lhes permita a tomada de decisão séria e responsável sobre o assunto.
O debate sobre os transgênicos poderia estar mais popularizado se a indústria respeitasse e o governo exigisse o cumprimento do decreto nº 4.680/2003, que entrou em vigor no Brasil no ano seguinte. Segundo o texto da lei, todo alimento que tenha sido fabricado com matéria-prima transgênica é obrigado a ter em seu rótulo um símbolo triangular amarelo, com um T preto no meio.
Apesar de estar em vigor há cinco anos, apenas algumas marcas de óleo de soja de algumas empresas foram rotuladas -e, mesmo assim, só a partir do início de 2008, por decisão da Justiça, a partir de denúncias enviadas pelo Greenpeace ao Ministério Público. O silêncio da indústria de alimentos permanece para os produtos que estão, em imensa quantidade, nas prateleiras dos supermercados e que são fabricados a partir de soja transgênica -e em breve do milho transgênico, recém-aprovado pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança.
O assunto promete ganhar força a partir do dia 18 de março, quando a CTNBio fará audiência pública sobre o arroz geneticamente modificado da Bayer. Diferentemente do que ocorre com a soja e o milho, que passam por processamento industrial para virar ração ou óleo, com o arroz poderemos ter, pela primeira vez, um produto geneticamente modificado que irá diretamente do campo para o prato do brasileiro. E seremos os primeiros no mundo a consumir o arroz transgênico, já que o produto da Bayer não está aprovado em nenhum outro país.
A correta identificação dos produtos transgênicos dá aos consumidores a liberdade de escolha e à sociedade civil e à indústria de alimentos a chance de responder aos brasileiros a pergunta óbvia: o que são transgênicos?
As pessoas aprenderam a ler rótulos e procuram se informar sobre as substâncias ali indicadas. Se os transgênicos são tão seguros quanto afirmam as empresas que desenvolvem essa tecnologia, que sejam identificados nos alimentos que os contêm. E os consumidores se informarão sobre o assunto, como o fazem hoje para saber os teores de gordura trans, carboidratos e sódio dos alimentos. Anos atrás, a indústria também resistiu a dar esse tipo de informação.
Na verdade, ao final da guerra pela liberação dos transgênicos, quando foi aprovada no Congresso a Lei de Biossegurança, as condições para a “pax transgênica” que deveriam ser seguidas nunca foram respeitadas -a correta identificação dos produtos que contivessem transgênicos e a garantia da coexistência da sua produção com a convencional e/ou a orgânica.
E, como em toda guerra, a maior parte do ônus fica com a sociedade civil, que é obrigada a conviver com a negação de um direito básico: saber o que está comendo.
Indicar nos rótulos aqueles alimentos que de alguma forma têm organismos geneticamente modificados em sua composição é o caminho para que a população brasileira entre de vez nesse debate. Que a decisão dos brasileiros se dê em meio ao excesso de informação, não sob sua escassez.
RAFAEL CRUZ, cientista social, é coordenador da campanha de engenharia genética do Greenpeace. SÉRGIO LEITÃO, advogado, é diretor de campanhas do Greenpeace. Foi diretor do Instituto Socioambiental.
* Artigo originalmente publicado na Folha de S.Paulo, 13/03/2009.
[EcoDebate, 16/03/2009]
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