Governo abre caminho para destruição de cavernas
Governo abre caminho para destruição de cavernas
Novo decreto permite que empreendimentos causem “impactos negativos irreversíveis” em cavernas de “relevância máxima”, o que era proibido
Autor: Herton Escobar/Jornal da USP
Arte: Guilherme Castro/Jornal da USP
Ecossistemas subterrâneos que a natureza levou milhares de anos para esculpir na rocha poderão ser destruídos num piscar de olhos para a construção de estradas, hidrelétricas, obras de saneamento básico e outros empreendimentos considerados de “utilidade pública” — incluindo atividades de mineração —, mesmo que as formações geológicas ou as espécies que existem dentro delas sejam consideradas de “relevância máxima” para conservação. Esse poderá ser o legado — em muitos casos, irreversível — do novo decreto federal que flexibiliza as regras de proteção a cavernas no Brasil, segundo especialistas da USP e de outras instituições.
Publicado em 12 de janeiro, o novo regramento (Decreto 10.935) cria uma brecha para que mesmo cavernas classificadas como de “relevância máxima” para conservação sejam sujeitas a “impactos negativos irreversíveis”, o que não era permitido até agora. Pelo decreto anterior, que vigorava desde novembro de 2008, apenas as cavidades de relevância baixa, média e alta poderiam sofrer esse tipo de impacto, que pode envolver desde desabamentos pontuais até a morte de animais, contaminação de habitats aquáticos ou a destruição total de uma caverna.
Cientistas e ambientalistas criticaram duramente o decreto, interpretado por muitos como mais uma “boiada” passada pelo governo federal atual para pisotear as leis de proteção ambiental do País. A Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE), que representa a comunidade científica que trabalha com cavernas, classificou o decreto como “inconstitucional” e alertou que ele carrega “vários retrocessos” em relação à regulamentação vigente.
“O Decreto Federal número 10.935/2022 foi produzido a portas fechadas, sem diálogo com a comunidade espeleológica e, claramente, mostra a interferência direta dos Ministérios de Estado de Minas e Energia e de Infraestrutura em uma matéria que é de interesse ambiental. Esta interferência visa à facilitação de licenciamento de obras e atividades potencialmente lesivas ao patrimônio espeleológico nacional e que, geralmente, estão associadas a atividades de alto impacto social”, escreveu a SBE, em uma nota pública divulgada no dia 13.
“Se tudo isso for implementado, é uma clara ameaça a essas cavernas de relevância máxima”, diz ao Jornal da USP o geólogo Francisco William da Cruz Junior, professor do Instituto de Geociências da USP e especialista em paleoclimatologia — o estudo de climas passados por meio de evidências geológicas, físicas e químicas que ficam preservadas nas cavernas. “Realmente, estamos diante de um retrocesso ambiental sem precedentes”, completa ele, destacando que as cavernas de relevância máxima eram as únicas que contavam, ainda, com alguma garantia de proteção integral.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
A manutenção da revista eletrônica EcoDebate é possível graças ao apoio técnico e hospedagem da Porto Fácil.