Dieta rica em gorduras causa lesão em uma região do cérebro chamada hipotálamo, abrindo caminho para a obesidade
Foram testados em animais de laboratório três tipos de gorduras comuns na mesa do brasileiro. Descrição é inédita na literatura médica (Fotos: Antonio Scarpinetti)
Pesquisa desenvolvida na Unicamp indica que dietas ricas em gorduras saturadas, como as presentes nas carnes bovina e suína, promovem a lesão de uma região do cérebro chamada hipotálamo, responsável pelo controle da fome e do gasto energético. Segundo o estudo, algumas pessoas, quando expostas a dietas hipercalóricas, perdem gradativamente este controle neural e passam a consumir mais calorias do que gastam, tornando-se obesas com o decorrer do tempo. Esta descrição de uma lesão neurológica induzida por fatores nutricionais, levando ao desenvolvimento da obesidade, é inédita na literatura médica.
“É sabido que quem ingere muita gordura ganha peso, mas acreditava-se, até alguns anos atrás, que a obesidade se devia ao valor energético do alimento, apesar das evidências de que esta não era a única causa. Afinal, entre os indivíduos que consomem dietas ricas em gordura, há os que engordam e outros que não. Por isso, buscamos em modelos animais outras explicações para a gênese da doença”, explica o professor Licio Augusto Velloso, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp.
Licio Velloso orientou as teses de doutorado de Marciane Milanski e Juliana Contin Moraes, que investigaram a influência de ácidos graxos no funcionamento do hipotálamo. As autoras descobriram que as gorduras saturadas possuem propriedades moleculares que ativam uma resposta inflamatória especificamente nesta pequena região do cérebro e, ainda, que tal inflamação é desencadeada por um receptor do sistema imune denominado Toll-Like Receptor 4 (TLR4).
Marciane Milanski (à esq.) e Juliana Contin Moraes: investigando a influência de ácidos graxos no funcionamento do hipotálamo (Fotos: Antonio Scarpinetti)
Os resultados obtidos por Marciane Milanski, referente à primeira parte da pesquisa, foram publicados em janeiro deste ano na conceituada revista Journal of Neuroscience, enquanto o trabalho de Juliana Moraes já está submetido para publicação. Os estudos foram realizados dentro do Laboratório de Sinalização Celular da FCM – componente do INCT (Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia) – e tiveram financiamento da Fapesp e do CNPq.
Se, uma vez inflamado, o hipotálamo perde parte de suas funções e permite que ocorra um desequilíbrio entre ingestão de alimentos e gasto de energia na forma de termogênese, Licio Velloso acrescenta que a exposição aos ácidos graxos saturados, quando prolongada, pode levar à morte de neurônios – processo chamado de apoptose. “A perda de neurônios com função central no controle do peso pode selar o destino do indivíduo, que passa a conviver com uma dificuldade cada vez maior de controlar sua fome”.
A perda definitiva destes neurônios do hipotálamo, na opinião do professor da Unicamp, deve explicar por que pessoas obesas que se submetem a dietas rigorosas, ainda que consigam emagrecer nas primeiras semanas, voltam a engordar. “Hoje podemos afirmar que gorduras saturadas contribuem para o ganho de peso não apenas por seu valor calórico, mas também por causa de propriedades moleculares que esses nutrientes possuem. O efeito depende da carga genética de cada indivíduo. Nos experimentos, vimos que animais com predisposição à obesidade perdem mais neurônios”.
Foco no TLR4
Para investigar os efeitos de dietas hiperlipídicas no hipotálamo, Marciane Milanski testou em animais de laboratório três tipos de gorduras comuns na mesa do brasileiro: um grupo de animais foi alimentado com ácidos graxos presentes no óleo de soja, outro com ácidos graxos de gorduras de origem animal, e um terceiro com gordura monoinsaturada do azeite de oliva. “Vimos que a dieta rica em gordura animal é a que mais influencia para o desequilíbrio entre o que uma pessoa come e o que ela gasta de energia”.
A pesquisadora focou seu estudo no TLR4, um receptor do sistema imune inato que nos protege de infecções primárias ao provocar uma inflamação que sinaliza à célula sobre uma bactéria invasora a ser combatida. “A literatura mostra que ácidos graxos saturados ativam o TLR4 para desenvolver diabetes e obesidade, mas em tecidos periféricos. Fui investigar se este receptor estava presente também no sistema nervoso central, se era ativado e por qual tipo de gordura”.
Marciane Milanski explica que o TLR4, quando ativado, produz citocinas que causam inflamação no hipotálamo, o que interfere com a sinalização dos hormônios responsáveis pelo controle da fome e do gasto energético. Ela acrescenta que qualquer perturbação nesta região delicada do cérebro pode fazer com que o indivíduo sinta uma fome intensa ou, ao contrário, nenhuma fome. “Concluímos que nos animais que receberam dieta saturada este prejuízo na sinalização foi praticamente irreversível”.
A autora da tese concluiu, também, que a gordura do azeite de oliva exerce uma ação protetora, depois de comparar animais assim alimentados com os de grupos que receberam uma dieta controle (com apenas 10% de gordura) e uma dieta rica em gordura animal. “Não registramos diferenças no ganho de peso ou na quantidade de alimento ingerido durante o período de dieta hiperlipídica. No entanto, quando voltamos à dieta normal, o grupo alimentado com gordura saturada continuou ganhando peso, enquanto o outro, que consumiu gordura de azeite, passou a perder peso, até mais do que o grupo controle”.
Morte de neurônios
Juliana Moraes, por sua vez, baseou seu trabalho no conhecimento já existente sobre o papel inflamatório dos ácidos graxos e em um estudo anterior feito no Laboratório de Sinalização Celular. Este estudo mostrou que animais submetidos a dietas ricas em gordura saturada produziam várias citocinas pró-inflamatórias no sistema nervoso central, onde o número de neurônios era diminuído. “Pesquisei se ocorria o mesmo no hipotálamo, justamente o sítio que controla a fome e a termogênese”.
A pesquisadora abre parênteses para explicar que a perda de neurônios pode estar associada a um processo denominado “morte celular programada”, a apoptose, que é benéfica para o desenvolvimento do organismo. “Por exemplo: sem apoptose, os humanos teriam membranas entre os dedos. Mas, quando muito intensa, e ocorrendo em locais errados, ela passa a ser prejudicial, podendo gerar inclusive algumas doenças neurodegenerativas”.
A autora da tese observou que os animais com dieta hiperlipídica apresentavam, de fato, processos de indução de morte celular, e especificamente de neurônios do hipotálamo, quadro não registrado em animais alimentados com ração normal. “Depois da ingestão por certo tempo de ácidos graxos saturados em excesso, ocorre a ativação do TLR4 de forma exacerbada, levando a uma sinalização que culmina em apoptose. Há uma inflamação altíssima, com a morte de neurônios-chaves no controle da fome. Como o neurônio tem pouquíssimas chances de se regenerar, sua função é perdida”.
Entretanto, segundo Juliana Moraes, caso a exposição à alimentação hiperlipídica continue indefinidamente, o próprio TLR4 apresenta um mecanismo de autocontrole em que sua sinalização é atenuada. “O hipotálamo continua inflamado, gerando perturbações no equilíbrio do seu funcionamento, mas trata-se de uma inflamação protetora, já que a apoptose é diminuída e os neurônios deixam de morrer. De qualquer forma, muitos neurônios já foram perdidos”.
O professor Licio Veloso, orientador das pesquisas: “Outras explicações para a gênese da doença”de R$ 20 bilhões ao ano (Foto: Antonio Scarpinetti)
Mecanismos
Na opinião do professor Licio Velloso, as pesquisas feitas por Marciane Milanski e Juliana Moraes elucidam aspectos importantes para a compreensão dos mecanismos que levam ao desenvolvimento da obesidade, contribuindo com futuras pesquisas que ajudem a conter a doença, já considerada um dos principais problemas de saúde pública no mundo. “Mais de 300 milhões de pessoas são obesas e este número deve aumentar substancialmente nas próximas décadas, de acordo com projeções da Organização Mundial de Saúde”.
O docente da Unicamp adianta que o Laboratório de Sinalização Celular está recebendo novos alunos para seguir nesta linha de pesquisa. Uma possibilidade é identificar a carga genética que faz com que um indivíduo, ao ingerir uma dieta rica em ácidos graxos saturados, apresente maior chance de perder neurônios do hipotálamo e tornar-se obeso, enquanto um outro se mantém protegido deste risco, ainda que também abuse da gordura. “No futuro, um teste poderia apontar a predisposição à obesidade ainda na infância, sugerindo aos pais que mantenham a criança afastada de determinado tipo de alimento”.
Velloso observa que uma das pesquisas realizadas sob sua orientação descreve, justamente, o papel dos ácidos graxos saturados para a obesidade. “A picanha não possui apenas um tipo de gordura, são várias misturadas, com 16 e 18 carbonos. E o estudo constatou que as gorduras saturadas de cadeia longa (com mais carbonos), muito presentes nas carnes bovina e suína, são as mais inflamatórias”.
Outro objeto de pesquisa seria saber se o processo de morte de neurônios no hipotálamo, desencadeado pela ativação exacerbada do TLR4, é de alguma forma reversível. “Veja que, até pouco tempo, dizia-se que perder um neurônio era perdê-lo para sempre. Hoje, no entanto, já se fala em regeneração do neurônio, o que é algo complexo, mas possível. A terapia de células-tronco pode ser um caminho para reverter o desenvolvimento da obesidade”.
* Matéria de LUIZ SUGIMOTO, do Jornal da Unicamp – Universidade Estadual de Campinas, ANO XXIII – Nº 421
[EcoDebate, 14/03/2009]
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