Recifes de Coral e ‘Branqueamento’, artigo de Alvaro Esteves Migotto
Uma associação extremamente importante para os recifes-de-coral é a simbiose que ocorre entre as espécies de corais e microalgas conhecidas como zooxantelas. Essas algas vivem no interior dos tecidos dos corais construtores dos recifes, realizando fotossíntese e liberando para os corais compostos orgânicos nutritivos. Por sua vez, as zooxantelas sobrevivem e crescem utilizando os produtos gerados pelo metabolismo do coral, como gás carbônico, compostos nitrogenados e fósforo. As necessidades nutricionais dos corais são em grande parte supridas pelas zooxantelas. Elas estão também envolvidas na secreção de cálcio e formação do esqueleto do coral. Apesar de espécies de corais serem encontradas praticamente em todos os oceanos e latitudes, as espécies construtoras de recifes (corais hermatípicos) estão restritas às regiões tropicais e subtropicais. Os recifes necessitam, geralmente, de águas quentes (25 – 30oC) e claras, longe da influência de água doce. A poluição (esgoto doméstico, vazamento de petróleo etc.) e sedimentação (sedimentos terrígenos levados para o mar devido ao desmatamento e movimentações de terra) põem em risco muitos recifes de corais, incluindo os inúmeros outros organismos que deles dependem (inclusive comunidades humanas que vivem da pesca e coleta de animais marinhos recifais).
Um fenômeno aparentemente recente – não ainda totalmente compreendido pelos pesquisadores – que tem ocorrido em todas as regiões recifais do globo de forma maciça é o branqueamento (do inglês ‘bleaching’). Trata-se basicamente da ‘perda’ dos organismos fotossimbiontes (zooxantelas) presentes nos tecidos do coral (zooxantelas ocorrem também em outros cnidários, como anêmonas-do-mar, zooantídeos, medusas , e em outros invertebrados, como ascídias, esponjas, moluscos etc., que também podem branquear). Como a cor da maioria dos hospedeiros advém, em grande parte, da ‘alga’ simbionte, seus tecidos tornam-se pálidos ou brancos. Nos corais, os tecidos ficam praticamente transparentes, revelando o esqueleto branco subjacente.
Geralmente, os tecidos de colônias branqueadas estão vivos e intactos. Entretanto, a ausência das ‘algas’ simbiontes implica em 1) ‘jejum’ compulsório ao hospedeiro, uma vez que as algas simbiontes suprem a maior parte das necessidades nutricionais do hospedeiro (até mais de 60% do carbono fixado na fotossíntese pode ser translocado da alga para o hospedeiro na forma de glicerol), e 2) diminuição das taxas de calcificação. Portanto, as partes moles e o esqueleto de um coral branqueado não crescem, e a colônia fica mais vulnerável a outros possíveis estresses, como poluição, sedimentação excessiva, colonização por macroalgas do esqueleto eventualmente exposto etc. Apesar de tudo, as colônias branqueadas podem recuperar completamente, em poucos dias ou até mais de um ano, a coloração, dependendo da espécie e do grau de branqueamento. Do mesmo modo, dependendo da espécie, intensidade e duração do estresse, a morte de parte, ou de toda, colônia pode ocorrer logo em seguida ao inicio do branqueamento, ou mesmo algum tempo depois (semanas ou meses). Nestes casos, o esqueleto será rapidamente recoberto por algas e animais sésseis, perdendo a cor branca.
Há uma diversidade relativamente grande de organismos endossimbiontes fotossintetisantes (Dinoflagellata, Chlorophyta, cianobactérias, Bacillariophyaceae, Crysophyta) encontrados em associação com invertebrados marinhos (esponjas, medusas, anêmonas, corais, hidrozoários, moluscos, turbelários, ascídias etc.). As ‘algas’, cuja densidade em corais chega a 106/cm2, provêem carbono para o metabolismo, o crescimento e a reprodução, reciclando eficientemente, também, os excretas (nitrogênio, fósforo) do hospedeiro. Corais hermatípicos depositam carbonato de cálcio mais rapidamente que os ahermatípicos, porque as algas criam um ambiente químico propício à cristalização e precipitação.
Antes de 1980, todos os casos de branqueamento conhecidos eram de extensão geograficamente limitada e causados por estresses claramente locais, geralmente em áreas de circulação restrita ou em recifes atingidos por furacões. Eventos de larga escala, são conhecidos apenas após o início da década de 1980, e desde então têm se tornado mais freqüentes e intensos. Provavelmente o primeiro evento de ocorrência praticamente cosmopolita ocorreu em 1980, afetando todo o Caribe e regiões vizinhas, e grandes áreas do Pacífico. Eventos de grande amplitude ocorreram em 1982/83, 1987/88, e 1993/94; outros, um pouco menores, em 1981, 1986, 1989, 1990. No Brasil, o fenômeno só foi registrado no verão de 1994 (São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco) e observado novamente no início de 1996 (São Sebastião), afetando principalmente o coral Mussismilia hispida e o zoantídeo Palythoa caribaeorum.
O branqueamento agudo é uma resposta a um estresse resultante de várias condições ambientais fora do limite normal de um determinado local. Os estímulos indutivos podem ser:
1) temperatura anormalmente alta ou baixa: quando se considera variações bruscas de temperatura, os corais são mais vulneráveis ao aquecimento do que ao resfriamento da água. Muitas espécies vivem aparentemente próximas ao limite superior letal de temperatura. O aumento de temperatura resulta num aumento da atividade fotossintetizante dos simbiontes e, conseqüentemente, numa alta concentração de oxigênio nos tecidos do hospedeiro. Isto causa um aumento nas taxas metabólicas do coral (organismos metabólico-conformadores) e aumento nas formas tóxicas do oxigênio (peróxidos), que podem danificar as células do hospedeiro e interferir nas vias bioquímicas. O branqueamento geralmente ocorre após um período cuja temperatura superficial da água do mar se eleva alguns graus acima da média histórica para aquele determinado período e local. Exposição a temperaturas 4 a 5 ºC acima da média, por 1 a 2 dias, pode ser suficiente para causar branqueamento e alta mortalidade, enquanto que a elevação de 2 a 3 ºC, e o mesmo tempo de exposição, leva a um branqueamento gradual e menor mortalidade. O branqueamento têm ocorrido em áreas aquecidas pelo fenômeno ‘El Niño’, mas também em locais e/ou anos não afetados por ele.
2) turbidez (níveis baixos de radiação solar): porque as ‘algas’ simbiontes necessitam de luz para a fotossíntese, as comunidades recifais estão limitadas à águas rasas. As taxas máximas de acresção e produtividade ocorrem entre 5 e 15 metros. Esse intervalo pode ser reduzido em locais onde a claridade da água é afetada por sedimentos em suspensão ou pelo aumento de produtividade. Associado à turbidez, altos níveis de sedimentação podem ‘sufocar’ as colônias, diminuindo seu crescimento e inibindo o recrutamento de larvas.
3) altos níveis de radiação UV: a radiação ultravioleta é capaz de danificar o material genético de todos os organismos; em condições experimentais causa branqueamento em corais. Apesar disto e de poder penetrar consideravelmente na coluna d’água (até cerca de 20 m em águas claras), alguns autores acham improvável que o UV seja uma causa importante de branqueamento em condições naturais, porque os corais contêm altos teores de pigmentos protetores, que se mantêm mesmo após o branqueamento. Além disso, corais branqueados são geralmente vistos bem abaixo do limite de penetração da luz UV. Entretanto, uma vez que as condições de insolação que elevam a temperatura dos oceanos incluem também o comprimento de onda ultravioleta, é difícil separar os efeitos destes dois fatores. Não se sabe, também, como a incidência da radiação ultravioleta vai aumentar, e se os mecanismos naturais serão suficientes para a proteção adequada dos organismos potencialmente afetados.
4) poluição: os recifes de corais se desenvolvem em regiões de águas oligotróficas [a ocorrência de recifes diminui ao longo de um gradiente oligotrófico(oceânico)/eutrófico (estuários/ressurgência/poluição)]. Eles necessitam de poucos nutrientes externos, porque possuem mecanismos internos eficientes de reciclagem de nutrientes entre si e as zooxantelas. Recifes sujeitos a altos níveis de nutrientes se deterioram devido ao aumento da turbidez decorrente da maior densidade de planctontes, e crescimento excessivo de algas filamentosas bentônicas (que nessas condições são competivamente superiores aos corais), briozoários e cracas, que acaba por afetar o recrutamento dos corais e aumentar a bioerosão.
Estudos recentes, entretanto, indicam que o aumento de temperatura da água do mar seria o causador primário do branqueamento em larga escala, e, secundariamente, o aumento da incidência de radiação UV.
Isto levou à hipótese de que os recifes de corais seriam particularmente sensíveis e vulneráveis ao aquecimento global. Há, entretanto, controvérsia se os ecossistemas recifais como um todo têm sofrido estresse climático, porque uma série de outros estresses locais causam potencialmente bleaching, podendo atuar sinergicamente com a temperatura (caso do UV, por exemplo). Não se sabe também se o branqueamento é realmente um fenômeno recente, e se em nível sub-letal é patológico ou um mecanismo adaptivo. De qualquer forma muitos pesquisadores acreditam que os recifes de coral atuariam como indicadores do aquecimento global, através do branqueamento maciço. Mundialmente, os recifes têm sido seriamente ameaçados pela atividade antropogênica: destruição física propriamente dita, sedimentação, poluição, pesca predatória, coleta etc.
O clima é comumente visto como algo estável, mesmo considerando-se as variações sazonais e de curto prazo. Entretanto, tem variado substancialmente no passado, sendo previstas mudanças no futuro próximo, particularmente como resultado da atividade humana com relação à composição dos gases da atmosfera. Ao longo de sua evolução, os recifes de coral passaram por mudanças drásticas de clima, e se espera que sejam capazes de sobreviver futuros eventos deste tipo (os cenários previstos são menos extremos que os sofridos em eras passadas). Mas a combinação destas mudanças climáticas com os atuais estresses pode se mostrar letal para muitos ecossistemas recifais.
As mudanças climáticas que já estão ocorrendo, particularmente na atmosfera mas também nos continentes e oceanos, são parte do crescente impacto humano no ambiente planetário. O efeito estufa (apesar de ser um processo natural que possibilitou a evolução da vida na terra, o equilíbrio natural dos gases estufa tem sido modificado artificial e rapidamente pela humanidade) e o buraco de ozônio poderão afetar os recifes de coral de várias maneiras:
1) aumento da temperatura devido ao efeito estufa: a temperatura global deverá aumentar entre 0,16-0,37 ºC por década, resultando num aumento global de 0,5-1 ºC por volta de 2030. Deve-se levar em conta que o aumento será maior nas latitudes altas e em terra. Este aumento não deverá ameaçar a sobrevivência dos recifes, mas os freqüentes episódios de picos extremos de temperatura aumentará a incidência de branqueamento e mortalidade, tornado-os vulneráveis a outros estresses.
2) aumento do nível do mar associado ao aumento de temperatura: provavelmente o nível do mar subirá de 1-9 cm/década, devendo-se esperar um aumento entre 15 e 90 cm até o ano 2100. Estes valores não devem ameaçar a maioria dos ecossistemas recifais (a taxa de deposição de carbonato de cálcio é de cerca de 10 kg/m2/ano, o que significa um crescimento de 3-8 mm por ano), mas poderá devastar muitas ilhas e planícies costeiras que são protegidas por recifes, incluindo nações inteiras (insulares) e grandes cidades, tornando a vida dos que dependem dos recifes difícil ou impossível.
3) alterações nos padrões normais do clima e variações em eventos climáticos extremos – precipitação, nuvens e ventos: deverão ocorrer mudanças no padrão de chuvas, aumento na amplitude geográfica, freqüência e intensidade das tempestades tropicais, e nos eventos de seca e inundações. Conseqüentemente, grandes mudanças deverão ocorrer nas regiões costeiras em termos de erosão e sedimentação.
4) mudanças na química da água do mar devido altas concentrações de CO2: acarretará mudanças de pH e do estado de saturação dos carbonatos nos oceanos. O aumento da acidez das águas superficiais, devido à maior concentração do ácido carbônico, poderá diminuir as taxas de deposição de carbonato de cálcio pelos corais, afetando o crescimento. Por outro lado, deverá estimular o crescimento e aumento populacional de muitas algas, afetando a relação competitiva entre elas e os corais.
**Texto baseado na seguinte bibliografia:
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Diagramação de conteúdo: Antonio Augusto Della Rosa
Alvaro Esteves Migotto
e-mail: aemigott{at}usp.br
Centro de Biologia Marinha – CEBIMar/USP
[EcoDebate, 13/03/2009]
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