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A cidade vista com outros olhos, artigo de Washington Novaes

[O Estado de S.Paulo] A Grande São Paulo mergulhou, afinal, na discussão sobre o que fazer para enfrentar seu dramático problema do trânsito, que ameaça tudo inviabilizar. Já não é sem tempo. E muitos preços terão de ser pagos, sejam quais forem os caminhos – não haverá só ganhadores. Pode ser que os proprietários de automóveis tenham de concordar com mais tempo ou mais dias de rodízio; pode ser que o transporte de cargas seja mais restringido para certos horários e custe mais caro (para os consumidores do que seja transportado); pode ser que se limite o licenciamento; pode ser que se cobrem mais impostos para viabilizar a expansão mais rápida do transporte de massa, principalmente do metrô. Mas está claro que terminou um tempo – da inércia, da passividade, da incompetência.

A inviabilização progressiva das metrópoles já vem sendo tratada há décadas por muitos especialistas, principalmente depois de 1960, quando começarem a ficar claras as conseqüência do rápido aumento populacional e da urbanização progressiva. Naquele ano se chegou no mundo a 3 bilhões de habitantes, um crescimento de 2 bilhões em pouco mais de um século. O primeiro bilhão levara milhões de anos para ocorrer, em 1830; o segundo, menos de um século, em 1927; o terceiro, 33 anos. O quarto só precisaria de 14 anos, o quinto de 13, o sexto de 12. Já estamos aí pelos 6,7 bilhões. E embora as taxas de crescimento em quase toda parte tenham caído muito, segundo os demógrafos da ONU chegaremos pelo menos a uns 8,5 bilhões em meados deste século, na maioria urbanizados. E no Brasil, com o mesmo quadro básico, ainda iremos a uns 240 milhões de pessoas.

Como as nossas políticas públicas continuam seguindo a rota de desincentivar a pequena agricultura, estimular a transferência de populações para os centros urbanos, obrigar as crianças a estudar nas cidades (ainda que não queiram, como mostram pesquisas), formar periferias desassistidas, não cobrar impostos de proprietários que podem pagar em metade dos municípios brasileiros, incentivar a guerra fiscal entre Estados (que retira da administração pública impostos pagos pela sociedade – e que deveriam reverter em seu benefício – e os concentra em poucas mãos), não há nada para surpreender no atual panorama das metrópoles.

Surpreendemo-nos porque queremos. Há quase 40 anos, um grupo de cientistas ingleses fez um estudo clássico para mostrar que, à medida que cresce a aglomeração urbana, surgem problemas de escala que se vão tornando insolúveis. Um vilarejo de mil pessoas não precisa de transporte motorizado para seu dia-a-dia. Da mesma forma, não tem problema para destinar o lixo, captar e distribuir água, depor em fossas adequadas os esgotos. À medida que avança a aglomeração, tudo se torna problema. Ao final desse estudo – Manifesto para a sobrevivência -, concluíram os cientistas que, idealmente, deveríamos organizar-nos em comunidades de 500 habitantes, articuladas com outras comunidades separadas geograficamente e formando redes regionais de até 500 mil pessoas.

Utopias sem compromisso com a realidade, dirão muitos. Esquecidos de que vivem perto desse modelo pequenas comunidades no interior da Europa, por exemplo. Esquecidos, principalmente, de que desfrutar algo parecido se transformou no maior sonho de consumo das nossas populações urbanas, que nos fins de semana correm desenfreadas para os lugares ainda capazes de oferecer algo próximo disso.

Também se pode lembrar que nossos grupos indígenas, enquanto vivem na força de sua cultura, se organizam em pequenas comunidades de umas poucas centenas de pessoas. E sempre que elas ultrapassam 400 ou 500 moradores dividem a aldeia, formam uma nova. Porque sabem que se não o fizerem sobrecarregarão seu entorno, o meio que os sustenta. Criarão problemas insolúveis. Perderão a auto-suficiência no nível pessoal. Provavelmente perderão o luxo de não receber ordens de ninguém.

Um depoimento pessoal, que talvez já tenha sido mencionado neste espaço: há mais de 20 anos, o autor destas linhas caminhava num fim de tarde para o banho na nascente que distava menos de dois quilômetros da aldeia uaurá, no Xingu. E enquanto caminhava pensava em como sua vida se simplificara nas duas semanas em que estava ali: não precisava pensar em dinheiro, aluguel, banco, carro, trânsito, poluição, matrícula e material escolar, dramas políticos, nada. Nesse exato momento cruzou na trilha com um índio que vinha pelado do banho, molhado, sem nada nas mãos nem nos pés. Este escriba, então, começou a se examinar, de baixo para cima – chinelos, bermudas, cueca, camiseta, boné, toalha de banho aos ombros, óculos escuros, uma sacola com roupa suja numa das mãos e, para lavá-la, sabão; na outra mão, um pequena bolsa com escova de dentes, pasta, xampu, sabonete, desodorante, fio dental, escova, pente, analgésicos, antiácidos. Humilhante.

“Você agora nunca mais será a mesma pessoa, depois de ter esse privilégio de ver o mundo pelos olhos de um índio”, disse Darcy Ribeiro ao autor destas linhas, depois de ver a série Xingu – a terra mágica, em 1984. É verdade. Evidenciam-se outras possibilidades.

Não voltaremos a ser índios. Mesmo que fosse possível, não teríamos competência para isso. Mas podemos olhar a experiência, aqui e em outras partes, e criar políticas capazes de levar à desconcentração – e não à concentração forçada. É preciso insistir: é crucial descentralizar a administração pública e promover a participação da sociedade na definição do orçamento em cada área descentralizada, na escolha das metas prioritárias, na execução dessas diretrizes. E na articulação com as políticas das outras áreas físicas descentralizadas. Não se conseguirá, como ponto de partida, uma macropolítica abrangente para qualquer metrópole. Esta, se ocorrer, deverá ser o final do processo, não o início.

Washington Novaes é jornalista E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

Artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo, 25/04/2008