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Notícia

Elementos para um projeto de esquerda radicalmente transformador

O mérito da proposta de Chico de Oliveira reside no fato de estimular a esquerda a propor um projeto tomando a crise como oportunidade de romper com a hegemonia do capital. Retomamos aqui a indagação postulada no início dessa análise: o que seria hoje um projeto de esquerda radicalmente transformador considerando-se a crise econômica e a crise ecológica? Em nossa interpretação essas crises são conexas e, qualquer projeto alternativo, não pode separá-las. É nesse sentido que a proposta apresentada por Chico de Oliveira é insuficiente.

Em entrevista concedida ao IHU On-Line, o sociólogo Marcelo Ridenti afirma: “Não acho estranho, mas desejável a retomada do tema do desenvolvimento após anos de predomínio da ideologia neoliberal. Estranho é retomar o tema sem levar em conta toda uma tradição crítica de esquerda ao desenvolvimentismo, realizada, sobretudo nos anos 1970. Sejam quais forem hoje as retomadas desse pensamento, indissociável da ação, é preciso não esquecer as críticas clássicas a ele e indagar: a quem serve o desenvolvimento? A que grupos e classes sociais? Qual seu custo em termos ambientais? O risco de ignorar questões como essas seria repetir os erros do velho desenvolvimentismo, sem necessariamente reviver seus acertos”. A análise de Ridenti bem que poderia ser endereçada a Chico de Oliveira.

A novidade agora é que qualquer projeto radicalmente alternativo de sociedade não pode desconsiderar a questão ecológica. A questão ambiental revela-se um tema cada vez mais central. Progressivamente, veio parar no centro das atenções e preocupações mundiais. Emerge com intensidade crescente a consciência de que há uma relação vital entre a saga da vida, em especial, da vida humana na Terra e a própria sobrevivência do Planeta. É cada vez mais incontestável, inegável e indefensável o fato de que as alterações observadas no planeta se devem a intervenção humana, ao seu modo produtivo e de consumo.

A formulação de um projeto, de um outro modelo de sociedade por parte da esquerda, deve levar em consideração a superação do paradigma produtivo da sociedade industrial que já se evidenciou poluidor e destruidor do planeta. “A crise pode ser uma oportunidade para descarbonizar a economia”, afirma Achim Steiner, diretor-executivo do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (Pnuma).

Segundo ele, “nós temos uma oportunidade histórica para financiar uma economia mundial descarbonizada. Há urgência para isso. Os custos econômicos associados às mudanças climáticas vão ser cada vez mais pesados. A vulnerabilidade dos países pobres aumenta e nós poderemos ultrapassar rapidamente aquilo que os cientistas chamam de ‘ponto de não retorno’, para além do qual as consequências do aquecimento dificilmente serão administráveis”. Para Steiner, trata-se de substituir a velha economia poluente, por uma nova economia verde.

Insistir na proposta de superação da crise econômica reafirmando as teses desenvolvimentistas e keynesianas do início do século passado, em que pesem, o seu caráter “público”, são insuficientes para dar conta da magnitude dos desafios em que estamos metidos. Não basta redirecionar o leme para o crescimento. É necessário perguntar-se de que crescimento estamos falando, qual o custo desse crescimento, e até mesmo se se faz necessário. Via de regra, o crescimento redunda em ganhos sempre maiores para os de sempre com elevados custos para o conjunto da sociedade.

A descarbonização da economia é possível? Há fatos novos que permitem a possibilidade dessa tese e elas se encontram na evolução das próprias forças produtivas. A Revolução Informacional em curso fez germinar a economia do imaterial. A sociedade industrial está em reviravolta. O imaterial está ancorado no centro da nova economia. André Gorz afirma que “o capitalismo moderno, centrado sobre a valorização de grandes massas de capital fixo material, é cada vez mais rapidamente substituído por um capitalismo pós-moderno centrado na valorização de um capital dito imaterial, qualificado também de ‘capital humano’ ou ‘capital inteligência’”.(1) Por sua vez, Jeremy Rifkin destaca que “conceitos, ideias, e imagens – e não coisas – são os verdadeiros itens de valor na nova economia. A riqueza já não é mais investida no capital físico, mas na imaginação e na criatividade humana”.(2)

Embora a sociedade industrial ainda seja preponderante, a essência da forma de organizar a sua produção é empurrada cada vez mais para a periferia do núcleo propulsor do novo capitalismo – a economia do imaterial, a new economy. Poder-se-ia falar em sociedade pós-industrial – o fato de que as categorias que organizam a representação do paradigma da sociedade industrial já não dão conta de interpretar o novo. Hoje precisamos de uma nova Einleitung (3), porque a essência do capitalismo está radicalmente modificada.

Faz-se necessário, portanto, ter em conta, num projeto radicalmente novo o caráter das mudanças estruturais por que passa o capitalismo. A nova economia potencializa a gestação de um novo tipo de organização produtiva menos poluidora e com potencial descarbonizador enorme. Essa nova economia potencializa novas matrizes energéticas que podem oportunizar inclusive a criação de outro tipo de empregos. Em termos energéticos, a humanidade estará passando da era do petróleo – altamente concentrada e concentradora, além de refém de seu gigantismo – para uma era em que a produção de energia se dará em escala descentralizada e com impactos menores sobre o ambiente.

Jeremy Rifkin nos dá uma idéia do que está por vir: “Estamos no início da terceira revolução industrial: no período dos próximos trinta anos, tudo mudará, como mudou quando o vapor foi substituído pela eletricidade. Desta vez, quem vencerá será a intergrid, a Internet da energia: uma rede elétrica interativa e descentralizada, que transformará milhões de consumidores em pequenos produtores de energia criando um sistema mais confiável, mais seguro e mais democrático. Os edifícios serão envoltos em fotovoltaicos e, em vez de sugar a energia, produzirão. Os motores dos automóveis poderão, por sua vez, transformar-se em minicentrais, os tetos dos pavilhões beberão a energia solar com seus painéis e a restituirão. Uma parte da eletricidade será consumida diretamente no local de produção, reduzindo a dispersão. É uma revolução radical que mudará toda a arquitetura do nosso sistema produtivo. E quem compreender isso primeiro guiará o novo salto industrial”.

Será que não deveríamos nos dar conta de que o próprio capitalismo já entrou em um novo estágio orientado por uma nova matriz produtiva, a revolução informacional, como destaca Rifkin? Parece-nos que a proposta de uma retomada de investimentos capitaneados pelo Estado proposta por Chico de Oliveira se faz ainda tendo como referência o paradigma da sociedade industrial. Porém, tendo presente o impasse ecológico, não seria oportuno e desejável refazer a proposta a partir do novo paradigma produtivo?

Já destacamos aqui, em outros momentos, a aguda intuição do ambientalista Washington Novaes que alerta que o Brasil se encontra numa encruzilhada histórica que pode ser decisiva para o futuro de nação soberana e um ganho comparativo mundial. Segundo ele, “um país que tem a biodiversidade que o Brasil tem, os recursos hídricos, a insolação o ano todo, enfim, com a riqueza que o país tem, deveria ter uma estratégia que colocasse esse fator escasso no mundo numa posição privilegiada como base de políticas. Mas essa estratégia não existe”.

Insistir num modelo econômico industrializante é a melhor saída? Transformar o Brasil num imenso canteiro de obras para destravar o crescimento econômico – por paradoxal que possa ser – não poderá isso sim travar o país mais à frente? A esse respeito, destaque-se que o PAC manifesta um silêncio absoluto sobre a questão ambiental.

Trabalho imaterial e multidão

Há ainda outros elementos importantes a serem resgatados na formulação de um projeto de esquerda. Por ora, chamamos a atenção de apenas um deles. A emergência da economia imaterial, descrita acima, ativa sempre e cada vez mais o trabalho imaterial e, nessa perspectiva, a concepção clássica da categoria trabalho da sociedade industrial e do sujeito do trabalho imbricado a ela, demonstra-se insuficiente para dar conta das mudanças em curso. É importante atentar-se para o fato de que sob a hegemonia do trabalho imaterial “a exploração já não é primordialmente a expropriação do valor medida pelo tempo de trabalho individual ou coletivo, e sim a captura do valor que é produzido pelo trabalho cooperativo e que se torna cada vez mais comum através de sua circulação nas redes sociais”. (4)

Gorz chama a atenção para o fato de que a economia do imaterial apresenta transtornos importantes para o sistema econômico: “Ela indica que o conhecimento se tornou a principal força produtiva, e que, consequentemente, os produtos da atividade social não são mais, principalmente, produtos do trabalho cristalizado, mas sim do conhecimento cristalizado. Indica também que o valor de troca das mercadorias, sejam ou não materiais, não é mais determinado em última análise pela quantidade de trabalho social geral que elas contêm, mas, principalmente, pelo seu conteúdo de conhecimentos, informações, de inteligências gerais” (5) , ou seja, hoje, e cada vez mais, o coração, o centro da criação de valor, é o trabalho imaterial.

Abre-se aqui, sob a perspectiva do sujeito do trabalho, nessa sociedade pós-industrial, a configuração de processos produtivos colaborativos. O caráter “revolucionário” do trabalho imaterial, destacam Hardt e Negri, repousa no fato de que “as formas centrais de cooperação produtiva já não são criadas pelo capitalista como parte do projeto para organizar o trabalho, mas, emergem das energias produtivas do próprio trabalho”(6). Em suma, permite também a produção do the common que dá forma à multidão como um sujeito social ativo, que age com base naquilo que as singularidades têm em comum. A questão de fundo proposta por Negri é “como transformar a autovalorização do trabalho imaterial em uma nova luta de classe, em desejo organizado de apropriação da riqueza social e de libertação da subjetividade”. (7)

Segundo ele, Marx era ligado a uma fenomenologia manufatureira de trabalho industrial. Conseqüentemente, surgia uma concepção fundamental auto-administrativa do partido e ditadura social do proletariado e neste contexto, a relação entre composição técnica do proletariado e, estratégia política chama-se ‘Comum’ ou ‘Partido Comunista’ – e são a ‘comuna’ ou o ‘Partido’ que realizam o reconhecimento do real e propõem uma plena circulação entre estratégia política (subversiva) e organização (biopolítica) das massas.

Nesta perspectiva, o partido é o motor de produção de subjetividade e se torna o instrumento na produção de subjetividade subversiva. Agora, diante da emergência do novo modo produtivo indaga: “Nossa questão é: qual é a produção de subjetividade para a tomada de poder, hoje, por parte do proletariado imaterial? Dito com outras palavras, o discurso pode ser assim formulado: se, hoje, o contexto da produção é constituído pela cooperação social do trabalho imaterial, e tudo isso chamamos General Intellect –, como será possível construir o corpo subversivo [biopolítico] do intelecto geral?”. (8)

Em sua opinião, o sujeito revolucionário, hoje, deve basear-se em outro esquema: não se coloca mais como preliminar um eixo industrial e/ou de desenvolvimento da economia, “mas através daquela multidão na qual se configura a intelectualidade de massa [general intellect], irá propor o programa de uma cidade libertada na qual a indústria se dobre às urgências da vida, a sociedade se dobre à ciência, o trabalho se dobre à multidão”. (9)

Cabe destacar que, para Negri e Hardt, o conceito de multidão é amplo e não se restringe aos trabalhadores que estão no mercado formal de trabalho. Segundo eles, devemos distinguir a multidão da classe operária. O conceito classe trabalhadora passou a ser usado como um conceito exclusivo, não apenas distinguindo os trabalhadores dos proprietários dos meios de produção – aqueles que não precisam trabalhar para se sustentar – mas também separando a classe operária dos outros que trabalham. Em sua utilização “mais estrita, o conceito é empregado para se referir apenas a trabalhadores industriais, distinguindo-os dos trabalhadores da agricultura, do setor de serviços e de outros setores; em seu sentido mais amplo, a expressão classe operária refere-se a todos os trabalhadores assalariados, diferenciando-os dos pobres que prestam serviços domésticos sem remuneração e de todos os demais que não recebem salário”. (10)

Porém, o conceito de multidão repousa na tese de que “não existe uma prioridade política entre as formas de trabalho: todas as formas de trabalho hoje em dia são socialmente produtivas, produzem em comum e também compartilham um potencial de resistir à dominação do capital. Podemos encarar essa realidade como uma igualdade de oportunidades de resistência. Isto não significa, queremos deixar bem claro, que o trabalho industrial ou a classe operária não sejam importantes, mas apenas que não detêm um privilégio político em relação às outras classes do trabalho no interior da multidão. Em contraste com as exclusões que caracterizam o conceito de classe operária, assim, a multidão é um conceito aberto e expansivo. A multidão confere ao conceito de proletariado sua definição mais ampla: todos aqueles que trabalham e produzem sob o domínio do capital”. (11)

Os elementos acima descritos de forma concisa exprimem que com a emergência da economia do imaterial faz-se necessário atentar para o surgimento do trabalho imaterial, que por sua vez, potencializa a configuração de um novo sujeito do trabalho – a multidão. As lutas contra o capital precisam se dar conta de que a classe trabalhadora de que falamos hoje já não é a mesma da sociedade industrial. Um programa de lutas anticapitalista precisa ter em conta esses novos acontecimentos no mundo do trabalho.

Repartir o trabalho existente

A emergência da economia do imaterial associado à introdução das Novas Tecnologias da Comunicação e da Informação (NTCI) recoloca em pauta a redução da jornada de trabalho, uma bandeira histórica dos trabalhadores. Repartir o trabalho existente é uma demanda atualíssima, considerando-se que o novo capitalismo fez aumentar a produtividade e reduzir os postos de trabalho. Recentemente em função da crise esse debate foi retomado, mas não pela ótica emancipatória e sim da flexibilização.

O empresariado desatou uma pesada pressão sobre os sindicatos. Aproveitam-se da fragilidade dos trabalhadores para tentar concretizar uma espécie de reforma trabalhista. Na pauta dos empresários para enfrentar a crise, foi apresentada a proposta de redução da jornada e salários sem a garantia do emprego.

O que se verifica no Brasil – assim como em outros países – é que há pessoas que trabalham demais, ao passo que outras literalmente não trabalham. Há várias alternativas possíveis para isso: 1) Redução da jornada de trabalho sem redução do salário; 2) Eliminação das horas-extras ou do ‘sobretrabalho’, o que permite que outras pessoas possam também trabalhar. Assim se instauraria um círculo de solidariedade na sociedade brasileira que por si só já seria capaz de diminuir em grande parte o grave problema do desemprego no Brasil.

No entanto, a simples redução da jornada de trabalho não aumenta automaticamente o tempo livre das pessoas, tempo disponível para desenvolver atividades que não tenham uma finalidade econômica. Trata-se, pois, de ir criando também uma nova cultura do tempo livre que não redunde num segundo ou mesmo num terceiro emprego. Trata-se de ir mudando a centralidade do tempo fora do trabalho, ou seja, criar uma cultura que revalorize os tempos de relações, de sociabilidade, o tempo dedicado, por exemplo, aos filhos ou às pessoas idosas e fazer com que estes tempos reencontrem seu lugar primordial como indicadores de melhores condições de vida, individual e coletiva. Portanto, por trás da redução da jornada de trabalho e do conseqüente aumento dos outros tempos, está a questão da qualidade de vida. Uma agenda de esquerda não pode abordar o tema da redução da jornada apenas do ponto de vista econômico.

(Ecodebate, 21/02/2009) publicado pelo IHU On-line, 20/02/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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