O drama de uma sem-registro
Adriana de Almeida, de 32 anos, não tem certidão, não existe para o Estado e não tem acesso à saúde pública. Matéria de Marcelo Auler, publicada pelo O Estado de S.Paulo, 06/01/2007.
Adriana Mendes de Almeida chega a 2008 sem realizar seu principal sonho. Apesar de todo o seu empenho ao lado do marido, Alex Fernandes da Silva, ela não conseguiu em 2007 ser reconhecida oficialmente como cidadã. Aos 32 anos, permanece sem registro civil, logo, não existe para o Estado.
Como Adriana, um grande número de brasileiros não tem registro de nascimento. A quantidade exata desses “não cidadãos” é desconhecida até mesmo pelo IBGE, que somente no próximo Censo incluirá um quesito específico sobre o assunto. O que o instituto dispõe é do número anual das crianças que deixam de ser registradas até o primeiro trimestre do ano seguinte do nascimento. É o chamado sub-registro.
Os porcentuais de sub-registro resultam da comparação entre o número de nascidos vivos informados pelos cartórios em relação ao número de nascimentos estimados pelo IBGE, na população de determinado espaço geográfico. O último estudo do IBGE a respeito, com dados até 2006, mostra que naquele ano, em todo o País, 12,7% dos recém-nascidos não foram registrados até março de 2007, o que corresponde a 407 mil crianças. Os dados coligidos até 2006 mostram que está havendo uma queda nos sub-registros. Em 2000, eles representaram 21,9% e correspondiam a 802.462 recém nascidos. Subiram para 23% no ano seguinte e desde então o índice vem caindo (veja quadro).
Só na família de Adriana há pelo menos outros cinco casos de pessoas não reconhecidas pelo Estado. Sua irmã Andréia, os dois filhos dela e os dois filhos da irmã mais velha, Ivanilda, nunca contaram com uma certidão de nascimento. As crianças não freqüentam escolas e não podem ter atendimento em postos de saúde. Os filhos de Adriana e Alex – Rogério, de 13 anos, e Roberto, de 12 – têm certidão de nascimento, pois o pai os registrou independentemente da mãe não existir oficialmente.
Adriana não foi registrada porque seus pais, Abnor Mendes de Almeida e Cleuza Mendes da Silva, eram alcoólatras e não ligavam para as filhas.
Mesmo quando ela, ainda pequena, foi internada no Hospital Pediátrico Jesus, a mãe só a visitou duas vezes. É daquela época, segundo Adriana, a deficiência do seu braço esquerdo. “Deram injeção errada e fiquei com paralisia”, explica.
A bebida levou Cleuza à morte. Abnor, na época, chegou a fazer uma “vaquinha” com os amigos e parentes para pagar as despesas do enterro da mulher. Mas o dinheiro jamais chegou à funerária: foi gasto no consumo de cachaça, enquanto Cleuza era enterrada como indigente. Até os 10 anos, a menina foi criada por uma tia, mas quando esta faleceu, ela viveu “rodando pra lá e pra cá, nas casas de parentes”.
Em 1994, quando conheceu Alex, foi incentivada a “correr atrás” do documento. Os dois buscaram ajuda do então deputado federal João Mendes , que estava no PTB. Ele os encaminhou para o município de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, apesar de Adriana ter nascido no bairro de Campo Grande, na zona oeste do Rio, e de morar em Guadalupe, na zona norte da cidade. “Foi muita dificuldade, tinha hora em que eu pensava em jogar uma bomba e desistir”, diz.
“Íamos lá toda semana e em cada ida dessas, além de faltar ao emprego, gastava quase R$ 30 em condução”, relembra o marido, que acabou despedido do açougue em que trabalhava. Após uma longa espera, chamados à Vara de Família daquele município, souberam que o processo estava parado. Foi quando aconselharam a contratação de um advogado. “Mas não tínhamos dinheiro!”
Recentemente, Adriana descobriu que tem problemas na tireóide e não pode se tratar. Um dos exames necessários ela fez com o dinheiro do marido. Mas não tem mais como bancar o tratamento particular. Com Alex, foi tentar se tratar em Macaé – a 180 km da capital, na Região dos Lagos -, onde uma amiga prometeu atendimento gratuito. Ao chegarem ao hospital, exigiram um documento. Perdeu o dia e o dinheiro da passagem.