48 índios Guarani assassinados em Mato Grosso do Sul no ano de 2007… O que temos a ver com isso? artigo de Iara Tatiana Bonin
“Diante do amplo espectro de dor dos assassinatos de índios Guarani-Kaiowá não podemos mais escapar à pergunta: qual a parte que nos cabe neste grande genocídio? Talvez devêssemos nos perguntar: que tipo de mundo estamos colaborando para construir?”, pergunta Iara Tatiana Bonin, doutora em Educação/UFRGS em artigo que nos foi enviado e que publicamos. IHU On-line, 06/01/2008
Eis o artigo.
Cláudio, Gilson, Marcelo, Marina, Márcio, Ramona, Francisco, César, Edson, Mário, Valdir, Lucas, Ademir… Nomes tão conhecidos, nomes comuns… Uma listagem com 48 nomes de pessoas quase anônimas, daquelas que não contam nas estatísticas, que pesam pouco nas contagens oficiais, as que menos importam… Nomes de Guarani-Kaiowá assassinados no ano de 2007, pessoas que também sonhavam com dias melhores, mortos agora, vítimas da violência cometida contra os povos indígenas em Mato Grosso do Sul. (Os dados são do Conselho Indigenista Missionário indicam que ocorreram 76 assassinatos de indígenas no Brasil em 2007, sendo 48 no Mato Grosso do Sul).
Nomes são marcas que nos individualizam, que nos identificam, e por isso é certamente mais fácil lidar com números, quando se trata de expor a violência. A morte parece menos contundente quando remetida ao campo da estatística. Mas os nomes falam, sussurram histórias pessoais, lembram pessoas que conhecemos, põem em evidência a humanidade e a materialidade das vidas que foram roubadas. Ao lermos os casos de assassinatos noticiados pelos jornais, esses nomes já não nos são indiferentes, especialmente quando se descrevem as condições das mortes: espancamentos, corpos mutilados por inúmeras facadas ou tiros, enforcamentos, estupros seguidos de morte, uso de meios cruéis, assassinatos praticados diante de crianças, com participação de mulheres e adolescentes. Dados que denunciam uma situação insustentável, e que pode ser vista como um grande grito de socorro.
Todos esses nomes pertencem a pessoas que compartilhavam a vida com outras – eram filhos e filhas, pais e mães, irmãs e irmãos, sobrinhos e netos, eram parte de uma família, de uma comunidade, de um povo, de uma rede de relações que há muito está ameaçada. E a ameaça não é a barbárie ou a falta de civilidade, que muita gente insiste em atribuir aos índios, mas sim a omissão do poder público, a situação de confinamento em que vivem, a falta de terra, a falta de condições adequadas para organizar e manter a vida, a falta de perspectivas, a ausência de justiça e de direitos. A vida dos Guarani-Kaiowá está ameaçada pelo confinamento de uma imensa população em pequenas áreas, que por sua vez é resultado de uma insaciável sede de produção, de lucratividade, de acumulação que nos torna cegos para as injustiças decorrentes do modelo de desenvolvimento que adotamos como único e inquestionável.
Os Guarani-Kaiowá vivem um estado de exceção, parecido com aquele experimentado em tempos de guerra ou de repressão, só que para eles isso se tornou rotineiro e, para nós, parece não fazer diferença. Viver em confinamento, enfrentar a escassez, a fome, a violência, o descaso, o preconceito, a falta de assistência, é uma rotina que torna impossível manter laços de solidariedade, e vivenciar certas tradições, certos costumes que regulam as relações sociais nestas comunidades.
Se a desnutrição infantil, noticiada com destaque anteriormente no estado do Mato Grosso do Sul, parecia abalar aquela sensação de que vivemos num país de fartura e de democracia, as notícias de assassinatos indígenas que agora nos chegam desse mesmo lugar parecem não produzir o mesmo efeito. Será que realmente acreditamos se tratar de violência interna, de conflitos entre índios, e pensamos que nada temos a ver com isso? Se nos conforta essa certeza, é necessário, então, sacudirmos a poeira que recobre o que chamamos de justiça e reconhecer que a violência que assola a vida indígena tem causas implicadas diretamente com nossas vidas, com nosso modelo de sociedade e com as escolhas que temos feito em termos sociais e políticos. Temos tudo a ver com essa lista de nomes de mortos, bem como com as incontáveis listas de pessoas submetidas à semi-escravidão e a condições desumanas de sobrevivência em cada canto desse país. Temos tudo a ver com as concessões dadas a grandes empresas, com a acumulação de terras em latifúndios, com a ampliação dos já imensos plantios de soja, cana-de-açúcar, eucaliptos, e dos cada vez mais amplos campos de criação de gado. E temos também tudo a ver com os desvios de recursos e com a priorização dada a setores financeiros, restringindo sempre mais os investimentos em questões sociais, entre elas a demarcação das terras indígenas. Afinal, todos nós participamos da consolidação de certas formas de governo, consciente ou inconscientemente, falando ou calando, e desse modo legitimamos certas estratégias políticas e acatamos a omissão de tantos direitos sociais.
Se as vítimas indígenas em Mato Grosso do Sul têm nomes, os agressores também têm! Não se trata de responsabilizar apenas a mão que empunhou a arma, a faca, o terçado, a corda da forca, ou que desferiu os golpes, espancando e matando a pauladas. Trata-se de atribuir responsabilidades também, e principalmente, ao poder público, ao Estado brasileiro e ao Governo Federal pela negligência e pelo descaso que leva ao não cumprimento dos direitos constitucionais dos povos indígenas. Se a responsabilidade em demarcar terras indígenas suficientes e adequadas – assegurando assistência e respeito pelas culturas, crenças, tradições e estilos de vida dos distintos povos indígenas – fosse efetivamente assumida pelo Governo Federal, é possível que estes cruéis assassinatos não acontecessem. Isso porque, ao assegurar o restabelecimento das condições de vida e de dignidade desta população, seria possível vislumbrar um futuro pelo qual vale a pena viver e lutar. Não se trata de assegurar privilégios aos indígenas, como muitos costumam afirmar, mas de resguardar seus direitos, constantes nas leis brasileiras e referendados, também, em diversos documentos, convenções e normas internacionais.
Pensar nos nomes, nos rostos, na agonia dessas tantas vítimas do descaso e do confinamento nos causa desalento, e é necessário levar em conta que elas tinham diferentes idades… 12, 13, 14, 15, 16 anos! Adolescentes ainda, esfaqueados, violentados, espancados, sem possibilidades de defesa. Adolescentes como nossos filhos, irmãos, netos, passeando, divertindo-se ou a caminho de casa, vítimas da mesma violência que nos apavora quando nossos familiares saem para seus afazeres cotidianos. As vítimas, com seus nomes, histórias e vivências, eram pessoas como nós, para quem certamente a justiça se faz bem mais justa.
Também foram assassinados homens e mulheres Kaiowá de 18, 20, 22, 25 anos, outros de 30, 32, 36; 40, 60, 70, 107 anos! E, diante desse amplo espectro de dor, não podemos mais escapar à pergunta: qual a parte que nos cabe neste grande genocídio? Talvez devêssemos nos perguntar: que tipo de mundo estamos colaborando para construir? Quais são os valores que cultivamos? Quem são as pessoas que contam e pelas quais nos mobilizamos para assegurar a vida? Quais são as causas pelas quais lutamos? O que ainda é capaz de nos indignar? E, necessariamente devemos indagar sobre as ações daqueles que escolhemos para nos representar e para fazer valer nossos direitos de cidadania e para resguardar nossa condição de homens e mulheres que, diante da lei, desfrutam dos inalienáveis direitos à vida, à dignidade, à liberdade, à segurança.
Devemos nos sentir responsáveis, como pessoas e como cidadãos, pelas grandes injustiças cometidas contra aqueles que se tornam cada vez mais vulneráveis, em especial os povos indígenas para quem reservamos áreas cada vez menores, e de quem a cada dia subtraímos mais e mais as condições de bem viver. Mas, acima de tudo, devemos atribuir responsabilidade àqueles que, ao assumir o governo, assumiram a inegável atribuição de zelar pelo bem de todos, e de cada um.
(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line, 06/01/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]