O ponto fraco dos EUA: consumo maior do que a produção
Os EUA estão perdendo espaço na economia internacional e perdendo produtividade e competitividade internamente
Artigo de José Eustáquio Diniz Alves
Os Estados Unidos da América (EUA) saíram da Segunda Guerra como a maior e mais rica economia do mundo, que tinha como rival a extinta União Soviética (URSS). Nos “30 anos dourados” (1945-1975) a economia dos EUA cresceu em ritmo forte com superávits comerciais e saldo positivo nas transações correntes. A dívida pública, que tinha atingido elevado patamar durante a Segunda Guerra, foi reduzida. Neste período, a maior economia do mundo era exportadora de capitais e aumentou a sua influência no mundo.
Em 15 de agosto de 1971, o presidente Richard Nixon encerrou unilateralmente a conversibilidade do dólar em ouro (um evento conhecido como “Nixon Shock”), pondo fim ao sistema de Bretton Woods (1944–1971), que exigia que os EUA lastreassem dólares em ouro (1 onça = US$ 35). Com o fim do padrão-ouro, o dólar tornou-se uma moeda fiduciária (lastreada em confiança, não em metal).
Na década de 1980, especialmente durante o governo Ronald Reagan (1981–1989), os déficits gêmeos (fiscal e comercial) dos EUA cresceram significativamente devido a uma combinação de políticas econômicas expansionistas, como a estratégia de confronto com a URSS que elevou os gastos militares em 6% do PIB (ex: programa “Guerra nas Estrelas”) e a redução dos impostos dos ricos.
O Federal Reserve (Paul Volcker) manteve taxas de juros elevadas (acima de 10%) para combater a inflação, atraindo capitais estrangeiros e valorizando o dólar (em 40% entre 1980-1985). O dólar forte encareceu as exportações e barateou importações, ampliando o déficit comercial. Os cortes de impostos (“supply-side economics”) beneficiaram as elites privilegiadas sem gerar poupança interna suficiente para financiar os investimentos. Os EUA atraíram poupança externa (via compra de títulos do Tesouro por estrangeiros) para cobrir os déficits, criando um ciclo dependente de capital estrangeiro.
Porém, o governo de Bill Clinton (1993–2001) foi marcado por significativos superávits fiscais e uma forte expansão econômica, contrastando com as décadas anteriores e posteriores de déficits. Entre 1998 e 2001, os superávits fiscais acumularam US$ 559 bilhões (em valores nominais), devido ao aumento de impostos – reforma tributária de 1993 que elevou impostos para os mais ricos e corporações, contenção de despesas militares (pós-Guerra Fria) e crescimento econômico com o boom da internet (dot-com), além do aumento da produtividade e da arrecadação. A dívida/PIB caiu de 48% (1993) para 33% (2000) – menor nível desde os anos 1970. Assim, na década de 1990, com o fim da Guerra Fria, a queda do muro de Berlim e o fim da URSS, os EUA passaram a ser o grande Poder Unipolar.
Todavia, depois dos atentados do 11 de setembro de 2001, os EUA se aventuraram no papel de xerifes do mundo, gastaram trilhões de dólares nas guerras do Afeganistão e do Iraque e passaram a administrar déficits comerciais e fiscais crescentes, que foram potencializados pelos cortes de imposto do governo George Bush (2001-2008) e pela crise financeira de 2008. Com o dólar forte, o déficit fiscal estimulou o consumo, que estimulou as importações e aumentou o déficit comercial. Este processo só foi viabilizado devido ao endividamento externo, pois países estrangeiros, como Japão, China e Alemanha compraram títulos do tesouro americano, financiando os desequilíbrios internos dos EUA.
Desta forma, é fácil concluir que existe um problema básico nos EUA que é um consumo interno maior do que a produção interna. Os americanos possuem baixas taxas de poupança, o que gera baixos níveis de investimento (Formação Bruta de Capital Fixo) e alta dependência da poupança externa. Como disse de forma verdadeira (mas de maneira preconceituosa) o vice-presidente dos EUA, J.D. Vance: “Pedimos dinheiro emprestado aos camponeses chineses para comprar as coisas que esses camponeses chineses fabricam”.
Ou seja, existe um desequilíbrio macroeconômico nas relações internacionais, principalmente entre as duas maiores economias do mundo. O gráfico abaixo, com dados do FMI, mostra que as taxas de poupança e investimento da China são muito superiores às taxas dos EUA e que a China é exportadora de poupança, enquanto os EUA dependem da poupança externa. No início do anos 1980, as taxas de poupança e investimento dos EUA estavam em torno de 23% do PIB e as taxas da China estavam em torno de 33% do PIB. Na atual década, as taxas americanas caíram para cerca de 20% do PIB e as taxas da China estão acima de 40% do PIB. A China mantém elevadíssimas taxas de poupança e investimento. E exportam a poupança excedente.
Ou seja, a China investe muito, mas faz isto com capital interno e não depende de investimentos estrangeiros. O gigante asiático produz mais bens e serviços do que consome e ainda financia o consumo dos EUA e de outros países.
O consumo das famílias representa cerca de 70% do PIB dos Estados Unidos, sendo 16% de investimentos (empresariais e residenciais) e 16% gastos do governo (federal, estadual e local). Na China, o consumo das famílias representa uma parcela significativamente menor do PIB do que nos EUA. Em termos aproximados: consumo das famílias (consumo privado): cerca de 40% do PIB, gastos do governo: 14%, Investimentos fixos (formação bruta de capital): 42% e exportações líquidas: 4% do PIB.
Essa diferença reflete a estratégia de desenvolvimento da China, que historicamente focou em infraestrutura, indústria e exportações. O presidente Xi Jinping lançou o programa “Made in China 2025” em 2015. Foi uma das iniciativas mais ambiciosas do governo chinês para transformar o país de uma economia baseada em mão de obra barata e manufatura básica para uma potência tecnológica e industrial de ponta. Os objetivos principais do Made in China 2025 são: Reduzir a dependência de tecnologia estrangeira; Substituição de importações; Elevar a produtividade industrial e Subir na cadeia de valor global da estrutura produtiva.
Os 10 setores estratégicos destacados pelo plano: Robótica e automação avançada; Aeronáutica e aeroespacial; Tecnologia da informação (TI) de última geração; Biotecnologia e equipamentos médicos; Veículos elétricos e híbridos; Equipamentos ferroviários de alta velocidade; Energia elétrica (particularmente renováveis); Novos materiais; Máquinas-ferramentas de alta precisão e Agricultura moderna e máquinas agrícolas.
Como mostraram Kurt Campbell e Rush Doshi no artigo “Underestimating China” (Foreign Affairs, 10/04/2025): “Em análises cruciais, a China já superou os Estados Unidos. Economicamente, ostenta o dobro da capacidade de produção. Tecnologicamente, domina tudo, de veículos elétricos a reatores nucleares de quarta geração, e agora produz anualmente mais patentes ativas e publicações científicas de alto nível. Militarmente, possui a maior marinha do mundo, reforçada por uma capacidade de construção naval 200 vezes maior que a dos Estados Unidos; estoques de mísseis muito maiores; e as capacidades hipersônicas mais avançadas do mundo – todos os resultados da modernização militar mais rápida da história. Mesmo que o crescimento da China tenha desacelerado e seu sistema falhe, ela permanecerá formidável estrategicamente”.
A estratégia de desenvolvimento da China possibilitou a redução da pobreza e fortaleceu a economia.
O principal fator das vantagens chinesas são as altas taxas de poupança e investimento e o baixo nível de consumo das famílias. A China renovou toda a infraestrutura do país, modernizando os portos, aeroportos, as redes de metrô, todo o setor de telecomunicações e construiu a maior rede de trens balas do mundo. Além de investir na transição energética e na expansão das áreas de floresta do país. Todas essas ações fortaleceram a produtividade e a competitividade da economia, o que possibilitou um superávit de US$ 1 trilhão na balança comercial em 2024.
Os EUA, ao contrário, estão perdendo espaço na economia internacional e perdendo produtividade e competitividade internamente. A solução proposta pelo presidente Donald Trump é criar barreiras tarifárias para reduzir o déficit comercial e incentivar a substituição de importações. Tarifando as importações de US$ 3,3 trilhões em algo entre 25% e 30% os EUA poderiam, supostamente, zerar o déficit comercial e reindustrializar o país. Nesta perspectiva, o resto do mundo pagaria pela redução do déficit comercial e o povo americano pagaria pelo aumento da produção interna via aumento da inflação e da desvalorização do dólar.
Evidentemente, é um desafio e tanto fazer o mundo se dobrar aos propósitos trumpianos. Também a popularidade interna do presidente americano já começa a sofrer abalos diante do aumento dos preços internos. Por conta disto, o mundo está assistindo recuos e mudanças na política tarifária lançada no dia 2 de abril de 2025. Principalmente, a China não se dobrou aos propósitos de Trump. A venda de títulos do tesouro americano evidenciou a dependência dos EUA diante dos investidores internacionais.
O governo Trump busca resolver os problemas econômicos dos Estados Unidos de maneira unilateral, impositiva e sem considerar perspectivas de benefícios mútuos. Paralelamente, promove o desmonte da governança internacional. A chance de sucesso é nula, especialmente porque a China é um competidor capaz de resistir e impor perdas pesadas.
A solução para os EUA seria aumentar as taxas de poupança interna, reduzir o consumo como proporção do PIB e aumentar as taxas de investimento internas. Ou seja, a China precisa aumentar o poder de compra de sua população e os EUA precisam diminuir o poder de compra de sua população. Democraticamente, o caminho americano é mais difícil e não está nos planos da estratégia do atual governo Trump. Enquanto não se chega a um acordo, a guerra comercial trará perdas generalizadas e nenhum ganho coletivo.
José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
ALVES, JED. O tarifaço tresloucado de Trump está gerando caos na economia global, # Colabora, 07/04/2025 https://projetocolabora.com.br/ods12/tarifaco-tresloucado-de-trump-promove-caos-na-economia-global/
ALVES, JED. O governo Trump e a desordem do comércio internacional, # Colabora, 10/03/2025
https://projetocolabora.com.br/artigo/o-governo-trump-e-a-desordem-do-comercio-internacional/
Kurt M. Campbell and Rush Doshi. Underestimating China, Foreign Affairs, April 10, 2025
https://www.foreignaffairs.com/china/underestimating-china
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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