O protagonismo das novas gerações na transição energética
As novas gerações não podem ser tratadas como símbolo genérico de futuro: elas são presença ativa no presente, organizadas, articuladas e determinadas a reimaginar o destino energético do planeta
Reinaldo Dias
Articulista do EcoDebate, é Doutor em Ciências Sociais -Unicamp
Pesquisador associado do CPDI do IBRACHINA/IBRAWORK
Parque Tecnológico da Unicamp – Campinas – Brasil
http://lattes.cnpq.br/5937396816014363
A transição energética é, hoje, um dos maiores desafios globais. Mas ela não se resume à troca de fontes fósseis por renováveis. Estamos diante de uma transformação profunda — que mexe com os modos de produzir, consumir e organizar a vida em sociedade. Mais do que uma questão tecnológica ou ambiental, trata-se de uma disputa política, ética e social sobre o modelo de desenvolvimento que queremos e, sobretudo, sobre quem terá voz na construção desse futuro.
Em maio de 2024, publiquei um artigo no Ecodebate (Dias, 2024) defendendo que a mobilização de jovens e a educação climática são inseparáveis diante da intensificação dos eventos extremos. Afirmei, então, que mais do que compreender os impactos da crise climática, é preciso preparar as novas gerações para enfrentá-la e transformá-la.
Desde então, essa presença jovem só se ampliou — e ganhou novos contornos. O ativismo de figuras como Greta Thunberg e movimentos como o Fridays for future mostra que estamos diante de uma força política expressiva e global. Uma ação que não é apenas reativa, mas propositiva: educativa, transformadora e profundamente crítica.
Um ano depois, o debate se torna ainda mais urgente. O papel das novas gerações na transição energética está no centro das disputas atuais, especialmente com a aproximação da COP30, que acontecerá no Brasil. De um lado, setores da sociedade civil e da juventude pressionam por uma mudança de rota — justa, inclusiva e democrática. Do outro, o lobby dos combustíveis fósseis atua para frear avanços estruturais e preservar privilégios históricos. Neste cenário, as novas gerações não podem ser tratadas como símbolo genérico de futuro: elas são presença ativa no presente, organizadas, articuladas e determinadas a reimaginar o destino energético do planeta.
Este artigo propõe uma análise crítica do protagonismo das novas gerações na transição energética. O foco está nas tensões, nas barreiras e nas alternativas que jovens vêm construindo em diferentes territórios, conectando justiça social, ação climática e democracia energética. Em vez de apenas adaptar-se ao colapso, essas vozes propõem caminhos que colocam a vida no centro — e desafiam o sistema a mudar.
-
A crise energética como disputa social e política
Apesar de muitas vezes retratada como um problema técnico, a crise energética é, antes de tudo, um fenômeno social e político. Quem define o que está em crise, quais riscos merecem atenção e quais soluções são legítimas, participa ativamente da construção de narrativas que moldam políticas públicas. Nessas disputas, as novas gerações vêm ocupando uma posição singular: são, ao mesmo tempo, impactadas pelas decisões tomadas e mobilizadas para transformá-las (Schlosberg, Collins e Niemeyer, 2017).
A forma como o risco e a vulnerabilidade são discutidos molda quem será incluído ou excluído das transições. Em muitas políticas de mitigação, jovens de territórios periféricos, rurais ou marginalizados seguem fora da tomada de decisão. Quando mal planejadas, essas transições podem criar “vítimas climáticas” — populações que, em vez de se beneficiarem da mudança, enfrentam novos riscos e exclusões, como o acesso precário à energia ou a falta de representação em fóruns deliberativos (Sovacool, 2021).
A desigualdade na participação não é acidental. Historicamente, decisões sobre infraestrutura energética, extração de recursos e grandes obras foram tomadas sem consulta pública, com impactos profundos sobre comunidades que mal sabiam do que se tratava. As novas gerações, muitas vezes herdeiras desses passivos ambientais e sociais, agora se organizam para reverter essa lógica.
Mais do que protestar, essas gerações vêm disputando o significado da transição energética. Propõem alternativas que integram justiça ambiental, respeito à diversidade cultural e direito ao futuro. Inspiradas por movimentos como o da ecologia política e por uma longa tradição de lutas territoriais, essas vozes jovens não aceitam que a transição seja apenas técnica. Exigem que ela seja ética e participativa, construída com quem mais será afetado (Martinez-Alier et al., 2016).
-
Mobilização jovem e redes transnacionais por justiça energética
O crescimento de movimentos juvenis pelo clima tem sido uma das marcas da última década. O Fridays for Future, surgido em 2018 com os protestos de Greta Thunberg, mostraram ao mundo que os jovens não estão alheios à crise ambiental — ao contrário, estão mobilizados, conectados e informados. Por meio de greves escolares, manifestações globais e campanhas nas redes sociais, milhões de jovens pressionaram governos e organismos internacionais a agir com mais urgência e coerência.
O impacto desse movimento foi notável. Ele ampliou o debate público, renovou a cultura política juvenil e colocou a transição energética no centro das reivindicações por justiça climática (Fisher, 2019). Pesquisas feitas com jovens manifestantes de 19 cidades ao redor do mundo identificaram um padrão: percepção real dos riscos climáticos, desconfiança nas lideranças políticas e desejo de justiça social. Mesmo fora das estruturas formais da política, jovens demonstram alto grau de consciência e capacidade de articulação (Wahlström et al., 2020).
Além da mobilização simbólica, há pressão real sobre as decisões políticas. A ação juvenil influencia eleições, altera a forma como a mídia trata os temas ambientais e impõe a pauta climática nos parlamentos. E não se trata apenas de Europa ou América do Norte: jovens da Ásia, América Latina e África vêm conectando a luta ambiental com pautas como racismo, colonialismo, desigualdade de gênero e acesso à terra (Han e Ahn, 2020).
Esse ativismo representa muito mais do que indignação: é um movimento político organizado que questiona os fundamentos do sistema energético atual. Ao exigir uma transição baseada em solidariedade, equidade e participação popular, jovens indicam que outro caminho é possível — e necessário.
-
Barreiras estruturais à participação e os limites da representação
Apesar do protagonismo, a participação institucional das novas gerações continua limitada por desigualdades históricas. A falta de representação formal, aliada à precariedade econômica, exclusão digital e desigualdade educacional, dificulta o acesso a espaços onde as decisões realmente acontecem.
Mesmo em conferências internacionais como a COP, jovens estão presentes, mas quase sempre em papéis simbólicos. Essa presença limitada, muitas vezes chamada de tokenismo, reforça a sensação de que a juventude está ali apenas para legitimar processos, sem influência efetiva (Marquardt, 2021). A realidade é que poucos têm acesso a recursos financeiros, formação multilíngue ou redes de apoio que permitam sua atuação internacional. Isso se agrava nos países do Sul Global, onde jovens enfrentam ainda mais obstáculos para serem reconhecidos como interlocutores válidos.
Relatórios apontam que jovens do Sul Global enfrentam ainda mais obstáculos, como barreiras linguísticas, falta de apoio financeiro, exclusão digital e baixa inclusão de temas como energia e justiça ambiental nos currículos escolares (Adaptation Fund, 2022).
As barreiras se tornam ainda mais profundas quando cruzadas por marcadores de raça, gênero, classe e território. Jovens de comunidades indígenas, quilombolas, periféricas ou rurais sofrem com a invisibilização institucional e midiática. Suas formas de engajamento, mesmo quando inovadoras e potentes, não são reconhecidas como legítimas (Rebelo et al., 2024). Superar esse quadro exige mais do que discursos inclusivos: requer mudanças estruturais na forma como se constrói a política pública e se compartilha o poder.
-
Políticas públicas, formação e inserção profissional
A transição energética não é só uma questão ambiental — é também uma questão de desenvolvimento e uma oportunidade de inclusão produtiva. E, nesse ponto, as novas gerações são parte da resposta. O setor de energias renováveis está entre os que mais crescem em geração de empregos, e as novas gerações são peça-chave nesse processo. Áreas como energia solar, eólica, armazenamento e eficiência energética demandam formação qualificada e visão de futuro (IRENA, 2021).
Mas é preciso ir além da ideia de juventude como mera força de trabalho. É fundamental reconceituar seu papel nos sistemas energéticos descentralizados, sobretudo em contextos rurais e remotos, onde a participação ativa de jovens pode ser determinante para o sucesso de projetos sustentáveis e socialmente aceitos. Apesar da crescente valorização da chamada cidadania energética, ainda persiste um vácuo na inclusão crítica das novas gerações nos processos decisórios. Isso exige um reposicionamento político e acadêmico sobre quem tem, de fato, o direito de moldar os rumos do futuro energético (Jaradat, Noble e Poelzer, 2024).
Representantes de movimentos juvenis têm exigido mudanças reais nas estruturas decisórias relacionadas à transição energética. Um exemplo importante vem do Grupo Constituinte da Juventude do ODS7 (SDG7 Youth Constituency), que atua no âmbito da ONU com o objetivo de promover o engajamento de jovens na implementação do ODS 7 — Energia Limpa e Acessível. Esse grupo foi criado para facilitar a participação ativa da juventude na revisão, monitoramento e acompanhamento da Agenda 2030, com foco na democratização do acesso à energia e na justiça energética global. Em uma de suas intervenções, a jovem Cherop Soy sintetizou o sentimento de urgência e frustração de muitos jovens ativistas: “Não estamos mais pedindo um assento à mesa. Trata-se de investir em nós” (Tresise & Watts, 2021).
Dados recentes mostram que essa percepção de exclusão é amplamente compartilhada. O relatório estratégico do PNUD aponta que 65% dos jovens entre 18 e 35 anos veem a crise climática como uma emergência global — número que sobe para 69% entre os menores de 18 anos. Apesar disso, muitos ainda se sentem tratados como formalidade nos espaços institucionais, sem poder real de influência (UNDP, 2022). O relatório “Aiming Higher”, também do PNUD, recomenda que o envolvimento juvenil vá além da consulta simbólica, com garantia de acesso à informação, apoio financeiro e reconhecimento da diversidade geracional e territorial (UNDP, 2023).
Esses jovens não estão apenas reagindo ao colapso: estão criando novas formas de viver, de se organizar, de produzir energia e de decidir em coletivo (Garcia et al., 2025). Esse ativismo, marcado por múltiplas identidades e territorialidades, revela como a luta climática se entrelaça com pautas históricas de direitos humanos, justiça social e soberania dos povos.
Um exemplo marcante dessa articulação é a atuação de Txai Suruí, jovem indígena brasileira que ganhou destaque internacional ao discursar na abertura da Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP26), em Glasgow. Em sua fala, Txai denunciou o garimpo ilegal e a destruição das florestas na Amazônia, afirmando que “a Terra está falando, ela nos diz que não temos mais tempo” (Dias, 2024). Fundadora do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia, que reúne mais de 1.700 membros, ela conecta a defesa do meio ambiente à luta pelos direitos territoriais e culturais dos povos indígenas, mostrando como juventudes indígenas estão na linha de frente da resistência climática.
Essa capacidade de imaginar e propor alternativas se manifesta em protestos, ocupações, projetos tecnológicos e redes de solidariedade. Jovens ativistas, em especial, têm mobilizado perspectivas interseccionais que conectam a luta climática a temas como desigualdade de gênero, racismo, colonialismo e LGBTQIA+fobia (Garcia et al., 2025). Em várias regiões do mundo, jovens estão criando startups de energia limpa, cooperativas de consumo, plataformas de dados participativos e redes de ativismo que articulam justiça climática com justiça social. São ações que não apenas sonham com outro mundo — elas o constroem no cotidiano.
Na Noruega, uma pesquisa recente revelou que os jovens valorizam não apenas os aspectos técnicos da transição energética, mas sua dimensão ética e social. O engajamento significativo desses jovens é percebido como condição para uma transição justa e socialmente aceitável (Javed et al., 2025).
Na Ásia e no Pacífico, jovens atuam como inovadores e empreendedores de soluções sustentáveis, desenvolvendo desde startups de energia limpa até redes de mobilização social com impacto global (Liu e Shi, 2025).
- Conclusão
A transição energética precisa ser mais do que verde: precisa ser justa, democrática e transformadora. Isso só será possível se as novas gerações forem reconhecidas como protagonistas — não como figuras decorativas ou promessas para o futuro. Elas já estão no centro da luta, reinventando práticas, disputando narrativas e exigindo um outro horizonte para o planeta.
A sua presença não é apenas simbólica. É estratégica, política e urgente. Integrar suas experiências, saberes e propostas às decisões energéticas é condição para evitar que a transição repita os mesmos erros do passado — e para garantir que ela, de fato, inaugure um novo tempo: de equidade, participação e compromisso com a vida.
Referências
Adaptation fund (2022) Youth Engagement in Climate Change Adaptation: Lessons from the Adaptation Fund Portfolio of Projects and Programmes. Disponível em: https://www.adaptation-fund.org/wp-content/uploads/2022/07/Youth-Report-07.11.22.pdf
Dias,R. (2024, mai 23) Mobilização juvenil e educação climática: respostas aos eventos climáticos extremos. Ecodebate. Edição 4143. https://www.ecodebate.com.br/2024/05/22/mobilizacao-juvenil-e-educacao-climatica-respostas-aos-eventos-climaticos-extremos/
Fisher, D. R. (2019). The broader importance of #FridaysForFuture. Nature Climate Change, 9, 430–431. https://doi.org/10.1038/s41558-019-0484-y
Garcia, A., Rebelo, D., Diógenes-Lima, J., Fernandes-Jesus, M., & Malafaia, C. (2025, January). Intersectionality in youth climate activism as educational practice: political, pragmatic, and pedagogical dimensions. Frontiers in Education, 9, 1491387. https://doi.org/10.3389/feduc.2024.1491387
Han, H., & Ahn, S. W. (2020). Youth mobilization to stop global climate change: Narratives and impact. Sustainability, 12(10), 4127. https://doi.org/10.3390/su12104127
International Renewable Energy Agency. (2021). Renewable energy and jobs – Annual review 2021. IRENA. https://www.irena.org/-/media/Files/IRENA/Agency/Publication/2021/Oct/IRENA_RE_Jobs_2021.pdf
Jaradat, A., Noble, B., & Poelzer, G. (2024). Youth as energy citizens or passive actors? A critical review of energy transition scholarship. Energy Research & Social Science, 108, 103405. https://doi.org/10.1016/j.erss.2023.103405
Javed, M. S., Fossheim, K., Velasco-Herrejón, P., Koop, N. E., Guzik, M. N., Samuelson, C. D., Seibt, B., & Zeyringer, M. (2025). Beyond costs: Mapping Norwegian youth preferences for a more inclusive energy transition. arXiv preprint arXiv:2502.19974. https://arxiv.org/abs/2502.19974
Liu, H., & Shi, X. (2025, January 15). Youth for energy transition: The power of the next generation in shaping a sustainable energy future. UNESCAP. https://www.unescap.org/blog/youth-energy-transition-power-next-generation-shaping-sustainable-energy-future
Marquardt, J. (2021).Youth Participation in UN Climate Change Conferences: Challenges and Opportunities. Technische Universität Darmstadt. https://www.researchgate.net/publication/356834989_Youth_Participation_in_UN_Climate_Change_Conferences_Challenges_and_Opportunities
Martinez-Alier, J., Temper, L., Del Bene, D., & Scheidel, A. (2016). Is there a global environmental justice movement? The Journal of Peasant Studies, 43(3), 731–755. https://doi.org/10.1080/03066150.2016.1141198
Milkoreit, M. (2017). Imaginary politics: Climate change and making the future. Elementa: Science of the Anthropocene, 5, 62. https://doi.org/10.1525/elementa.249
Rebelo, D., Garcia, A. D., Santos, T. R., Carvalho, A., Malafaia, C., & Fernandes-Jesus, M. (2024). Prioritising communities: barriers to climate activism and political imagination among minoritised youth groups. Journal of Youth Studies, 1–21. https://doi.org/10.1080/13676261.2024.2419928
Schlosberg, D., Collins, L. B., & Niemeyer, S. (2017). Adaptation policy and community discourse: Risk, vulnerability, and just transformation. Environmental Politics, 26(3), 413–437.
DOI: https://doi.org/10.1080/09644016.2017.1287628
Sovacool, B. K. (2021). Who are the victims of low-carbon transitions? Towards a political ecology of climate change mitigation. Energy Research & Social Science, 73, 101916. https://doi.org/10.1016/j.erss.2021.101916
Tresise, C. B., & Watts, H. (2021, November 12). Four ways young people can lead the energy revolution. UNDP. https://www.undp.org/blog/four-ways-young-people-can-lead-energy-revolution
United Nations Development Programme. (2022). UNDP strategic plan 2022–2025. UNDP. https://www.undp.org/sites/g/files/zskgke326/files/2022-07/UNDP%20Strategic%20Plan%202022-2025.pdf
United Nations Development Programme. (2023). Aiming higher: Elevating meaningful youth engagement in climate action. UNDP. https://www.undp.org/publications/aiming-higher-elevating-meaningful-youth-engagement-climate-action
Wahlström, M., Kocyba, P., De Vydt, M., & De Moor, J. (2020). Protest for a future II: Composition, mobilization and motives of the participants in Fridays For Future climate protests on 20–27 September, 2019 in 19 cities around the world. Open Science Framework. https://doi.org/10.17605/OSF.IO/ASRUW
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
[ Se você gostou desse artigo, deixe um comentário. Além disso, compartilhe esse post em suas redes sociais, assim você ajuda a socializar a informação socioambiental ]