EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

Negacionismo climático e negacionismo demográfico

►Conteúdo gerado por Humano (a) para Humanos (as)◄

 

 

O que estava em jogo no velho conflito industrial do trabalho contra o capital eram positividades: lucros, prosperidade, bens de consumo. No novo conflito ecológico, o que está em jogo são negatividades: perdas, devastação, ameaças” (Beck, 2010)

Aquecimento global e população: colapso ou decrescimento? A crise climática e o crescimento populacional são interligados. Negar o impacto humano é negar a ciência. #aquecimentoglobal #populacao #meioambiente #sustentabilidade

Artigo de José Eustáquio Diniz Alves

O aquecimento global é uma ameaça existencial para a população mundial e pode provocar o colapso da civilização humana.

A crise climática e ambiental já causa milhões de vítimas e gera grandes danos, podendo trazer enormes retrocessos na qualidade de vida das pessoas, além de prejuízos econômicos incomensuráveis nas próximas décadas.

Porém, a despeito de todas as evidências da interferência humana no desequilíbrio climático e na degradação da biodiversidade, existem setores da sociedade e forças políticas que negam a responsabilidade humana na crise ecológica.

O ex-presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, é um negacionista que apoia a ampliação da exploração de combustíveis fósseis, defende o enfraquecimento da legislação ambiental e na sua gestão na Casa Branca tentou tirar os EUA do Acordo de Paris. Na campanha eleitoral de 2024, ao mesmo tempo que tenta barrar a imigração internacional, Donald Trump, juntamente com Elon Musk, tem afirmado que “o colapso da taxa de fecundidade é uma ameaça maior para a civilização ocidental do que a Rússia” (WSJ, 13/05/24).

Desta forma, em geral, os negacionistas climáticos são, concomitantemente, pronatalistas e negacionistas demográficos, relegando para o segundo plano o impacto do crescimento populacional sobre o aumento da pegada ecológica, na ultrapassagem das fronteiras planetárias e no aumento das emissões de carbono, responsáveis pela aceleração do aquecimento global.

Indubitavelmente, existe uma relação inequívoca entre o crescimento populacional e o aumento das emissões de gases de efeito estufa. O gráfico abaixo mostra a relação entre o crescimento da população mundial e a elevação das emissões de dióxido de carbono (CO2), embora essa evidência seja rejeitada pelos negacionistas.

evolução anual da população mundial e das emissões globais de co2

Em 1850, a população mundial era de 1,2 bilhão de habitantes e as emissões de CO2 estavam em 200 milhões de toneladas. Em 1928, a população chegou a 2 bilhões de habitantes e as emissões saltaram para 4 bilhões de toneladas. Em 1974, a população mundial dobrou para 4 bilhões de habitantes e as emissões pularam para 17 bilhões de toneladas. Em 2022, a população mundial dobrou novamente e chegou a 8 bilhões de habitantes, enquanto as emissões de CO2 atingiram 37 bilhões de toneladas.

O Gráfico abaixo mostra, de forma inequívoca, a correlação entre o crescimento da população mundial e as emissões globais de dióxido de carbono. A reta de tendência linear entre as duas variáveis indica que 99,3% da variabilidade das emissões de CO2 está associada, diretamente, ao crescimento demográfico ao longo dos anos de 1850 e 2022.

correlação entre a população mundial e as emissões globais de co2

O aumento da população e da produção de bens e serviços, mesmo sendo desigual, contribui para elevar as emissões de CO2 e para aumentar a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, o que provoca aumento da temperatura do Planeta. O aumento da população global contribui para o aumento da concentração de capital e de riqueza. Os muito ricos emitem mais do que os pobres, mas todas as classes sociais contribuem, em graus diferentes, para o aumento das emissões antropogências de gases de efeito estufa (GEE). Até o século XX eram os países desenvolvidos que mais emitiam, mas no século XXI são os países em desenvolvimento que lideram as emissões de GEE.

A concentração de CO2 que tinha se mantido entre 200 e 300 partes por milhão (ppm) durante mais de 800 mil anos, começou a subir no século XIX, atingiu 300 ppm em 1920, chegou a 310 ppm em 1950, alcançou 350 ppm em 1987, registrou 400 ppm no ano do Acordo de Paris, em 2015, e marcou o recorde de 427 ppm em maio de 2024. Por conseguinte, a temperatura global subiu nos últimos 100 anos e, no período junho de 2023 a maio de 2024, ultrapassou o limite de 1,5 ºC, em relação ao período pré-industrial.

O gráfico abaixo mostra a evolução da população mundial, conforme dados da Divisão de População da ONU, e a temperatura global e em relação à média do século XX, de acordo com dados da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos (NOAA, na sigla em inglês). Nota-se que o aumento global da população e da temperatura seguem a mesma tendência de aumento no período 1850 a 2023.

evolução anual da população mundial e da temperatura média global

O Gráfico abaixo mostra, de forma evidente, a correlação entre o crescimento da população mundial e a temperatura global, segundo dados da NOAA. A reta de tendência linear entre as duas variáveis indica que 86,9% da variabilidade do aumento da temperatura está associada, diretamente, ao crescimento demográfico ao longo dos anos de 1850 e 2022.

correlação entre a população mundial e a temperatura global

Segundo a “Identidade Kaya”, existem 4 fatores que determinam a evolução das emissões de CO2 e do aumento da temperatura global: 1) o tamanho da população; 2) a afluência da economia (renda per capita e nível de consumo); 3) fatores à tecnologia, como a intensidade energética; 4) fatores ligados à intensidade de carbono. Dado o padrão tecnológico, os dois fatores mais influentes são a dinâmica demográfica e o estilo de vida propiciado pela renda per capita, pelo estilo de vida e o nível e tipo de consumo.

Evidentemente, as parcelas mais ricas da população – que adotam um padrão elevado de consumo conspícuo – contribuem em maior proporção para as emissões de gases de efeito estufa e para o aumento da temperatura. Mas todos os países e todas as pessoas contribuem, de uma forma ou de outra, para a crise climática e ambiental. Por isto, se diz que as responsabilidades são comuns, mas diferenciadas.

De 1850 a 1992 (ano da Conferência do Meio Ambiente do Rio de Janeiro) o total das emissões globais de carbono foi de 232 milhões de toneladas de carbono e de 1993 a 2022 foi de 251 milhões de toneladas de carbono. Ou seja, nos últimos 30 anos houve mais emissões de CO2 do que nos 142 anos anteriores. E os países de renda média superaram as emissões dos países ricos no século XXI. As emissões globais de carbono cresceram 46% entre o ano 2000 e 2022. Na China o crescimento foi de 212% e na Índia de 190%. No mesmo período, houve uma redução de 16% nas emissões da União Europeia (EU-27 países) e de 23% nos Estados Unidos da América (EUA). O peso dos dois países mais populosos do mundo é crescente.

Como mostrei no artigo “Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico” (Alves, 2022), o Antropoceno só existe em decorrência do crescimento desregrado e exagerado das atividades antrópicas. Existe uma verdade simples e inquestionável que reconhece ser impossível haver crescimento ilimitado em um Planeta finito. Indubitavelmente, existem limites biofísicos ao crescimento econômico como escreveu, em 1971, Nicholas Georgescu-Roegen no livro The Entropy Law andthe Economic Process, onde mostra, com base na Primeira Lei da Termodinâmica, que o metabolismo do processo produtivo é entrópico e não cria nem consome matéria e energia, apenas transforma recursos de baixa entropia em calor e resíduos de alta entropia.

Outro alerta foi feito há 52 anos, em 1972, quando uma equipe de cientistas do Massachusetts Institute of Technology (MIT), publicou o livro “Limites do crescimento, um relatório para o Projeto do Clube de Roma sobre o Dilema da Humanidade”. Os autores identificaram cinco vetores que poderiam provocar um colapso social e ambiental: o ritmo acelerado de industrialização, o rápido crescimento demográfico, a desnutrição generalizada, o esgotamento dos recursos naturais não-renováveis e a deterioração ambiental. Estas tendências se inter-relacionam de muitos modos e o livro indica as consequências que poderiam acontecer num horizonte de cem anos.

Os autores do livro “Limites do crescimento” (MEADOWS et al, 1978) sintetizam suas conclusões em um único parágrafo: Se as atuais tendências de crescimento da população mundial, industrialização, poluição, produção de alimentos e diminuição de recursos naturais continuarem imutáveis, os limites de crescimento neste planeta serão alcançados algum dia dentro dos próximos cem anos. O resultado mais provável será um declínio súbito e incontrolável, tanto da população quanto da capacidade industrial (p. 20).

Entretanto, o alerta sobre os limites do crescimento foram ignorados ou negados. Existem, inclusive, pessoas que negam a própria existência da crise climática e ambiental e são chamados de “céticos climáticos”. Há também, em pleno século XXI, pessoas que questionam a esfericidade da Terra e propagam a narrativa da Terra plana. Neste quadro, não é de se estranhar que existam os negacionistas demográficos, pessoas que consideram que o volume da população não tem impacto direto e significativo sobre o meio ambiente. Mas como mostrado anteriormente, é inequívoco que o tamanho da população, mesmo não sendo o fator primordial da crise climática e ambiental, é um elemento de potencialização da degradação ecológica.

No dia a dia, o tabu religioso e as posturas ideológicas impossibilitam uma análise demográfica mais completa e dificultam o enfrentamento dos grandes problemas ambientais do mundo. Tanto a direita tecnófila e racista, quanto a esquerda desenvolvimentista tendem a negar os efeitos do crescimento populacional sobre a degradação do meio ambiente. As desigualdades sociais não devem servir de desculpas para negar as interligações entre o consumo global e a população global. População e consumo são os dois lados da mesma moeda e são fatores que se complementam. Como explica Herman Daly (2018), em entrevista à revista New Left Review:

O impacto ambiental é o produto do número de pessoas vezes o uso de recursos per capita. Em outras palavras, você tem dois números multiplicados um pelo outro – qual é o mais importante? Se você mantiver uma constante e deixar a outra variar, você ainda está multiplicando. Não faz sentido para mim dizer que apenas um número é importante. No entanto, ainda é muito comumente dito. Suponho que faria algum sentido se pudéssemos nos diferenciar histórica e geograficamente – para determinar em que ponto da história, ou em que país, qual fator merecia maior atenção. Nesse sentido, eu diria que, certamente, para os Estados Unidos, o consumo per capita é o fator crucial – mas ainda estamos multiplicando pela população, então não podemos esquecer a população” (DALY, 2018).

O modo de produção capitalista não consegue existir sem promover o crescimento continuado da produção de bens e serviços e o incremento do número de trabalhadores e de consumidores. Este crescimento ilimitado foi e continua sendo essencial para a acumulação de capital e a maximização do lucro. Para garantir sua constante reprodução, o capitalismo precisa contar com fontes infindáveis de energia e com o interminável extrativismo dos recursos naturais e dos serviços ecossistêmicos. Mas, este processo de acumulação de riqueza voltado para beneficiar uma pequena camada da sociedade em detrimento da grande maioria da população e às custas do empobrecimento da natureza está gerando uma catástrofe ecológica e climática, pois a economia internacional já ultrapassou os limites da resiliência do Planeta.

Portanto, para evitar um colapso ambiental decorrente do superconsumo e de uma população global em constante crescimento, a solução holística vai além da estabilização e passa pelo decrescimento demoeconômico. Neste momento em que a humanidade já ultrapassou a capacidade de carga da Terra, somente o planejamento democrático e voluntário da redução do consumo global e da população global pode evitar um “Armageddon ecológico” e o “Holocausto biológico”. O negacionismo climático renega a influência dos fatores antropogênicos no aumento da temperatura global e o negacionismo demográfico desconsidera a influência do volume populacional global no agravamento da crise climática e ambiental.

O documento “World Scientists’ Warning of a Climate Emergency”, assinado por milhares de cientistas, afirma que: “O crescimento econômico e populacional está entre os mais importantes fatores do aumento das emissões de CO2 em decorrência da combustão de combustíveis fósseis (…) Ainda crescendo em torno de 80 milhões pessoas por ano, ou mais de 200.000 por dia, a população mundial precisa ser estabilizada – e, idealmente, reduzida gradualmente – dentro de uma estrutura que garante a integridade social” (RIPLLE, 2019).

Assim sendo, é preciso superar a ideologia que defende o mantra “mais é melhor”. Ao contrário, existe uma perspectiva oposta, que indica um mundo com menos habitantes pode garantir melhor qualidade de vida humana e ambiental, na linha já apontada da perspectiva do “Small Is Beautiful”.

Segundo o artigo “Population and climate change” (LOWE et al, 2022): “Se levamos a sério o nosso objectivo declarado de viver de forma sustentável, estabilizar a população futura é um requisito essencial. Isto é verdade no que diz respeito às alterações climáticas e se aplica a outras questões ambientais, como a perda de biodiversidade e a conservação de habitats, bem como garantir suficiência futura de alimentos, água e fornecimento de energia. A população deve ser integrada na política pública para todas essas questões. Atingir um pico populacional global na data mais próxima e no nível mais baixo alcançável aumentará enormemente a viabilidade de limitar o aquecimento global a menos de 2°C, e simultaneamente reduzir a vulnerabilidade das futuras pessoas aos impactos das alterações climáticas” (p. 39).

O decrescimento significa uma redução planejada, de médio e longo prazo, no volume das atividades antrópicas para reduzir o tamanho da Pegada Ecológica global e, ao mesmo tempo, a adoção de ações para promover a regeneração ecológica visando aumentar a biocapacidade da Terra. Por conseguinte, com redução da Pegada Ecológica e aumento da Biocapacidade seria possível eliminar o déficit ambiental e voltar a atingir o equilíbrio planetário. A qualidade superando a quantidade. Mas para tanto, é preciso deixar de lado o negacionismo climático e o negacionismo demográfico.

Referências:

ALVES, JED. Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico, Liinc em Revista, RJ, v. 18, n. 1, e5942, maio 2022

https://revista.ibict.br/liinc/article/view/5942/5595

ALVES, JED. Decrescimento demoeconômico com elevação da prosperidade social e ambiental, Ecodebate, 20/01/2023

https://www.ecodebate.com.br/2023/01/20/decrescimento-demoeconomico-com-elevacao-da-prosperidade-social-e-ambiental/

ALVES, JED. A dinâmica demográfica global em uma “Terra inabitável”, Revista Latino-americana de Población, Vol. 14 Núm. 26/12/2019

https://revistarelap.org/index.php/relap/article/view/239

ALVES, JED. Aula 11 AM088: Decrescimento demoeconômico e capacidade de carga do Planeta, IFGW, 11/04/21 https://www.youtube.com/watch?v=QVWun2bJry0&list=PL_1__0Jp-8rhsqxcfNUI8oTRO1wBr86fh&index=9

BECK, Ulrich. Sociedade de Risco. Rumo a uma Outra Modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.

DALY, H. Ecologies of Scale, Interview by Benjamin Kunkel. New Left Review 109, Jan-Fev 2018.

https://newleftreview.org/II/109/herman-daly-benjamin-kunkel-ecologies-of-scale

LOWE, I., Cook, P., and O’Sullivan, J. (2022). Population and climate change (Sustainable Population Australia Discussion Paper). Sustainable Population Australia.

https://population.org.au/wp-content/files/Population-Climate-Web-Version-110222.pdf

MEADOWS, D. et. al. Limites do Crescimento. Um relatório para o Projeto do Clube de Roma sobre o Dilema da Humanidade, Editora Perspectiva, 2ª ed., São Paulo, 1978.

Greg Ip. Suddenly There Aren’t Enough Babies. The Whole World Is Alarmed, WSJ, 13/05/2024

https://www.wsj.com/world/birthrates-global-decline-cause-ddaf8be2?mod=hp_lead_pos7

RIPPLE, W. et. al. World Scientists’ Warning of a Climate Emergency, BioScience, 05/11/2019. https://academic.oup.com/bioscience/advance-article/doi/10.1093/biosci/biz088/5610806

José Eustáquio Diniz Alves

Doutor em demografia, link do CV Lattes:

http://lattes.cnpq.br/2003298427606382

[ Se você gostou desse artigo, deixe um comentário. Além disso, compartilhe esse post em suas redes sociais, assim você ajuda a socializar a informação socioambiental ]

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394

A manutenção da revista eletrônica EcoDebate é possível graças ao apoio técnico e hospedagem da Porto Fácil.

 

[CC BY-NC-SA 3.0][ O conteúdo da EcoDebate pode ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, à EcoDebate com link e, se for o caso, à fonte primária da informação ]

 

3 thoughts on “Negacionismo climático e negacionismo demográfico

  • Que História Politicamente incorreta…
    O Ser humano é a raiz de todo este problema…
    Tolerância, respeito a autoridade e a crença de cada um … Faz parte da Globalização… Se não existir isso fechem-se as fronteiras e resolvam cada qual a suas equações…
    è Simples…

  • Os números e gráficos são evidentes. São uma sirene ligada. Mas parece que estamos num planeta de surdos.

  • Severino S. Agra Filho

    prezado, cuidado com afirmações precipitadas
    a sua inferência sobre a afirmação do Daly“O impacto ambiental é o produto do número de pessoas vezes o uso de recursos per capita”, está equivocada!! não considera a relação percapita?

Fechado para comentários.