Trinta anos após a CIPD do Cairo o extremismo ataca os direitos sexuais e reprodutivos
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A combinação de falta de acesso aos métodos de regulação da fecundidade e de violência de gênero tem sido fatal para as meninas e adolescentes brasileiras
Artigo de José Eustáquio Diniz Alves
Está nas mãos dos legisladores brasileiros o Projeto de Lei 1904/24 que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro.
A proposta altera o Código Penal Brasileiro, de 1940, que não pune o aborto em caso de estupro e não prevê restrição de tempo para o procedimento nesse caso. O código também não pune o aborto quando não há outro meio de salvar a vida da gestante.
Desta forma, a Câmara dos Deputados votou, no dia dos namorados (12/06), a urgência de um projeto de lei que equipara aborto a crime de homicídio, fazendo retroceder em mais de 80 anos os permissivos legais para a interrupção da gravidez e pode transformar em assassina a mulher que aborta o fruto de um estupro. E o mais incrível, a mulher estuprada que realizar aborto poderá ter uma pena maior do que a pena do estuprador.
Outra estranheza é que este projeto de lei ocorre pouco antes da comemoração dos 30 anos da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), conhecida como Conferência do Cairo, realizada em setembro de 1994, que foi o maior evento de porte internacional sobre temas populacionais jamais realizado. Os 11 mil participantes da CIPD e os delegados de todas as regiões e culturas concordaram que a saúde sexual e reprodutiva é um direito humano básico e um elemento fundamental da igualdade de gênero. O Brasil é signatário da CIPD de 1994.
Nos últimos 30 anos, muitos países fizeram progressos substanciais, ampliando o acesso aos serviços de saúde reprodutiva e reduzindo não só as taxas de natalidade como também as de mortalidade e elevando os níveis de educação e de renda, inclusive o status educacional e econômico da mulher. O declínio da mortalidade materna, a implantação de planos e projetos de desenvolvimento sustentável e de programas intensivos de educação, constituam motivo de otimismo sobre o sucesso da implementação do Programa de Ação da CIPD do Cairo no caminho do empoderamento das mulheres.
Mas evidentemente, o Brasil e o mundo precisavam continuar avançando no processo de universalização da saúde sexual e reprodutiva. Porém, o Projeto de Lei 1904/24 é um grande retrocesso e que vai afetar principalmente as meninas e adolescentes que sofrem violência sexual. Cerca de 70% dos casos de estupro notificados no Brasil são de garotas com 14 anos ou menos e é muito comum que meninas que foram estupradas só percebam que estão grávidas mais tardiamente.
Nos últimos anos, o Brasil registrou cerca de 19 mil nascimentos, ao ano, de mães entre 10 e 14 anos. De acordo com o Código Penal (Decreto-Lei Nº 2.848/1940), o estupro de vulnerável consiste na conjunção carnal ou na prática de ato libidinoso com pessoa de 14 anos de idade ou menor.
Portanto, o Congresso Nacional pode aprovar uma lei que em vez de combater o estupro de vulnerável passe a criminalizar a vítima com punição superior ao agressor.
Essa situação seria absurda em qualquer país do mundo, mas se torna mais grave no Brasil que possui uma das taxas de gravidez na adolescência mais altas do mundo. O Brasil é conhecido com um país que possui uma estrutura rejuvenescida da fecundidade.
O gráfico abaixo mostra a distribuição da fecundidade por idade das mulheres comparada às sub-regiões com médias de fecundidade abaixo de 2,5 filhos por mulher, para cotejar a distribuição em populações com fecundidade baixa. Nesta comparação fica claro que o país se assemelha apenas ao padrão etário latino-americano, com fecundidade mais alta em idades jovens (Cavenaghi e Alves, 2018).
Historicamente, o Brasil adotou posições claramente favoráveis ao crescimento populacional, demorou a reconhecer o direito ao planejamento da regulação da fecundidade e demorou a colocar em prática os direitos sexuais e reprodutivos, como mostramos no artigo “Demografia e ideologia: trajetos históricos e os desafios do Cairo + 10” (Alves e Correa, 2003).
O que caracterizou a transição da fecundidade do Brasil foi a manutenção da natalidade precoce e um controle da fecundidade ainda em idades jovens, após terem poucos filhos. Esse controle da fecundidade é feito por terminação (“fechar a fábrica”) e não por adiamento e espaçamento entre os nascimentos. Isso faz com que o país apresente uma estrutura de fecundidade rejuvenescida, ao contrário da estrutura “envelhecida” da Europa e outras regiões do mundo.
A combinação de falta de acesso aos métodos de regulação da fecundidade e de violência de gênero tem sido fatal para as meninas e adolescentes brasileiras que sofrem com as consequências da importunação sexual e do estupro, muitas vezes sendo obrigadas a levar a cabo uma gravidez indesejada.
Agora, se for aprovada, uma nova legislação que ameaça e humilha as meninas e adolescentes (além das mulheres de qualquer idade) com penas de prisão, chega ao cúmulo de revitimizar as pessoas que sofrem de forma continuada, obrigando-as a cumprir uma pena que pode ser superior à pena do criminoso estuprador.
O Brasil assinou diversos tratados internacionais para garantir os direitos sexuais e reprodutivos e o direito de as pessoas decidirem como, quando e quantos filhos ter. Mas os setores do fundamentalismo religioso e do conservadorismo moral querem implantar um regime teocrático no Brasil e acabar ou restringir o direito ao aborto legal e seguro.
O próximo passo será limitar o acesso aos métodos de regulação da fecundidade para depois tomar medidas para elevar as taxas de fecundidade e implementar o controle panóptico dos corpos e estabelecer a sociedade da submissão e da vigilância.
Referências:
ALVES, J.E.D., CORRÊA, S. Demografia e ideologia: trajetos históricos e os desafios do Cairo + 10. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 20, nº 2, jul/dez. 2003
https://www.rebep.org.br/revista/article/view/290/pdf_271
CAVENAGHI, S e ALVES, JED. Fecundidade e Dinâmica da População Brasileira, UNFPA, Brasília, 2018
https://brazil.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/swop_brasil_web.pdf
José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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