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Praias do Brasil sob ameaça: PEC abre caminho para privatização

 

foto da desembocadura do rio indaiá
Foto da desembocadura do Rio Indaiá no Oceano Atlântico, em Ubatuba (Litoral Norte do Estado de São Paulo). Vista frontal da Mata Atlântica. Data: 26/01/2020. Autor: Heraldo Campos.

Artigo de Heraldo Campos

Os jornais e a mídia televisiva noticiaram nesses últimos dias das tragédias das enchentes no Estado do Rio Grande do Sul, motivadas por causa dos efeitos das mudanças climáticas e, agora, mais uma aberração que vem rolando no domínio do senado: a privatização das praias.

Convenhamos que isso não vem de agora. Muitas praias ao longo do litoral da costa brasileira foram cercadas, fechadas para acesso livre do público, sempre com guaritas muito bem equipadas e privatizadas na prática.

Uma pedra cantada há décadas e que agora parte dos ilustres parlamentares querem botar uma pá de cal nesse sensível tema ambiental, para entregar de vez o que é de todos para certos grupos especuladores. Isso nem é coisa de parlamentar conservador. É atitude de parlamentar predador.

Uma das matérias sobre a privatização das praias diz o seguinte, em alguns trechos reproduzidos a seguir.

“A secretária adjunta de Gestão de Patrimônio da União, Carolina Gabas Stuchi, participou da sessão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado nesta segunda-feira (27), para debater a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022, que transfere a propriedade dos terrenos do litoral brasileiro para estados, municípios e proprietários privados.

Atualmente, a área pertence à União e está sob o domínio da Marinha.

(…)

O projeto, se aprovado, compromete ainda a arrecadação federal e municipal de tributos, já que 20% da receita é repassada aos municípios.

A secretária afirmou ainda que a proposta inverte a lógica ao sugerir a gestão do litoral para estados, municípios e iniciativa privada como se não houvesse interesse público da União na temática, além de políticas públicas essenciais que devem ser exercidas pelo Executivo Federal.

(…)

Mais uma vez, os parlamentares brasileiros apresentaram um projeto que caminha na contramão do mundo. Segundo a secretária, vários países avançam juridicamente na proteção do litoral, alguns, inclusive, estão recomprando e desapropriando as áreas.

A PEC, no entanto, favorece a privatização e cercamento das praias, causa danos à receita da União, compromete a atuação das indústrias da Pesca, Turismo e Exportação, além de intensificar conflitos fundiários e a ameaça aos povos tradicionais.” [1]

Nunca é demais lembrar que há mais de quatro décadas a comunidade acadêmica e científica vem alertando sobre essa destruição do litoral brasileiro, mesmo quando ainda não haviam os relatórios sistematizados pelo IPCC em escala mundial, mas que quase sempre foram ignorados pelos administradores públicos.

“(…) Os relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), há mais de uma década divulgando a ciência do clima para a sociedade mundial, sempre alertaram para o que viria pela frente e com base na análise de dados científicos. (…).

Várias cidades do litoral brasileiro, por exemplo, que avançaram com sua ocupação urbana as faixas de areia das praias (e que não deveriam ser ocupadas), hoje sofrem com os processos erosivos provocados pelas oscilações do nível do mar e vira e mexe os administradores públicos acabam jogando a culpa nas mudanças climáticas.

Setores colados nas faixas de areia das praias, muitas vezes ocupados por residências, restaurantes, quiosques e outros equipamentos urbanos, que não deveriam estar assentados nesses lugares, podem ter a sua destruição causada pela ação das águas do mar e, ao mesmo tempo, interferir de forma desfavorável nos serviços ecossistêmicos, prejudicando a regulação biológica de extensas áreas da orla marítima.” [2]

“A especulação imobiliária que proporcionou a ocupação de terrenos pelas pessoas de alta renda nas “partes mais nobres da orla marítima” acabam por expulsar a população de baixa renda para as encostas, que unem os topos aos fundos dos vales, mais sujeitas aos processos erosivos, principalmente em áreas com alta declividade que possibilitam o aumento do escoamento superficial. (…).” [3]

“Pelo exposto, como tudo indica que uma ocupação desordenada dos terrenos e depois uma administração caótica dos condomínios, parecem ter uma certa conexão, seria possível prever e antecipar algumas medidas cauteladoras diante dessas manjadas associações?” [4]

Nesse cenário, de manjadas associações, parece que a afronta contra a vida, na sua forma mais plena, é visível com essa PEC aprovada na Câmara Federal e que agora tramita junto aos senadores da república. Espera-se que essa PEC seja brecada no Senado. Por outro lado, e em outra escala, as eleições municipais estão próximas e não é possível imaginar que eleitores que vivem no litoral brasileiro deem corda e mandato para os políticos locais predadores. Quem se dispõe a isso, votantes e votados, salvo melhor juízo, parece que acabam mesmo é flertando, mutuamente, com a maldade.

“Depois de alguns milhares de séculos de lutas, o mal está cada vez mais plantado, o crime não só compensa como está institucionalizado, o masoquismo não só não é combatido como é até estimulado. Temos que reconhecer que Deus envelheceu e o Demônio evoluiu.” (Millôr Fernandes, em conversa com Glauco, em 1973. Extraído do livro “Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr, página 144. Editoral Nórdica Ltda. Rio de Janeiro.1973.)

Fontes
[1] Matéria “Privatização das praias impacta indústrias do Turismo, Pesca e Exportação, garante Planalto” de Camila Bezerra.
https://jornalggn.com.br/politica/privatizacao-praias-impacta-industrias-turismo-pesca-exportacao/

[2] Crônica “Biscoito de polvilho”.
https://jornalggn.com.br/meio-ambiente/biscoito-de-polvilho-por-heraldo-campos/

[3] Crônica “Chove chuva”.
https://www.brasil247.com/blog/chove-chuva

[4] Crônica “Manjadas Associações”.
https://cacamedeirosfilho.blogspot.com/2023/08/manjadas-associacoes.html

*Heraldo Campos é geólogo (Instituto de Geociências e Ciências Exatas da UNESP, 1976), mestre em Geologia Geral e de Aplicação e doutor em Ciências (Instituto de Geociências da USP, 1987 e 1993) e pós-doutor em hidrogeologia (Universidad Politécnica de Cataluña e Escola de Engenharia de São Carlos da USP, 2000 e 2010).

 

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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