As guerras são aceleradoras do colapso ambiental
As guerras são aceleradoras do colapso ambiental. Análise De Luiz Marques (IFCH/Unicamp)
A paz e o desarmamento geral são a condição de possibilidade de negociações climáticas capazes de aumentar nossas chances de adaptação ao aquecimento vindouro
Guerra e colapso socioambiental
Autoria: Luiz Marques (IFCH)
Edição de imagem: Paulo Cavalheri
Jornal da UNICAMP
O presidente Joe Biden acaba de enviar ao Congresso dos Estados Unidos uma proposta de despesas militares suplementares, incluindo: US$ 61,4 bilhões para a Ucrânia (metade para armamentos), US$ 14,3 bilhões para a Israel — US$ 10,6 bilhões dos quais também em despesas com armas —, e US$ 7,4 bilhões para a zona do Indo-Pacífico. Jake Sullivan, conselheiro de Biden para a segurança nacional, afirmou a esse respeito que a guerra na Ucrânia e no Oriente Médio representam “um ponto de inflexão global”,[1] confirmando o crescente envolvimento do seu país em múltiplas frentes de guerra. Enquanto isso, as mortes e o sofrimento aumentam. Na Ucrânia, estimativas de agosto de 2023 do governo dos EUA falam em 500 mil mortos e feridos apenas entre militares de ambos os lados.[2] As guerras e a instabilidade geopolítica crônica do Oriente Médio persistirão e só aumentarão porque o Estado de Israel ocupa hoje ilegalmente uma porção muito maior do que os cerca de 55% da área da Palestina histórica que lhe foi outorgada pela ONU em novembro de 1947.[3] O bloqueio da Faixa de Gaza, em vigor desde 2007, torna esse território, na avaliação do Human Rights Watch, “a maior prisão a céu aberto do mundo”. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha considera-o ilegal, ao infringir as Convenções de Genebra.[4] Nesse contexto concentracionário, a “doutrina” da reação israelense aos ataques do Hamas em 7 de outubro consiste em desumanizar os palestinos. Ela foi explicitada em 9 de outubro por Yoav Gallant, Ministro da Defesa de Israel: “Estamos combatendo contra animais humanos e agindo em consequência”.[5]
Segundo dados da Euro-Med Human Rights Monitor, entre 7 e 15 de outubro, o exército israelense matou um palestino a cada dez minutos. Das mais de 2.300 vítimas palestinas fatais até aquela data, 724 são crianças (40% da população em Gaza tem menos de 14 anos). Segundo Jonathan Crickx, porta-voz da Unicef Palestina, até 15 de outubro, contavam-se 2.400 palestinos feridos e 240 mil deslocados.[6] Até 22 de outubro, 15 dias após a deflagração do conflito, os bombardeios israelenses na Faixa de Gaza haviam causado 5.087 mortes, mais de 13.400 feridos, com cerca de 1,4 milhão de refugiados sobrevivendo em condições brutais e, de resto, também sob bombardeios. Apenas no sábado e no domingo, 21 e 22 de outubro, ao menos 400 palestinos foram mortos em Gaza, sendo que os bombardeios israelenses no campo de refugiados de Jabalia (mais de 116 mil refugiados) nos dias 9, 12, 19 e 22 de outubro mataram ao menos 175 pessoas.[7] Nada justifica a morte de 1.300 civis israelenses pelos militantes do Hamas. Mas aqui se trata de uma reação desesperada contra a política do Estado de Israel, armado pelos EUA e pela União Europeia, que os apoiam de modo indefectível em sua empresa de expulsão, prisões, torturas e assassinatos em massa.
Um relatório recente da ONU estima que, desde 1967, o Estado de Israel apinhou em seus calabouços cerca de um milhão de palestinos, ou seja, um em cada cinco palestinos, sendo que para a população masculina essa proporção é de dois para cada cinco. E as condições dessas prisões são idênticas às das mais odiosas ditaduras do mundo: “O confinamento em celas imundas e lotadas, a privação de sono e de alimentação, a negligência médica, os espancamentos graves e prolongados e outras formas de maus-tratos foram amplamente documentados”.[8] Se há um dossiê que prova, sobre mil outros, o fracasso da ONU, esse dossiê se chama Israel. Não se trata de culpar a ONU, mas de reformá-la profundamente, para fortalecê-la e democratizá-la. A revisão de sua Carta é prevista em seu Artigo 109, e a instalação de uma Assembleia Constituinte da ONU precisará, para começar, suprimir o direito de veto dos cinco membros de seu Conselho de Segurança e reconhecer sua Assembleia Geral como instância suprema de tomada de decisões.[9]
1. As despesas militares atestam que o mundo já está guerra
Isto posto, os conflitos em curso na Ucrânia e no Oriente Médio, cujo potencial de alastramento é crescente, são apenas a ponta do iceberg. A reação dos EUA ao ataque das duas torres em 2001 é o marco inaugural de um emergente estado de guerra generalizada: “após o 11 de Setembro [de 2001], o número total de mortos nas zonas de guerra do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Síria e Iêmen pode ser de pelo menos 4,5 a 4,7 milhões de pessoas e continua a aumentar, embora o número exato de mortes permaneça desconhecido”.[10] De fato, mais de 110 conflitos armados globalmente têm sido monitorados pela Geneva Academy of International Humanitarian Law and Human Rights. “A maioria deles são conflitos não-internacionais (NIAC), envolvendo intervenientes não estatais armados e intervenções estrangeiras por parte de potências ocidentais, da Rússia e de países vizinhos”.[11] O cenário internacional está cada vez mais infectado por nacionalismos regressivos e por retornos a retóricas de guerra.
China e Rússia são regimes autoritários e potências imperialistas que não oferecem qualquer alternativa à superação do capitalismo. A China, em particular, é a expressão mais extrema e atual do capitalismo globalizado. Nessa qualidade, é a grande promotora do neoextrativismo global e do agronegócio brasileiro e é a mais insaciável devoradora de carvão do mundo (56% do consumo mundial em 2020). Por sua vez, Putin, ex-chefe da ex-KGB, é de há muito a grande referência da extrema-direita europeia (Orbán, Salvini, Le Pen, Aleksandar Vucic na Sérvia, Robert Fico na Eslováquia, além de vários líderes do Alternative für Deutschland na Alemanha). Em face dessa realidade, que se deve criticar, mas não se pode suprimir, o Ocidente parece tomado de demência guerreira senil à medida que perde hegemonia global. Com suas narrativas narcísicas e autocomplacentes, ele se ridiculariza ao se representar como uma Vestal existencialmente ameaçada, de modo que toda guerra ou preparativo de guerra da OTAN contra a Rússia e a China (esse novo “eixo do mal”) é por ele considerada legítima, posto que “defensiva”. Nada pode ser mais acintoso aos fatos e à inteligência, pois a OTAN é uma aliança militar brutalmente expansiva e ofensiva, e a Rússia tem razões de sobra, históricas e atuais, para se sentir ameaçada. Dessa engrenagem de enfrentamento, o Relatório do Stockholm Institute Peace Research Institute (SIPRI) oferece um bom resumo:[12]
“Em 2022, a segurança global apresentou uma deterioração acentuada em comparação com uma década atrás. No mundo todo, houve mais guerras, gastos militares maiores e aumento da insegurança alimentar aguda. Como resultado das mudanças climáticas, as ondas de calor, as secas e as inundações afetaram milhões de pessoas, com maiores custos humanos e econômicos. A estabilidade internacional esteve sob pressão pela guerra na Ucrânia e pela intensificação do confronto entre as grandes potências, o que enfraqueceu o controle de armas e tornou a diplomacia menos eficaz. (…) O número total de Estados em conflito armado foi de 56, ou seja, cinco a mais do que em 2021”.
Há uma resposta essencial (embora não exaustiva) à questão do sentido dessa escalada da guerra e da fome: siga, como sempre, o dinheiro. War is good for business, “a guerra é boa para os negócios”, afirmou um executivo na feira global de comércio de armamentos de Londres, a Defense and Security Equipment International (DSEI), que teve lugar em setembro de 2023, sempre fortemente apoiada pelo Ministério da Defesa do Reino Unido, que abriu o evento.[13] E Michael Elmore, diretor de vendas da MTL Advanced, grande produtora de blindados, acrescentou: “Estamos extremamente ocupados”.[14] Em 2022, corporações norte-americanas líderes do mercado de armas mundial, como Lockheed Martin, Raytheon, Northrop Grumann e General Dynamics, tiveram os melhores desempenhos entre as dez maiores corporações globais de armas, em termos da valorização de suas ações e de capitalização de mercado.[15] A guerra da Ucrânia em particular tem sido excelente para os negócios ocidentais.
Segundo um relatório da McKinsey, as exportações de armas da Rússia caíram 21% no primeiro ano da guerra da Ucrânia, o que abriu novas oportunidades de vendas de armas pelo Ocidente para os países do chamado “developing world”.[16] As guerras de nossos dias não são (se jamais o foram) uma continuação da política. Elas são uma continuação dos negócios. Irving Berlin compôs para Hollywood a canção “There’s No Business Like Show Business”. Se estivesse vivo, escreveria hoje “There’s No Business Like War Business”.[17] De fato, fomentados pelo complexo congressional-industrial-militar e por campanhas bilionárias de desinformação, os orçamentos militares nacionais crescem incessantemente. Segundo o SIPRI, em 2019 eles atingiram US$ 1.917 bilhões, aumento de 3,8% em relação a 2018 e o maior aumento em uma década. Em 2021, eles aumentaram 12% em relação a 2012, atingindo US$ 2.113 bilhões.[18] E a trajetória ascensional continua:[19]
“As despesas militares mundiais aumentaram 3,7% em termos reais em 2022, atingindo um recorde de US$ 2.240 bilhões. Os gastos militares globais cresceram 19% durante a década 2013–2022 e têm aumentado todos os anos desde 2015. A invasão da Ucrânia pela Rússia foi um impulsionador maior dessas despesas em 2022. Os gastos militares na Europa aumentaram 13%, o maior aumento anual no total das despesas militares europeias no período pós guerra fria”.
A Figura 1 mostra a evolução dessas despesas militares globais entre 1988 e 2022 em dólares constantes de 2021, discriminadas por cinco regiões do planeta.
Figura 1 – Despesas militares globais entre 1988 e 2022 em dólares constantes de 2021, discriminadas por cinco regiões do planeta. Fonte: SIPRI, “Trends in World Military Expenditure, 2022”. Fact Check, abril 2023.
Em 2022, os orçamentos militares quase dobraram em relação à média do período 1995-1999 (em dólares constantes de 2021). Os cinco países com maiores orçamentos militares — EUA, China, Rússia, Índia e Arábia Saudita — respondem por 63% das despesas globais. Em 2019, o orçamento militar dos EUA foi de US$ 732 bilhões.[20] Em 2022, saltou para US$ 877 bilhões, um aumento de 19,9% em relação a 2019. Ele representa hoje 3,5% do PIB do país e 39% das despesas militares globais, para um PIB que, em 2022, montava a 25,3% do PIB global. O segundo maior orçamento nacional, o da China (US$ 292 bilhões), consome “apenas” 1,6% de seu PIB e representa 13% das despesas militares globais para um PIB que atinge hoje 18% do PIB global. Mas é importante sublinhar, por outro lado, que as despesas militares da China vêm aumentando por 28 anos consecutivos, o mais longo aumento ininterrupto em um país, segundo o banco de dados do SIPRI. A Figura 2 permite observar a distribuição percentual das despesas militares globais em 2022, discriminando os 15 maiores orçamentos nacionais.
Figura 2 – Distribuição percentual das despesas militares globais em 2022, discriminando os 15 maiores orçamentos nacionais. Fonte: SIPRI, “Trends in World Military Expenditure, 2022”. Fact Check, abril 2023.
Segundo o SIPRI, os EUA açambarcaram 40% das exportações globais de armamentos no período 2018-2022. É mais do que a soma das exportações dos outros quatro maiores exportadores globais de armas, Rússia, França, China e Alemanha. Ao todo, esses cinco países são responsáveis por 76% dessas exportações globais nesse período.
2. O risco crescente de uma guerra nuclear
O espectro da guerra nuclear volta a se desenhar hoje de modo ainda mais ameaçador do que nas crises de 1962 e 1983.[21] António Guterres, secretário-geral da ONU, afirmou em fevereiro de 2023: “corremos o maior risco em décadas de uma guerra nuclear que pode começar por acidente ou projeto”.[22] O Doomsday Clock, editado anualmente pelo Bulletin of the Atomic Scientists, reforça essa advertência.
Figura 3 – Probabilidades de uma guerra nuclear figuradas como distâncias do ponteiro dos minutos e segundos, entre 1947 e 2023, em relação à meia-noite, no “Relógio do Dia do Juízo” (Doomsday Clock). Fonte: Doomsday Clock, Wikipedia
A Figura 3 representa os minutos, e recentemente os segundos, que separam a humanidade de uma guerra nuclear terminal, sendo a meia noite, figuradamente, o momento fatídico dessa deflagração. Em 2022, o mundo estava a 100 segundos da meia-noite. Em 2023, os cientistas avançaram esse ponteiro para 90 segundos da meia-noite. Desde 2010, a humanidade avança de modo ininterrupto em direção a maiores probabilidades de um inverno nuclear. Há ao menos quatro indicadores desse avanço: (1) aumento de investimentos em arsenais nucleares; (2) fim dos acordos de limitação das armas nucleares, (3) aumento das ogivas em estado de alerta máximo e (4) o recente retorno aos testes nucleares de parte dos EUA e, em breve, da Rússia. Segundo estimativas do SIPRI, no início de 2023, os países nuclearizados possuíam em conjunto cerca de 12.512 armas nucleares, das quais 9.576 eram consideradas potencialmente disponíveis operacionalmente. Estima-se que 3.844 dessas ogivas estavam implantadas (deployed) em forças operacionais, sendo que cerca de 2 mil delas encontravam-se em estado de alerta operacional máximo (“state of high operational alert”). O número de ogivas operacionais está novamente em alta, refletindo o desenvolvimento de extensos e dispendiosos programas de substituição e modernização de ogivas, mísseis, aviões e submarinos de lançamento, bem como das instalações industriais que os fabricam. Projeções reportadas pelo SIPRI sugerem que a China implantará ao menos tantos mísseis balísticos intercontinentais (ICBM) quanto a Rússia e os EUA na próxima década:
“Em janeiro de 2023, os EUA mantinham um arsenal militar de aproximadamente 3.708 ogivas nucleares, o mesmo número do ano anterior. Aproximadamente 1.770 delas — consistindo em cerca de 1.670 ogivas estratégicas e cerca de 100 ogivas não estratégicas (táticas) — estavam implantadas em mísseis balísticos e em bases de bombardeiros”.
Também em janeiro de 2023, a Rússia mantinha um estoque militar de cerca de 4.489 ogivas nucleares, um aumento de cerca de 12 ogivas em relação à estimativa de janeiro de 2022. Cerca de 2.673 delas são ogivas estratégicas, 1.674 implantadas em terra, em mísseis baseados no mar e em bombardeiros. A Rússia também possuía então cerca de 1.816 ogivas nucleares táticas.
Emmanuel Todd intitulou seu último livro, publicado no Japão com enorme sucesso, como “A Terceira Guerra Mundial já começou”.[23] Nesse contexto, a gestação de uma guerra nuclear está evoluindo rapidamente. Alinhemos alguns fatos em ordem cronológica. Em fevereiro de 2023, a Rússia suspendeu o tratado de redução e limitação das armas nucleares estratégicas (New START), o último sistema de controle diplomático desses arsenais firmado com os EUA em 2010.[24] “Sinto-me compelido a anunciar hoje que a Rússia está suspendendo a sua participação [no New START]”, afirmou Vladimir Putin em um discurso sobre o estado da nação, esclarecendo que o retorno de seu país a este ou a outro tratado do gênero pressupõe que os EUA encerrem seu apoio militar à Ucrânia e tragam a França e o Reino Unido para negociações sobre controle de armas nucleares.[25] O New START deveria expirar em 5 de fevereiro de 2026, mas a guerra da Ucrânia causou sua morte prematura. Rússia e EUA cessaram de compartilhar informações detalhadas sobre seus arsenais e proibiram as inspeções recíprocas previstas nesse tratado.[26] Sergei Lavrov, Ministro das Relações Exteriores da Rússia, declarou a respeito disso que “quaisquer sinais positivos ou concessões sobre questões levantadas pelos Estados Unidos no contexto do cumprimento do New START serão injustificados, inoportunos e inadequados até que Washington reveja a sua política hostil em relação à Rússia e abandone sua linha de criar ameaças à nossa segurança nacional”.[27] Em março de 2023, a Bielorrússia, país fronteiriço com a Ucrânia e com três países da OTAN (Polônia, Lituânia e Letônia), começou a receber da Rússia armas nucleares táticas. Em junho, Alexander Lukashenko, presidente desse país, declarou:[28]
“Temos mísseis e bombas que recebemos da Rússia, três vezes mais potentes do que as lançadas em Hiroshima e Nagasaki. Lá, mais de 80 mil pessoas morreram instantaneamente, ao todo 250 mil. Isso, apenas com uma bomba, e as nossas são três vezes mais potentes. Se as usarmos, Deus permita que não, não sei, até um milhão de pessoas morreriam”.
Em agosto, o secretário-geral da ONU reiterou mais uma vez que “a humanidade está a um mal-entendido, a um erro de cálculo da aniquilação nuclear”.[29] Em setembro, a CNN publicou fotos tiradas por satélites, mostrando que os EUA, a China e a Rússia estão construindo novas instalações e cavando novos túneis em seus antigos sítios de testes nucleares (Nevada, Xinjiang e um arquipélago do Ártico, respectivamente). São indicações da retomada dos testes interrompidos pela moratória de 1992, o Comprehensive Test Ban Treaty, que os EUA, de resto, nunca ratificaram. De fato, em 18 de outubro de 2023, o National Nuclear Security Administration (NNSA) dos EUA admitiu ter realizado um teste nuclear em Nevada, em níveis subcríticos (sem fissão nuclear), no intuito de “melhorar a capacidade dos Estados Unidos de detectar explosões nucleares de baixo rendimento em todo o mundo”.[30] Nesse mesmo dia, o Parlamento da Rússia ratificou a retirada do país do Comprehensive Test Ban Treaty.[31] O caminho está agora legalmente aberto para a retomada de testes nucleares não apenas pela Rússia, mas pelos nove países nuclearizados.
3. A guerra, acelerador do colapso ambiental
A guerra é hoje, acima de tudo, um acelerador do colapso ambiental em curso, e isto por duas razões. Em primeiro lugar, ela aumenta as emissões de gases de efeito estufa (GEE), intensificando a desestabilização do sistema climático. As estimativas de emissões de GEE associadas à esfera militar são extremamente lacunosas. Muitos dados não são acessíveis porque o Acordo de Paris de 2015 estipula que não é obrigatória a inclusão nos inventários nacionais das emissões derivadas da máquina de guerra. Isto posto, os dados disponíveis mostram que as emissões associadas à esfera militar correspondem a 5,5% das emissões globais! Se as despesas militares globais anuais fossem um país, esse “país” seria o quarto maior emissor de GEE do planeta, após a China, os EUA e a Índia.[32] Apenas a guerra da Ucrânia emitiu, em seus 12 primeiros meses, 119 milhões de toneladas de GEE (MtCO2e), o equivalente às emissões anuais da Bélgica.[33] Se não houver paz, em fevereiro de 2024, essas emissões, mantida a trajetória atual, superarão cumulativamente as da Espanha em 2021 (233 MtCO2e).
O segundo modo pelo qual a guerra acelera o processo em curso de colapso socioambiental é o de dificultar ainda mais uma governança global do clima e da biodiversidade. A COP28 terá por sede, dentro de um mês, um Oriente Médio incandescente de guerras, ameaças e tensões geopolíticas crescentes. Em tal ambiente, alguém acredita que a China, os EUA, a Índia e a Rússia, os quatro maiores emissores do planeta, se sentarão à mesa para negociar a diminuição das emissões decorrentes da produção e do consumo de combustíveis fósseis? Se nunca fizeram isso em tempos de paz, imagine-se agora! A neutralidade da maioria dos países do Sul global em relação à invasão da Ucrânia exacerbou também o ressentimento dos países da OTAN, um ingrediente a mais, entre tantos, a explicar o fracasso recente das negociações sobre perdas e danos climáticos aos países mais vulneráveis, estipulada na COP27.[34]
4. O triunfo da estupidez
Os trabalhadores imigrantes em Abu Dhabi estão trabalhando sob temperaturas de alto risco (42ºC em setembro) na construção das instalações da COP28. Nesta e nas demais cidades do Golfo Pérsico e do Oriente Médio, temperaturas insuportáveis pelos humanos já estão ocorrendo e ocorrerão sempre mais no futuro.[35] E, dado que a guerra só acelera essa trajetória, a estupidez salta aos olhos: os israelenses invadem e ocupam territórios que estarão cada vez mais frequentemente sujeitos a temperaturas que excedem a capacidade de regulação térmica dos humanos (49,9ºC em Israel, em julho de 2019). O mesmo ocorre na Ucrânia, na Rússia e na Europa em geral, cada vez mais ameaçadas por ondas de calor, incêndios, escassez hídrica e inundações. O continente europeu como um todo está em franco processo de inviabilização climática, pois está se aquecendo duas vezes mais rapidamente do que o aquecimento médio global. Desde 1991, ele está se aquecendo à taxa de 0,5 ºC por década, e esse aquecimento médio em 2022 já é +2,3 (±0,2) ºC acima do período pré-industrial.[36] A cada 20 anos, portanto, a Europa se aquecerá pelo menos mais 1 ºC em média acima do aquecimento atual. Parece razoável que os europeus prefiram apressar sua ruína, fomentando uma guerra que não lhes traz qualquer benefício?
A paz e o desarmamento geral são a condição de possibilidade de negociações climáticas capazes de aumentar nossas chances de adaptação ao aquecimento vindouro. Os que consideram esse apelo cumplicidade com o “eixo do mal” ou, na melhor das hipóteses, ingenuidade e “bom-mocismo”, não entendem que a guerra contra o clima fará muito em breve mais vítimas do que as bombas atuais. E, nessa guerra, não há vencedores. Há apenas o triunfo da estupidez. Falta aos que, em nossos dias, ainda aceitam a guerra, a percepção do abismo. Um relatório do Escritório da ONU para a Redução de Riscos de Desastres (UNDRR) compara os desastres ocorridos nos anos 1980-1999 com os ocorridos nos anos 2000-2019.[37] O número de ondas de calor extremo ocorridas em 2000-2019 é mais do triplo das ocorridas no período 1980-1999. As inundações mais que duplicaram; os incêndios florestais aumentaram 46%; os furacões aumentaram 42%, e as secas aumentaram 28%, sempre na comparação entre os dois períodos. Nesses 20 anos (2000-2019), esses desastres mataram mais de 1,2 milhão de pessoas e impactaram cerca de 4,2 bilhões de pessoas, muitas delas mais de uma vez, sendo que mais de 90% desses desastres estão relacionados, de um modo ou de outro, com a emergência climática.
Os impactos dos próximos 20 anos serão muito piores, e as manchetes e fotos dos jornais de 2022 e 2023, mostrando rios e grandes lagos secos, pessoas sucumbindo ao calor ou ilhadas por inundações, mortandade de animais, florestas, casas e veículos carbonizados, oferecem uma pálida antevisão do que nos aguarda. O El Niño e as temperaturas anomalamente altas do Atlântico Norte são apenas agravantes a mais nesse quadro de catástrofe sistêmica, explodindo em câmara (ainda) lenta. Há uma sinergia de crises que se retroalimentam, que estão afetando a vida de populações inteiras e matando já quase tanto quanto as guerras. Na Europa, por exemplo, as estimativas são de que 61.672 pessoas morreram por excesso de calor apenas entre 30 de maio e 4 de setembro de 2022.[38] Nos EUA, nas últimas duas décadas, a mortalidade relacionada ao excesso de calor para idosos quase dobrou, atingindo um recorde de cerca de 19.000 mortes em 2018, sendo que tais mortes aumentaram 56% em 2021 em relação a 2018.[39] Evidentemente, como afirma Meghan Bartels, “as mortes por calor nos EUA aumentarão à medida que a crise climática piorar”.[40] Na Ásia, África e América Latina, malgrado dados deficientes, esse quadro de adoecimentos e mortes por extremos climáticos deve ser igual ou pior. Já estamos globalmente condenados, de qualquer modo e em qualquer cenário, a um aquecimento médio global de 2ºC acima do período pré-industrial, que será atingido no segundo quarto deste século.[41] Haverá ainda tempo de conter o aquecimento abaixo de 3ºC? Talvez sim, se agirmos com a máxima presteza e radicalidade, começando pela exigência de paz. Seguramente não haverá nenhuma possibilidade disso, se continuarmos ignorando, ou agindo como se ignorássemos, o colapso socioambiental em que as sociedades se precipitam, enquanto a indústria armamentista prospera. O decênio em curso é o último em que ainda poderemos agir de modo a que o futuro seja apenas pior (isso já é inevitável), mas não terminal.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
Luiz Marques é professor livre-docente aposentado e colaborador do Departamento de História do IFCH/Unicamp. É atualmente professor sênior da Ilum Escola de Ciência do CNPEM. Pela Editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011, e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 3a edição, 2018. É membro dos coletivos 660, Ecovirada e Rupturas.
Referências:
[1] Cf. Chris Megerian & Mary Clare Jalonick, “Biden asks Congress to secure $105 billion for Ukraine, Israel, the border and more”. AP, 20/X/2023.[2] Cf. “Troop Deaths and Injuries in Ukraine War Near 500,000, U.S. Officials Say”. The New York Times, 18/VIII/2023; Faustine Vincent, “The secret carnage of military losses in Ukraine”. Le Monde, 24/VIII/2023; Andrew Roth, “Battlefield deaths in Ukraine have risen sharply this year, say US officials”. The Guardian, 18/VIII/2023.
[3] Para uma recapitulação sumária dessa outorga e de seus desdobramentos desde 1948, cf. “The UN Partition Plan for Palestine”. Institute for Middle East Undrstanding, 27/XI/2012.
[4] Cf. “A história da Faixa de Gaza, que palestinos consideram ‘maior prisão a céu aberto’ do mundo”. BBC, 10/X/2023.
[5] Cf. Sanjana Karanth, “Israeli Defense Minister Announces Siege On Gaza To Fight ‘Human Animals’.” HuffPost, 9/X/2023
[6] Cf. Chiara Cruciati, “Mai un numero così alto di bambini uccisi in una settimana”. Il Manifesto, 15/X/2023.
[7] Cf. “Gaza death toll surges to 4,218, over 13,400 injured”. Palestine News & Info Agency, 20/X/2023; Bethan McKerman, “Israel hits Gaza with one of deadliest bombings so far in war against Hamas”, The Guardian, 23/X/2023; Wikipedia, “Jabalia refugee camp airstrikes”.
[8] Cf. Francesca Albanese (Relatora especial), “Report of the Special Rapporteur on the situation of human rights in the Palestinian territories occupied since 1967”. United Nations, Human Rights Council, 53a session 19/VI–14/VII/2023 Agenda item 7 Human Rights situation in Palestine and other occupied Arab territories.
[9] Cf. Caetano Scannavino, Luiz Marques & Oded Grajew, “Pela governança global do clima”. Folha de São Paulo, 23/VI/2023.
[10] Cf. Stephanie Savell, How Death Outlives War, The Reverberating Impact of the Post 9/11 Wars on Human Health, Costs of Wars, Watson Institute International & Public Affairs, Brown University, 23/V/2023.
[11] Cf. Geneva Academy of International Humanitarian Law and Human Rights: “Our Rule of Law in Armed Conflict Online Portal (RULAC) classifies all situations of armed violence that amount to an armed conflict under international humanitarian law. Today it monitors more the 110 armed conflicts”.
[12] Cf. Stockholm International Peace Research Institute, SIPRI Yearbook 2023. Armaments, Disarmament and International Security, SIPRI, 2023.
[13] Cf. “Deputy Commander Strategic Command speaks at the DSEI 2023 Launch”. Gov.UK
[14] Cf. Brett Wilkins, “‘War Is Good for Business’, declares Executive at London’s Global Arms Fair”. Common Dreams, 15/IX/2023.
[15] Cf. Transnational Institute.
[16] Cf. Peter Apps, “At London arms fair, global war fears ares good for business”. Reuters, 15/IX/2023.
[17] Cf. William J. Astore, “There’s No Business Like War Business”. Bracing Views, 7/VI/2021.
[18] Cf. Stockholm Institute Peace Research Institute (SIPRI), “Trends in World Military Expenditure, 2021”.
[19] Cf. SIPRI, “Trends in World Military Expenditure, 2022”. Fact Check, abril 2023.
[20] Cf. Govind Bhutada, “The U.S. Share of the Global Economy Over Time”. VisualCapitalist, 14/I/2021.
[21] Cf. Dmitry D. Adamsky, “The 1983 Nuclear Crisis – Lessons for Deterrence Theory and Practice”. Journal of Strategic Studies, 36, 8/II/2013.
[22] Cf. “‘Corremos o maior risco em décadas de uma guerra nuclear’, alerta o secretário-geral da ONU”. A Referência, 7/II/2023.
[23] Veja-se “La Troisième Guerre Mondiale a commencé: l’escalade en Ukraine va tout changer”. Entrevista para o canal Élucid.
[24] Trata-se do Treaty on Measures for the Further Reduction and Limitation of Strategic Offensive Arms (New START), que colocava um teto no número de armas nucleares estratégicas dos dois países, projetava novas reduções e permitia inspeções recíprocas in situ para verificar seu cumprimento.
[25] Cf. Shannon Bugos, “Russia Suspends New START”. Arms Control Association, março 2023: “I am compelled to announce today that Russia is suspending its participation” in New START etc.
[26] Cf. “START treaty: Russia stops sending nuclear arms info to US”. Al-Jazeera, 30/III/2023.
[27] Cf. Shannon Bugos, (cit.) Lavrov, em 8 de fevereiro de 2023..
[28] Cf. Lidia Kelly & Andrew Osborn, “Belarus starts taking delivery of Russian nuclear weapons”. Reuters, 14/VI/2023.
[29] Cf. “Humanidade está a um erro de cálculo da aniquilação nuclear, diz secretário-geral da ONU”. Valor, 1/VIII/2022.
[30] Cf. “National Nuclear Security Administration NNSA conducts experiment to improve U.S. ability to detect foreign nuclear explosions”. 18/X/2023
[31] Cf. Isabel van Brugen, “US May Have Given Russia Green Light to Test Nuclear Weapons”. Newsweek, 20/X/2023.
[32] Cf. Stuart Parkinson & Linsey Cottrell, “Estimating the Military’s Global Greenhouse Gas Emissions“. Scientists for Global Responsibility e Conflict and Environment Observatory (CEOBS). Novembro 2022.
[33] Cf. Lennard de Klerk et al., “Climate Damage Caused by Russia’s War in Ukraine 24 February 2022 – 23 February 2023”. Ministry of Environmental Protection and Natural Resources of Ukraine”.
[34] Cf. Climate ‘loss and damage’ talks end in failure”. The Hindu, 21/X/2023.
[35] Cf. “Killer Heat: The impact of extreme temperatures and climate change on Migrant Workers in the Gulf”. Vital Signs, Report 3, Junho 2023.
[36] Cf. “State of the Climate in Europe 2022”. WMO, n. 1320, Copernicus, 2023
[37] Cf. “Human cost of disasters. An overview of the last 20 years. 2000-2019”. UNDRR & CRED, Centre for Research of Epidemiology of Disasters, 2020.
[38] Cf. Joan Ballester et al., “Heat-related mortality in Europe during the summer of 2022”. Nature Medicine, 29, 10/VII/2023, pp. 1857-1866.
[39] Cf. “The state of climate change and health in the United States”. Lancet Countdown on Health and Climate Change. Dezembro 2020; Maggie Davis, “Heat-Related Deaths Up 56% Between 2018 and 2021, Provisional Data Shows”, ValuePenguin, 6/VI/2022.
[40] Cf. Meghan Bartels, “U.S. Heat Deaths Will Soar as the Climate Crisis Worsens”. Scientific American, 28/IX/2023.
[41] Cf. James Hansen, Makiko Sato & Pushker Kharecha, “November Temperature Update and the Big Climate Short“. Earth Institute, 23/XII/2021.
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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