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Artigo

O crescimento demoeconômico e o recorde de anomalia da temperatura em setembro de 2023

 

O crescimento demoeconômico e o recorde de anomalia da temperatura em setembro de 2023, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

“Acabou a era do aquecimento global e começou a era da ebulição global”
António Guterres, Secretário-geral da ONU

O ano de 2023, com grande probabilidade, apresentará as maiores temperaturas desde o início da medição das séries históricas e estima-se, também, que será um dos anos mais quentes dos últimos 120 mil anos, desde o período geológico interglacial do Eemiano.

O mês de julho de 2023 foi o mais quente em valor absoluto, mas o mês de setembro de 2023 apresentou a maior anomalia da temperatura, chegando em torno de 1,8º Celsius, em relação ao período 1850-1900, conforme indicado no gráfico abaixo. Nos primeiros 9 meses de 2023 houve 86 dias com temperaturas acima de 1,5º Celsius.

setembro de 2023 foi o mês mais anormalmente quente

 

O desequilíbrio climático não começou agora. Na verdade, o crescimento global da população e da economia gerou um volume tão grande de produção de bens e serviços que superou a capacidade da Terra em fornecer os serviços ecossistêmicos capazes de atender, de forma sustentável, toda a demanda antrópica por recursos naturais, assim como gerou uma enorme quantidade de resíduos líquidos e sólidos que poluem os solos, as águas e o ar.

A evolução da expansão humana no Planeta ultrapassou diversos limites planetários e provocou uma desestabilização energética do Sistema Terra, revertendo as condições favoráveis para os avanços civilizacionais.

O Homo sapiens surgiu há cerca de 200 mil anos e, por milênios, conviveu com altas taxas de mortalidade que ameaçavam a sobrevivência da espécie. Em consequência, a população humana só chegou ao redor de 200 milhões de habitantes no ano 1 da Era Cristã. Por volta de 1800, chegou a 1 bilhão de habitantes, com uma renda per capita praticamente estagnada durante milênios. No início do século XIX, a população mundial tinha uma mortalidade na infância de aproximadamente 400 mortes para cada mil nascimentos e uma expectativa de vida ao nascer de cerca de 25 anos. Mais de 80% da população global estava abaixo da linha da extrema pobreza.

Este quadro desfavorável começou a mudar com o avanço da Revolução Industrial e Energética que teve início no final do século XVIII e que propiciou o aumento exponencial da produção de bens e serviços a partir da utilização generalizada de energia extrassomática. O ano de 1769 é considerado um marco, pois foi quando James Watt (1736-1819) patenteou a máquina a vapor, dando início à queima, em larga escala, dos combustíveis fósseis (carvão mineral, petróleo e gás).

Especialmente no século XX, houve uma forte sinergia entre economia e demografia. Os estudiosos de população já haviam mostrado que a redução das taxas de mortalidade e natalidade eram um pré-requisito para o desenvolvimento econômico. Dois livros lançados recentemente mostram que a transição demográfica foi fundamental para a elevação da renda per capita e o progresso humano. Os autores Galor (2017) e De Long (2022) indicam que não existia aumento permanente e significativo da renda per capita antes da Revolução Industrial. Eles argumentam que durante a maior parte da existência do Homo sapiens as sociedades viveram o fenômeno definido como estagnação malthusiana.

Mas o quadro mudou com o avanço do desenvolvimento econômico e com a transição demográfica. Considerando os últimos 250 anos, a economia global cresceu 156 vezes, a população mundial cresceu 9,1 vezes e a renda per capita cresceu 17 vezes, como mostra o gráfico abaixo com dados do Projeto Maddison e do FMI. Em 1772, a população mundial era pouco menos de 900 milhões de pessoas e passou para 8 bilhões de habitantes em 2022. A renda per capita global, em preços constantes em poder de paridade de compra, estava abaixo de US$ 900 e passou para cerca de US$ 15 mil, no mesmo período. Este crescimento da população e do poder de compra ocorrido em dois séculos e meio foi muito maior do que o de todo o período dos 200 mil anos anteriores.

crescimento da população e economia mundial

 

Todo país rico e com alta qualidade de vida da população (alto Índice de Desenvolvimento Humano – IDH) passou pela transição demográfica, pois não há país desenvolvido com altas taxas de mortalidade e natalidade. Desta forma, a despeito das desigualdades, pode-se dizer que os ganhos sociais foram espetaculares. A mortalidade na infância caiu 10 vezes em 250 anos, estando atualmente abaixo de 40 mortes para cada 1 mil nascimentos.

A expectativa de vida média global triplicou em 250 anos, passando de cerca de 25 anos para quase 75 anos. Países ricos possuem expectativa de vida acima de 80 anos, mas mesmo em países muito pobres como Níger, Moçambique e Afeganistão o tempo médio de vida está acima de 60 anos atualmente. Os ganhos na educação, nas condições de moradia, no nível de consumo e no acesso à informação foram significativos e superaram as estimativas iniciais da modernização.

Porém, todo o enriquecimento humano ocorreu às custas do empobrecimento do meio ambiente. O conjunto das atividades antrópicas ultrapassou a capacidade de carga da Terra e o meio ambiente retrocedeu, com a degradação e poluição dos ecossistemas, a perda de biodiversidade e o desequilíbrio climático.

O gráfico abaixo mostra que do ano 1 ao século XVIII a concentração de CO2 e a temperatura do planeta apresentaram uma grande estabilidade, com uma leve tendência de queda da temperatura. Mas tudo mudou depois da Revolução Industrial e Energética que iniciou o uso generalizado de combustíveis fósseis. Aumentando a concentração de gases de efeito estufa, a temperatura também aumenta.

Na última era glacial a concentração de CO2 na atmosfera estava abaixo de 200 partes por milhão (ppm). Nos últimos 800 mil anos, a concentração de CO2 ficou sistematicamente abaixo de 280 ppm, segundo dados da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA).

concentração de co2 e aquecimento global

 

Em 1950, a concentração chegou a 300 ppm e, na época da primeira grande conferência sobre o meio ambiente, a Conferência de Estocolmo, em 1972, a concentração de CO2 na atmosfera já havia passado para 327 ppm. Em 1987 a concentração chegou a 350 ppm. Este é o nível máximo recomendado pela ciência para evitar um possível aquecimento global catastrófico.

Porém, a máquina econômica de emissão não sofreu interrupção. Em 2015, quando houve o Acordo de Paris, a concentração de CO2 já havia ultrapassado 400 ppm e, a despeito de todas as metas de redução, a concentração de CO2 chegou a 424 ppm em maio de 2023. O dramático é que o efeito estufa não está diminuindo, mas está se agravando. O aumento da concentração de CO2 na atmosfera contribuiu para o fato de os últimos 9 anos (2014 a 2022) terem sido os mais quentes já registrados no Holoceno.

Mas ninguém esperava que o mês de julho de 2023 fosse o mês mais quente dos últimos 120 mil anos e o mês de setembro de 2023 apresentasse a maior anomalia. O aumento da temperatura diminui a área e o volume do gelo dos polos, acidifica as águas dos oceanos prejudicando a vida marinha, intensifica os furacões e ciclones, aumenta as inundações e secas, afeta a produção de alimentos e gera trilhões de dólares de prejuízo à economia global.

Desta forma, a comunidade científica está perplexa não só com o aquecimento global, mas também com a baixa cobertura de gelo marinho na Antártida que está muito abaixo do normal, desde o começo das observações por satélites em 1979. A última vez que a temperatura ultrapassou os 1,5º C, no Planeta, provocou o aumento do nível dos oceanos em algo entre 5 e 9 metros. Tudo indica que a temperatura no século XXI vai ultrapassar em muito os 2º C em relação ao período pré-industrial. Os prejuízos poderão ser incalculáveis tanto nas áreas urbanas, quanto rurais. A fome pode voltar a assustar grande parte da população mundial.

O Antropoceno só existe em decorrência do crescimento desregrado e exagerado das atividades antrópicas. Existe uma verdade simples e inquestionável que reconhece ser impossível haver crescimento ilimitado em um Planeta finito. Indubitavelmente, existem limites biofísicos ao crescimento econômico como escreveu, em 1971, Nicholas Georgescu-Roegen no livro The Entropy Law andthe Economic Process, onde mostra, com base na Primeira Lei da Termodinâmica, que o metabolismo do processo produtivo é entrópico e não cria nem consome matéria e energia, apenas transforma recursos de baixa entropia em calor e resíduos de alta entropia (GEORGESCU-ROEGEN, 1971).

Outro alerta aconteceu há 50 anos, em 1972, quando uma equipe de cientistas do Massachusetts Institute of Technology (MIT), publicou o livro “Limites do crescimento, um relatório para o Projeto do Clube de Roma sobre o Dilema da Humanidade”. Os autores identificaram cinco vetores que poderiam provocar um colapso social e ambiental: o ritmo acelerado de industrialização, o rápido crescimento demográfico, a desnutrição generalizada, o esgotamento dos recursos naturais não-renováveis e a deterioração ambiental. Estas tendências se inter-relacionam de muitos modos e o livro indica as consequências que poderiam acontecer num horizonte de cem anos. Os autores do livro “Limites do crescimento” (MEADOWS et al, 1978) sintetizam suas conclusões em um único parágrafo:

“Se as atuais tendências de crescimento da população mundial, industrialização, poluição, produção de alimentos e diminuição de recursos naturais continuarem imutáveis, os limites de crescimento neste planeta serão alcançados algum dia dentro dos próximos cem anos. O resultado mais provável será um declínio súbito e incontrolável, tanto da população quanto da capacidade industrial” (p. 20).

Entretanto, o alerta sobre os limites do crescimento foram ignorados ou negados. Existem, inclusive, pessoas que negam a própria existência da crise climática e ambiental e são chamados de “céticos climáticos”. No dia a dia, o tabu religioso e as posturas ideológicas pronatalistas impossibilitam uma análise demográfica mais completa e dificultam o enfrentamento dos grandes problemas ambientais do mundo.

No dia 05 de setembro, na parte da manhã, o meteorologista Luiz Carlos Molion deu um depoimento irresponsável na CPI das ONGs no Congresso Nacional e disse que a mídia estava exagerando os efeitos do fenômeno El Niño e que não haveria enchentes no Sul do Brasil e nem seca no Norte. Porém, no mesmo dia começou as enchentes no vale do rio Taquari, no Rio Grande do Sul, que provocou a morte de mais de 50 pessoas. Ainda em setembro, a região Norte registra uma das maiores secas já registradas, inclusive provocando a morte de mais de 100 botos devido à baixa dos rios e à elevada temperatura das águas. Dessta forma, as pessoas e a natureza estão sofrendo enquanto os negacionistas climáticos espalham fake news.

O Papa Francisco também se posicionou contra o negacionismo climático. Numa encíclica de 7.000 palavras, chamada Laudate Deum (“Louvado seja Deus”), ele escreveu: “As nossas respostas não têm sido adequadas, enquanto o mundo em que vivemos está em colapso e pode estar se aproximando do ponto de ruptura”. O texto diz ainda: “Apesar de todas as tentativas de negar, ocultar, encobrir ou relativizar a questão, os sinais das alterações climáticas estão aqui e são cada vez mais evidentes. Ninguém pode ignorar o fato de nos últimos anos termos assistido a fenômenos meteorológicos extremos, períodos frequentes de calor anormal, seca e outros gritos de protesto”.

Um novo estudo publicado na revista Nature, na primeira semana de outubro, indicou que quatro em cada dez espécies de anfíbios correm risco de desaparecer por conta da destruição crescente de seus habitats e dos efeitos das mudanças climáticas ao redor do mundo, acelerando a 6ª extinção em massa das espécies. A humanidade se expande e a biodiversidade entra em colapso.

Como disse Edward Abbey (1927-1989): “Crescimento pelo crescimento é a ideologia da célula cancerosa”. De fato, o crescimento desregrado já ultrapassou a capacidade de carga da Terra. O artigo publicado na revista Science Advances, em 13 de setembro de 2023, elaborado por pesquisadores da Universidade de Copenhague, do Instituto Potsdam para Pesquisa de Impacto Climático e de outras instituições internacionais analisaram dois mil estudos para atualizar a estrutura dos limites planetários desenvolvida em 2009 pelo Centro de Resiliência de Estocolmo (RICHARDSON, 2023). Assim, foi realizada a primeira verificação completa de todos os nove processos e sistemas que determinam a estabilidade e resiliência do planeta. A conclusão é que seis das nove fronteiras planetárias foram ultrapassadas.

Ultrapassar as fronteiras planetárias significa aumentar os riscos ambientais e climáticos do presente e do futuro. O fato inquestionável é que o planeta está entrando em um estado novo, perigoso e muito menos estável. E a Terra está ficando mais inóspita e cada vez mais inabitável.

Referências:

ALVES, JED. Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico, Liinc em Revista, RJ, v. 18, n. 1, e5942, maio 2022 https://revista.ibict.br/liinc/article/view/5942/5595

DE LONG. J. BRADFORD. Rumo à Utopia. Uma História Econômica do Século XX, Livros básicos, 2022

GALOR, Oded. “A Jornada da Humanidade: Uma História Econômica do Mundo.” Editora 34, 2017.

GEORGESCU-ROEGEN, N. The Entropy Law and the Economic Process. Harvard University Press, 1971.

MADDISON, A. Maddison Project Database 2020, Groningen Growth and Development Centre, 2020.

MEADOWS, D. et. al. Limites do Crescimento. Um relatório para o Projeto do Clube de Roma sobre o Dilema da Humanidade, Editora Perspectiva, 2ª ed., São Paulo, 1978.

KATHERINE RICHARDSON et al. Earth beyond six of nine planetary boundaries, Science Advances, 13 September 2023 https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.adh2458

José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382

 

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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