Diminuição radical da emissão de gases do efeito estufa é o único caminho
Diminuição radical da emissão de gases do efeito estufa é o único caminho. Entrevista especial com Luiz Marques (IFCH/Unicamp)
“O El Niño aparece como um novo ingrediente na intensificação de um processo que talvez já se possa caracterizar como um novo estado do clima”, afirma o pesquisador
“A questão é se alguma civilização pode travar uma guerra implacável contra a vida sem se destruir e sem perder o direito de ser chamada de civilizada”. A frase da bióloga marinha, escritora, cientista e ecologista norte-americana, Rachel Louise Carson, orienta os desafios postos à humanidade diante do novo regime climático, diz Luiz Marques na videoconferência Novo Regime Climático e as propostas para uma política de sobrevivência, ministrada no Instituto Humanitas Unisinos – IHU em 21-09-2023.
Autor de O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência (Elefante, 2023), e Capitalismo e colapso ambiental (Unicamp, 2018), Marques insiste que a direção a seguir para enfrentar os efeitos extremos que assolam o mundo é a da “diminuição radical da emissão de gases do efeito estufa”. Entretanto, os investimentos públicos e privados indicam que “não há nenhuma perspectiva de uma transição ou diminuição do consumo de combustíveis fósseis”.
Segundo ele, o enfrentamento das mudanças climáticas depende da organização política para a resolução de problemas novos e antigos. O primeiro deles, sublinha, é a diminuição das desigualdades. “Sem diminuir as desigualdades, não conseguiremos fazer coisa nenhuma porque a concentração da terra e do poder econômico na mão das corporações tenta bloquear toda ação política que visa reverter a degradação ambiental”.
A seguir, publicamos a conferência de Luiz Marques no formato de entrevista.
Luiz Cesar Marques Filho (Foto: Arquivo pessoal)
Luiz Marques é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e doutor em História da Arte pela École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), de Paris, e doutor em História da Arte. É professor livre-docente aposentado e colaborador do Departamento de História da Unicamp e professor da Ilum Escola de Ciência do CNPEM.
Confira a entrevista.
IHU – Estamos vivendo um novo estado do clima?
Luiz Marques – A questão mais premente de nossos dias, o atual El Niño, iniciado oficialmente em junho de 2023, representa “apenas” um momento de intensificação do aquecimento global no ciclo El Niño/La Niña, ou seria ele o gatilho capaz de desencadear uma mudança irreversível, uma alteração qualitativa no sistema climático, com novos impactos a ele associados? Outras duas formas de se indagar a mesma questão é: quanto dos impactos maiores e sem precedentes que estamos presenciando no mundo em 2023 se devem ao El Niño, ou quão mais quente estará irreversivelmente o planeta quando o El Niño tiver passado, provavelmente em 2025? É muito provável que ele permaneça em 2024 e 2025 porque os ciclos do El Niño duram dois anos, como ocorreu em 1997 e 1998, 2015 e 2016 e como está ocorrendo a partir de junho de 2023.
Não é possível oferecer respostas categóricas a essas questões. A ideia de ultrapassagem de um tipping point, um ponto de não retorno, um ponto crítico, é algo que somos capazes de perceber apenas pelo espelho retrovisor. Isto é, somente quando passamos por ele. Não podemos claramente afirmar que o El Niño representa agora um momento de gatilho para a superação ou ultrapassagem de um ponto de não retorno no clima. Mas nove afirmações lapidares são já possíveis a respeito do advento de um novo estado e de uma nova dinâmica climática.
Primeira afirmação
Em primeiro lugar, há, efetivamente, novos recordes de consumo de combustíveis fósseis, que é a causa primeira da desestabilização da mudança climática. Segundo a Agência Internacional de Energia, três são as trajetórias possíveis, conforme o gráfico abaixo.
(Foto: Reprodução | YouTube)
As políticas atuais (current policies) levarão ao consumo de milhões de barris de petróleo por dia em 2040-2045, algo em torno de 120 milhões de barris diários. As políticas que estão sendo afirmadas pelos Estados no decorrer das Conferências das Partes (COPs) não levarão à diminuição do consumo de petróleo, mas à estabilização do consumo até 2040. Seria necessário optar pela terceira trajetória de emissão líquida (zero) até 2050.
Em 2019, o mundo atingiu o consumo de 100 milhões de barris de petróleo/dia. A Covid-19 fez o consumo cair, mas, em 2022, o consumo aumentou novamente para 100 milhões de barris de petróleo/dia. A previsão para 2026 é que o consumo seja de 104,1 milhões de barris de petróleo/dia, com um aumento de 4% em relação a 2019. Em 2023, segundo o Oil Market Report, a demanda mundial de petróleo atingiu um recorde de consumo de 103 milhões de barris de petróleo/dia.
Quanto ao gás, a demanda crescerá nos próximos anos, chegando a quase 4.300 bm3 até 2024, com um aumento de 7% em relação aos níveis pré-Covid. O consumo dos três combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão) na geração de eletricidade aumentará globalmente até 2025 em relação a 2010. Ou seja, não há nenhuma perspectiva de uma transição ou diminuição do consumo de combustíveis fósseis. Entre 2016 e 2022, os 60 maiores bancos mundiais canalizaram mais de 5,4 trilhões de dólares para a indústria fóssil. Em 2022, as finanças públicas do G20 canalizaram 1,4 trilhão para a indústria fóssil, na forma de investimentos e subsídios. Os subsídios do G20 para a indústria fóssil aumentaram entre 2010 e 2022. Em 2022, houve um salto gigantesco dos subsídios que estão sendo canalizados para a indústria fóssil por parte dos estados ou dos bancos. A partir de 2020, há um aumento claro nos investimentos em fósseis. Os investimentos em energias renováveis crescem também, mas não na mesma proporção.
Segunda afirmação
A segunda afirmação que podemos fazer é que as emissões de gases do efeito estufa continuam crescendo. Em 2019, as emissões globais de gases de efeito estufa atingiram 57,4 gigatoneladas de CO2 e bilhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente. As emissões aumentaram 59% em relação a 1990 e 44% em relação a 2000. Para 2030, a projeção é que este número cresça para 61,9 gigatoneladas.
Terceira afirmação
A terceira afirmação que podemos fazer de modo categórico é que o aquecimento global acelerou nos últimos anos. O aquecimento médio global, de 1970 a 2010, em relação ao período de 1880 a 1920, aumentou 0,18ºC por década. De 2010 a 2050, o mundo está aquecendo a uma taxa de 0,24ºC a 0,36ºC por década. Há, portanto, um aquecimento global em clara aceleração. De 1880 a 1950, o aquecimento médio global ocorria a 0,04ºC por década, segundo a National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA). De 1950 a 2020, a NOOA menciona um aquecimento de 0,14ºC por década. De 1970 a 2010, 0,18ºC por década, e de 2010 a 2050, 0,24 a 0,36ºC por década. Então, percebe-se que a taxa de aquecimento se multiplicou por algo na ordem de 6 a 9 vezes em relação ao período de 1880 a 1950. Não há dúvida de que estamos falando de uma enorme aceleração, a qual deve continuar, mantida a trajetória atual.
Quarta afirmação
Isso é causado por um desequilíbrio energético da Terra; e esta é a quarta afirmação. Quanto mais energia é absorvida pela Terra, acima da quantidade de energia por ela dissipada, maior o desequilíbrio entre absorção e dissipação.Entre janeiro de 2015 e dezembro de 2022, esse desequilíbrio será de 1,05 W/m2 em relação à média dos anos 2000-2010. Esse é um aumento muito claro e implica um aumento sucessivo da temperatura. A evolução desse desequilíbrio energético da terra aumenta dramaticamente. No período de 1971-2010, o desequilíbrio energético da Terra por metro quadrado foi de 0,4 W/m2, segundo a quinta avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) em 2013. De 1971 a 2018, mantém-se mais ou menos o mesmo quadro. Entretanto, de 2010 a 2018, há um salto e praticamente o valor dobra para 0,87. Estamos com um desequilíbrio muito maior.
Quinta afirmação
A quinta afirmação é que já não há nenhuma chance de evitar 1,5ºC. Essa hipótese, que era a meta mais audaciosa do Acordo de Paris, não foi alcançada e não será alcançada. Para James Hansen, autor de “Global Warming is Accelerating. Why? Will We Fly Blind?”, até agora, o presente El Niño, apenas oito anos após o de 2015-2016, sugere outro substancial aumento na taxa de aquecimento global. A temperatura mundial nos primeiros meses do El Niño é tão extrema, que agora é quase certo que a temperatura média dos últimos 12 meses excederá 1,5ºC em maio de 2024 ou antes.
Sexta afirmação
1,5ºC será ultrapassado até o fim desta década, mesmo com um El Niño moderado. Existe hoje 66% de chances de que a temperatura média anual global supere 1,5ºC acima dos níveis do período pré-industrial, em ao menos um dos próximos cinco anos (2023-2027). A evolução disso é muito clara, segundo os prognósticos quinquenais da Organização Meteorológica Mundial (OMM). Segundo o quinquênio 2019-2023, existe apenas 10% de chance que um ano, na média global anual, supere 1,5ºC. No quinquênio sucessivo de 2020 a 2024, essa probabilidade sobe para 24%. De 2021 a 2025, dá um salto para 40%. De 2022 a 2026, um salto para 48% e, de 2023 a 2027, 66%. Portanto, de 2024 a 2028, a probabilidade será maior de 66%.
Sétima afirmação
O aquecimento global de ao menos 2ºC é inevitável no futuro da Terra e será atingido até 2050. Na melhor das hipóteses, o aquecimento será de 2ºC e, na pior, será de 2,4ºC em 2050.
Oitava afirmação
Os impactos do aquecimento atual são mais graves do que os previstos pela Convenção Internacional para Proteção das Plantas (IPPC, na sigla em inglês) para este nível de aquecimento, isto é, o nível atual de aquecimento em torno de 1,2ºC na média global terrestre, marítima ou combinada, em relação a 1850-1900. Essa subestimação foi uma admissão de erro feita pelo IPCC. O segundo grupo de trabalho do mais recente relatório, publicado em 2022, afirma que as mudanças climáticas causaram danos substanciais e perdas crescentemente irreversíveis nos ecossistemas terrestres, de água doce, costeiros e nos oceanos abertos. A extensão e a magnitude dos impactos das mudanças climáticas são maiores do que as estimadas nas avaliações anteriores do próprio IPCC. Vemos claramente que temos diante de nós não só uma aceleração do aquecimento, mas aquilo que mais importa, isto é, os impactos que esse aquecimento gera.
Nona afirmação
Esses impactos já eram manifestos antes do advento do El Niño, de forma que este veio apenas a intensificá-lo. De algum modo, podemos verificar que um novo estado do clima já se delineava claramente antes do advento do El Niño, em junho de 2023. Entre os eventos que reforçam essa percepção estão as enchentes e inundações que ocorreram no Brasil em 2021 e 2023. Um total de 27% das mortes por chuvas nos últimos dez anos ocorreu em 2022. Como mostra o gráfico abaixo, há um salto na quantidade de vítimas e na intensidade do impacto das inundações ocorridas no Brasil nos últimos dez anos.
(Foto: Reprodução | YouTube)
IHU – Pode dar exemplos de eventos extremos que ocorrem no país?
Luiz Marques – Em dezembro de 2021, no sul da Bahia, o temporal atingiu 1.907 pessoas; 707 pessoas ficaram desabrigadas e 155 casas foram destruídas. Em Petrópolis, no Rio de Janeiro, em 2022 mais de 600 pessoas permaneciam desabrigadas um mês depois da enchente, que matou mais de 230 pessoas; foi uma chuva com mais de 530 mm, a maior da história. Até aquele momento não havia registro de uma quantidade de precipitação no nível de 530 mm em 24 horas. Em Pernambuco, de 25 a 30 de maio de 2022, a Defesa Civil confirmou 91 mortes decorrentes das inundações. No carnaval de 18 e 19 de fevereiro de 2023, no litoral norte de São Paulo, foram registradas 64 mortes em São Sebastião e uma em Ubatuba.
Houve uma segunda quebra de recorde de chuvas no litoral Norte de São Paulo, com 682 mm em 24 horas; 65 mortes foram confirmadas e mais de mil ficaram desabrigados. No Norte do Paraná, em março de 2022, na cidade de Bandeirantes, mais de 1.100 pessoas foram afetadas pelo desastre e cerca de 400 tiveram que deixar suas casas e ficaram desalojadas e sem energia elétrica. Cinco pessoas ficaram feridas. Em Rio Branco, no Acre, nos dias 24 e 25 de março, cheias dos rios Acre e Igarapés afetaram mais de 32 mil pessoas em 48 bairros. Cerca de 1.050 pessoas ficaram desabrigadas. A partir de 25-03-2023, chuvas extremas causaram inundações em seis estados do Norte e Nordeste: Acre, Amazonas, Pará, Rondônia, Tocantins e Maranhão. Essa gigantesca intensidade e a grande concentração de eventos meteorológicos extremos já estavam ocorrendo antes de 2023, sobretudo em 2021. A aldeia Panorama, localizada na Terra Indígena Karipuna, em Rondônia, foi alagada. A inundação deveu-se às usinas de Santo Antônio e de Jirau, com as barragens no rio Madeira, construídas entre os anos 2011 e 2013. Lá as enchentes se tornaram frequentes.
Eventos extremos no mundo
Fora do Brasil, a Colúmbia Britânica, província canadense, chegou, em junho de 2021, a 49,6ºC. Este é um recorde de pico de temperatura nunca imaginado em uma região de altitude tão elevada quanto o Canadá; foram registradas cerca de 600 mortes. Uma onda de calor ocorreu no Cone Sul, incluindo o Rio Grande do Sul, entre 10 de janeiro e 22 de janeiro de 2022. Na Argentina, os meses de novembro de 2022 e janeiro de 2023 foram os mais quentes, segundo registros históricos. Na Índia, o pesquisador Maximiliano Herrera publicou no Twitter que em abril e maio de 2023 ocorreu a pior onda de calor da história da Ásia em mais de uma dúzia de países. O Paquistão registrou 44ºC, a Índia, 43,4ºC, Myanmar, 43,3ºC. O mesmo aconteceu na Tailândia, com 42ºC. As Filipinas com 42ºC, Bangladesch com 42ºC, a maior temperatura dos últimos 58 anos. Em maio de 2023, o Vietnam registrou 44,2ºC, e, em maio, Laos registrou 43,5ºC. Nos primeiros 15 dias de abril de 2023, a Tailândia registrou 45,5ºC. Esse período é anterior ao verão setentrional que começaria em junho.
O mesmo aconteceu em Portugal, que bateu recorde nacional de calor com 36,5ºC em abril, em meados da primavera. A Espanha registrou 39ºC em abril. Tudo isso foi anterior ao El Niño de 2023. Em 24-04-2023, houve um salto excepcional nas temperaturas dos oceanos, aumentando todos os grandes problemas dos oceanos: temperatura, acidificação e desoxigenação, que estão internamente interligados.
(Foto: Reprodução | YouTube)
O Chile também registrou a pior seca do milênio. O rio Dez, no Sudeste do Irã, está secando sob novo recorde de calor dos registros históricos: 52,2ºC em junho de 2022. As secas na Europa castigaram a região na semana passada. No mapa abaixo, os pontos em vermelho indicam seca mais grave, com estresse de vegetação, seguindo a umidade do solo e alto déficit de vegetação. Em países como Espanha, França, Alemanha e Itália, existe um espalhamento muito grande de níveis extremos de secas no verão de 2022.
(Foto: Reprodução | YouTube)
Entre as consequências, em junho de 2022, o rio Po, um dos mais importantes da Itália, entre Parma e Reggio Emilia, secou. Esta é a primeira vez que o rio Po seca desse jeito. Os rios perenes da Europa começam a se tornar rios sazonais. Esses são fenômenos que acontecem em outras partes do mundo. Isso está acontecendo alternando-se com grandes inundações que atingiram 44 municípios nas províncias de Ravenna, Forli-Cesena, Rimini, Bologna, Modena, Reggio Emilia, Pesaro, Urbino, Ancona, Macerato, Fermo etc., com transbordamento de 23 rios e córregos, 13 mortes e mais de 40 mil deslocados. O Loire, o rio mais importante que corta a França, em agosto de 2022 está com grandes extensões secas. O Rio Reno, em julho de 2022, registrou os menores níveis históricos.
Também há aumento de incêndios. A área queimada em hectare na Europa até meados de agosto de 2022 é representada pela linha vermelha, na imagem abaixo. A média é representada pela linha em azul. As linhas indicam que há um salto excepcional na extensão da área queimada na Europa em agosto de 2022. Percebemos que isso acontece novamente no verão de 2023. Mas em agosto de 2022 foi o primeiro ano em que houve um salto excepcional na extensão da área queimada na Europa.
(Foto: Reprodução | YouTube)
No Canadá acontece a mesma coisa. Antes de junho de 2023 dá um salto quase vertical em relação às médias históricas do comportamento dos incêndios nos anos anteriores, de 2019 a 2021. Em junho de 2023, com o El Niño, a Sibéria registrou 40ºC, a pior onda de calor da sua história. Percebemos que o El Niño aparece como um novo ingrediente na intensificação de um processo que talvez já se possa caracterizar como um novo estado do clima.
Enormes incêndios ocorreram entre junho e julho de 2023 em vários países, como Canadá, Portugal, Grécia, Havaí; são registros sem precedentes. O caso do Canadá talvez seja o mais dramático de todos porque queimou, em 15 de setembro, 170.000 km2. Em termos de extensão, é algo que não tem paralelo na história dos incêndios do Canadá. Na Ilha de Maui, no Havaí, em agosto de 2023, carros foram abandonados pelos motoristas que se jogaram ao mar para escapar dos incêndios. Até 18 de agosto, 111 mortes foram confirmadas devido ao incêndio que se alastrou até atingir a cidade de Lahaina. Foi um incêndio devastador e repentino que levou a esse nível de reação de os motoristas abandonarem seus carros.
Entre os 30 dias mais quentes registrados, 21 ocorreram no mês de julho. Os nove restantes ocorreram em 2016, 2019, 2020, 2022. Isso indica um novo salto que intensifica um processo que já havia se caracterizado como uma mudança no estado de clima antes do El Niño. A mesma coisa aconteceu entre 13 de julho e 07 de agosto, onde as temperaturas ultrapassaram o recorde de 16,9ºC, quebrado em 25-08-2002.
IHU – O que significa falar em decênio decisivo?
Luiz Marques – Vou mencionar alguns cientistas importantes que falam sobre o decênio decisivo. Em 2018, Debra Roberts, codiretora do relatório especial do IPCC, disse, sobre o aquecimento de 1,5ºC, que “as decisões que tomarmos hoje são críticas para assegurar um mundo seguro e sustentável para todos, agora e no futuro. (…) Os próximos poucos anos serão provavelmente os mais importantes de nossa história”.
Petteri Taalas, secretário-geral da Organização Meteorológica Mundial (OMM), em 2018, disse que “sem uma crescente e urgente ambição de mitigação nos próximos anos, com uma queda acentuada nas emissões de gases de efeito estufa até 2030, o aquecimento global ultrapassará 1,5ºC nas décadas seguintes, levando à perda irreversível dos ecossistemas mais frágeis e a crises após crises para as pessoas e sociedades mais vulneráveis”. Lamentavelmente isso não se confirmou e acontecerá já nesta década.
Ainda em 2018, o SOS de 700 cientistas, publicado no jornal Libération, disse que “apenas mudanças imediatas e engajamentos a curto prazo, no âmbito de objetivos claros e ambiciosos no horizonte de 2030, podem nos permitir enfrentar o desafio climático. Este nos ensina que o longo prazo depende de decisões a curto prazo, os quais permitirão às gerações futuras não precisar se resignar ao pior”.
Em outubro de 2018, David King, conselheiro científico-chefe do governo britânico entre 2000 e 2007 e representante especial para as mudanças climáticas do governo entre 2013 e 2017, disse que “a humanidade está diante do mais sério desafio de sua história. (…) O tempo não está mais do nosso lado. O que continuarmos a fazer ou inovarmos e o que planejarmos fazer nos próximos 10 ou 12 anos determinará o futuro da humanidade nos próximos dez mil anos”. Essa é a declaração mais emblemática de todas.
Em 2018, Will Steffen e mais 15 colegas, autores do projeto Trajectories of the Earth System in the Anthropocene, disseram que “as tendências e decisões sociais e tecnológicas que ocorrerão na próxima década [2021-2030], ou nas próximas duas décadas, podem influenciar significativamente a trajetória do sistema Terra por dezenas a centenas de milhares de anos e potencialmente levar a condições que se assemelham a estados planetários vistos pela última vez há milhões de anos atrás, condições que seriam inóspitas para as sociedades humanas atuais e para muitas outras espécies contemporâneas”. Considero este projeto um dos melhores publicados sobre essa questão até hoje.
Em 2020, Johan Rockström, diretor do Potsdam Institute for Climate Impact Research, disse que “pela primeira vez, somos forçados a considerar que há um risco real de desestabilizar o planeta inteiro. (…) É preciso que os próximos dez anos, até 2030, vejam a mais profunda transformação que o mundo jamais conheceu. Essa é a nossa missão. Essa é a contagem regressiva”.
Christiana Figueres, grande artífice do Acordo de Paris, e Tom Rivett-Carnac, em “The Future We Choose. Surviving the Climate Crisis”, em 2020, disseram que “estamos na década crítica. Não é exagero dizer que o que fizermos em relação às reduções de emissões até 2030 determinará a qualidade da vida humana neste planeta por centenas de anos, senão mais”. Em 2021, novamente, Will Steffen declarou que “estamos agora numa bifurcação. Não teremos outra década para hesitar como fizemos na década passada”.
Em 2012, o workshop conjunto do IPBES e do IPCC, dois grandes coletivos científicos, destacou que sem mitigação do aquecimento “projeta-se uma ruptura abrupta da estrutura, função e serviços ecológicos nos sistemas marinhos tropicais até 2013, seguida pela ruptura das florestas tropicais e pelos sistemas de mais alta latitude até 2050”.
Johan Rockström, em 2021, afirmou o seguinte: “A partir da evidência que temos hoje, minha conclusão é que o que fizermos entre 2020 e 2030 será decisivo para o futuro da humanidade na Terra. O futuro não está determinado. O futuro está em nossas mãos. O que acontecerá no próximo século será determinado pelo modo como jogarmos nossas cartas neste decênio”.
Em 2021, o relatório “Rebuilding Coral Reefs”, publicado pela International Coral Reef Initiative, afirmou que “o próximo ano e década provavelmente oferecem a última chance para entidades internacionais, regionais, nacionais e locais para mudar a trajetória dos recifes de coral, do colapso global a uma recuperação lenta, mas constante”. David Attenborough, grande naturalista e divulgador cientista, na 47º reunião do G7, no Reino Unido, disse que “as decisões que tomarmos nesta década – em particular as decisões feitas pelas nações economicamente mais avançadas – são as mais importantes da história da humanidade”.
Alok Sharma, que foi presidente da COP26, na Escócia, disse que “este é nosso momento. Está é a década decisiva. Se não conseguirmos isso exatamente agora, receio que as coisas ficarão muito sombrias para as gerações futuras. Não temos 30 anos, temos na realidade menos de dez anos para acertar”.
Volto à frase do David King: o que fizermos nos próximos dez anos determinará o futuro da humanidade pelos próximos dez mil anos. Ele é um dos grandes cientistas; uma figura de enorme autoridade científica.
IHU – O que seria uma política de sobrevivência?
Luiz Marques – A primeira delas é a diminuição das desigualdades. Sem diminuir as desigualdades, não vamos conseguir fazer coisa nenhuma porque a concentração da terra e do poder econômico na mão das corporações tenta bloquear toda ação política que visa reverter a degradação ambiental. Se mantivermos a concentração de poder nas mãos das corporações, de uma elite que representa 1% da humanidade, não teremos condições políticas de determinar uma mudança de trajetória.
A segunda proposta é a transição urgente para um sistema energético renovável e de baixo carbono, com diminuição do consumo de energia e materiais para a população 30% mais rica da humanidade. É tão baixo o nível de consumo de energia e materiais dos 50% mais pobres da humanidade, que eles podem aumentar seu consumo sem que haja um impacto maior em relação a isso. Mas, para tanto, é preciso um controle social das decisões estratégicas de investimento. As corporações e os Estados não mudarão suas estratégias atuais.
O terceiro ponto é o desmatamento zero e a restauração florestal. É preciso restaurar os biomas e ampliar as reservas naturais, a serem consideradas como santuários inacessíveis aos mercados globais.
A quarta proposta é a desglobalização do sistema alimentar e sua transição acelerada para uma alimentação baseada em nutrientes vegetais. No Brasil, temos o exemplo magnífico do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), que aponta o caminho como uma alternativa estratégica para a agricultura no Brasil.
A quinta proposta é a extensão da ideia de sujeito de direitos às demais espécies, à biosfera e às paisagens naturais. Estamos em um mundo ideológica e mentalmente muito antropocêntrico. Precisamos pensar a posição do homem de um modo mais integrado e, portanto, estender a ideia de sujeito de direito a outras espécies.
A sexta questão é o desmantelamento da economia global e a transição acelerada para uma civilização descarbonizada. Aqui eu me baseio na frase do Yvo de Boer, ex-secretário executivo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas. Segundo ele, a única via para que o Acordo de Paris possa conter o aquecimento em 2ºC é desmantelar a economia global.
A sétima proposta é a governança global democrática, que implica a adoção do princípio de soberania nacional relativa. Esta ideia supõe uma grande reforma da ONU, onde haja um outro princípio que não o da soberania nacional absoluta. Ou seja, é preciso rever a ideia de que qualquer nação pode fazer o que bem entender porque goza de uma soberania nacional absoluta. Temos que abandonar esse princípio em função de uma soberania nacional relativa. Ela é absoluta enquanto não interferir no bem-estar da humanidade.
O oitavo ponto é acelerar a transição demográfica para aumentar as chances de sucesso das propostas acima enunciadas.
IHU – Qual a nossa situação neste momento?
Luiz Marques – Neste exato momento temos vivido um processo de colapso ambiental em escala planetária, caracterizado por três tendências aceleradas:
1.- Aquecimento global de 0,24ºC a 0,36ºC/década.
2.- Aniquilação da biosfera.
3.- A ultrapassagem iminente ou já ocorrida de diversos pontos críticos do sistema Terra.
Existe também uma ameaça existencial, que se refere ao fim das sociedades organizadas e capazes de avançar em democracia e bem-estar. Uma ameaça existencial pode significar o fim da capacidade social em progredir. Pode ser também o fim do projeto humano de mais longo prazo, pondo em perigo a possibilidade de uma sociedade complexa, capaz de fazer uso de uma energia exossomática, que não está presente apenas nos organismos, mas que pode captar energia das mais diversas fontes, produzir máquinas, por exemplo. Estamos arriscando uma sociedade que estará em um nível de precariedade tão grande que colocará em perigo a possibilidade de uma sociedade complexa e a própria existência da nossa espécie.
Por exemplo, os índices de colapso da Amazônia são claros. Desde 2013, a Amazônia perdeu de 5.000 a 13.000 km2 por corte raso por ano. Cumulativamente, entre 2013 e 2022, isso monta a mais de 85.000 km. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), trata-se de uma área equivalente ao dobro da área do estado do Rio de Janeiro. Isso sem contar a área perdida em degradação e fragmentação da floresta (extração de madeira, mineração, garimpo, abertura de estradas etc.).
A Amazônia ainda armazena entre 100 e 200 gigatoneladas de carbono e é um dos maiores hotspots de biodiversidade do mundo. A perda da floresta, por pressão antrópica direta e por alças de retroalimentação já em ação, é tão ameaçadora quanto o derretimento do gelo e o degelo do permafrost nas altas latitudes do planeta. O cruzamento de pontos críticos na Amazônia e em outros elementos de larga escala do sistema Terra significará o fim de qualquer esperança de adaptação humana aos impactos catastróficos do aquecimento global já na próxima década e ao longo das próximas poucas décadas.
Evitar esses três cenários terminais requer a ultrapassagem de um ponto crítico na reatividade das sociedades (social tipping point), sobretudo uma nova capacidade de organização política. A direção que temos que seguir é a da diminuição radical da emissão de gases do efeito estufa. Vamos conseguir fazer isso se nos organizarmos politicamente. Concluo com esta frase da Rachel Carson, frase pela qual tenho grande afeição: “A questão é se alguma civilização pode travar uma guerra implacável contra a vida sem se destruir e sem perder o direito de ser chamada de civilizada”.
(EcoDebate) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
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