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O crescimento populacional aumenta a vulnerabilidade climática

 

O crescimento populacional aumenta a vulnerabilidade climática, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

O resultado do progresso humano tem sido o retrocesso das condições ambientais. A época dos ganhos tem sido substituída pela era dos danos

“O que estava em jogo no velho conflito industrial do trabalho contra o capital eram positividades: lucros, prosperidade, bens de consumo. No novo conflito ecológico, o que está em jogo são negatividades: perdas, devastação, ameaças” Ulrich Beck, Sociedade de Risco

Durante todo o Holoceno (últimos 12 mil anos) a estabilidade climática do planeta permitiu e facilitou o florescimento da civilização humana. Logo depois da última era glacial, a humanidade aprendeu a utilizar a agricultura e a pecuária a seu favor. O aumento do excedente de meios de subsistência permitiu o progresso das cidades.

Acredita-se que a agricultura tenha se originado por volta de 10.000 a.C. nas regiões conhecidas como “Crescente Fértil”, que abrangiam áreas do Oriente Médio, incluindo partes da atual Turquia, Iraque, Irã, Síria e Líbano. Os primeiros agricultores começaram a cultivar plantas como trigo, cevada, lentilha e ervilha, aprendendo a domesticar e selecionar sementes para aumentar a produtividade e a variedade dos alimentos. A agricultura trouxe uma série de mudanças na vida das pessoas. Em vez de dependerem da caça e da coleta de alimentos selvagens, as comunidades agrícolas podiam plantar e colher suas próprias safras. Isso levou ao estabelecimento de assentamentos permanentes, ao aumento da população e ao surgimento de sociedades mais complexas.

A domesticação e criação de animais também foram um desenvolvimento crucial na história da período. Os primeiros animais a serem domesticados foram provavelmente cães, seguidos por ovelhas, cabras e porcos. A criação de animais proporcionava uma fonte constante de alimentos humanidade. A pecuária começou a se desenvolver em paralelo à agricultura, em torno do mesmo, como carne, leite e couro. Além disso, os animais domesticados eram utilizados para auxiliar no trabalho agrícola, como arar a terra. Com o tempo, outros animais, como bovinos e cavalos, também foram domesticados para diversos propósitos.

O desenvolvimento da agricultura e da pecuária permitiu que as comunidades humanas se estabelecessem em locais fixos, em vez de serem nômades em busca de alimentos. Esses assentamentos permanentes, com tempo, cresceram em tamanho e complexidade, evoluindo para as primeiras cidades. O surgimento das cidades está ligado a vários fatores, incluindo a necessidade de coordenação social, o crescimento populacional e o desenvolvimento de atividades comerciais.

À medida que as sociedades agrícolas se tornavam mais avançadas, surgiam divisões de trabalho, com algumas pessoas se especializando em atividades não agrícolas, como artesanato, comércio e governança. As cidades forneciam um centro de comércio, troca de conhecimentos e cultura, além de servirem como locais de poder político e religioso. A urbanização continuou a crescer ao longo dos milênios, culminando nas cidades complexas e densamente povoadas que conhecemos hoje.

Acontece que todo o sucesso humano em dominar a natureza tem se voltado contra a civilização, pois o enriquecimento da população mundial (mesmo que de forma desigual) ocorreu às custas do empobrecimento do meio ambiente e da desestabilização do clima planetário.

A humanidade chegou a 1 bilhão de pessoas por volta do ano 1800, passou para 4 bilhões em 1974 e alcançou 8 bilhões de habitantes em 2022. Em menos de 50 anos foram acrescentados 4 bilhões de consumidores do meio ambiente. Em pouco mais de 200 anos a população octuplicou e a produção de bens e serviços aumentou mais de 100 vezes. Consequentemente, os ecossistemas foram saqueados, os rios, lagos e oceanos foram poluídos e a atmosfera virou abrigadouro dos gases de efeito estufa liberado pelas atividades antrópicas.

O relatório “Sustainable Trade in Resources: Global Material Flows, Circularity and Trade” (UNEP/IRP, 2020) registrou o tamanho da demanda humana por recursos da natureza. A extração global de recursos naturais estava em 27 bilhões de toneladas em 1970, passou para 92 bilhões de toneladas em 2017 e deve alcançar 190 bilhões de toneladas em 2060. Cada habitante do Planeta consumia em média 7 toneladas per capita em 1970, passou para 12 toneladas per capita em 2017 e deve chegar a cerca de 20 toneladas per capita em 2060.

As emissões globais de CO2 que estavam em 6 bilhões de toneladas em 1950, chegaram a 16 bilhões de toneladas em 1972 e atingiram 37 bilhões de toneladas em 2022. Portanto, entre 1900 e 1972 o aumento foi de 10 bilhões de toneladas em 72 anos e entre 1972 e 2023 o aumento foi de 21 bilhões de toneladas em 51 anos. Houve aceleração do ritmo das emissões. Em consequência, aumentou a dimensão do efeito estufa, com elevação das temperaturas médias do Planeta.

Nos últimos 800 mil anos, a concentração de CO2 na atmosfera estava sistematicamente abaixo de 280 partes por milhão (ppm). Em 1950 chegou a 300 ppm e, na época da Conferência de Estocolmo, em 1972, a concentração de CO2 na atmosfera estava em 327 ppm. Em 1987 a concentração chegou a 350 ppm. Este é o nível máximo recomendado pela ciência para evitar um possível aquecimento global catastrófico. Em 2015, quando houve o Acordo de Paris, a concentração de CO2 já havia ultrapassado 400 ppm e, a despeito de todas as metas de redução, a concentração de CO2 chegou a 424 ppm em maio de 2023.

O resultado do progresso humano tem sido o retrocesso das condições ambientais. A época dos ganhos tem sido substituída pela era dos danos. Como disse o sociólogo Ulrich Beck, no livro Sociedade de Risco: “O que estava em jogo no velho conflito industrial do trabalho contra o capital eram positividades: lucros, prosperidade, bens de consumo. No novo conflito ecológico, o que está em jogo são negatividades: perdas, devastação, ameaças”.

Portanto, as boas condições climáticas e ambientais que possibilitaram o crescimento exponencial da população e das cidades desapareceram e, lastimavelmente, se transformaram em uma situação de múltiplas crises (policrise) e de crises permanentes (permacrise). A habitabilidade do planeta tem retrocedido e isto dificulta a continuidade do crescimento populacional e, em especial, a continuidade do crescimento da população urbana. O aquecimento global tem um impacto amplo e irrestrito sobre o planeta, como aumentar as ondas letais de calor e aumentar o nível dos oceanos.

De acordo com o Instituto Berkeley Earth, da Califórnia, os últimos nove anos têm sido os mais quentes do Holoceno. A Organização Meteorológica Mundial (OMM) divulgou um relatório, em maio de 2023, confirmando que há uma probabilidade de 66% de a média anual de aquecimento ultrapassar o limite de 1,5°C entre 2023 e 2027.

Com o aparecimento do evento El Niño, os meses de junho e julho foram os mais quentes dos últimos 120 mil anos e há uma crescente chance de que 2023 se torne o ano mais quente do planeta na era observacional. Os efeitos do aumento da temperatura são generalizados. As ondas letais de calor estão se transformando em uma nova pandemia e matando mais gente do que a pandemia da covid-19. O degelo do Ártico, da Antártida, da Groenlândia e dos glaciares estão aumentando o nível dos mares e ameaçando a população e as cidades costeiras.

O gráfico abaixo, do Instituto Earth Berkeley, mostra como a temperatura tem uma trajetória ascendente ao longo do século XXI (tendo como linha base de referência o período 1991-2020). A temperatura deve subir em torno de 2º Celsius nas próximas 8 décadas.

aumento da temperatura global ao longo do século 21

O aumento da temperatura global traz consigo uma série de perigos e impactos negativos para o planeta e para a vida na Terra, tais como:

  • Derretimento acelerado do gelo polar: O aquecimento global nessa magnitude pode levar a um derretimento mais rápido das geleiras e do gelo polar, o que contribuiria para a elevação do nível do mar. Isso pode ameaçar comunidades costeiras, ecossistemas e habitats marinhos.

  • Aumento da frequência e intensidade de eventos climáticos extremos: Aumento de calor extremo, ondas de calor, secas mais intensas e prolongadas, tempestades mais fortes, furacões e inundações são algumas das consequências esperadas. Esses eventos extremos podem afetar a agricultura, a disponibilidade de água, a infraestrutura e a saúde pública.

  • Acidificação dos oceanos: O aumento da concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera também causa a acidificação dos oceanos, prejudicando a vida marinha, especialmente organismos com conchas e corais, além de afetar a cadeia alimentar dos ecossistemas marinhos.

  • Perda de biodiversidade: As mudanças climáticas podem perturbar os ecossistemas naturais, forçando muitas espécies a se adaptarem, migrarem ou enfrentarem riscos de extinção, levando a uma redução significativa da biodiversidade.

  • Impactos na agricultura e na segurança alimentar: Mudanças climáticas podem afetar negativamente a produção agrícola, seja devido a secas, inundações, aumento de pragas ou alterações nos padrões de crescimento das plantas, o que poderia desencadear problemas de segurança alimentar em regiões vulneráveis.

  • Disrupção de ecossistemas marinhos e terrestres: Com o aumento das temperaturas, alguns ecossistemas podem ser prejudicados, causando perturbações nas relações ecológicas entre espécies e afetando a capacidade de muitos animais e plantas de sobreviverem.

  • Escassez de água: Mudanças nos padrões de precipitação podem resultar em períodos de chuvas mais intensas e menos frequentes, causando escassez de água em muitas regiões, afetando a agricultura, o abastecimento de água potável e a geração de energia hidrelétrica.

Esses são apenas alguns dos perigos associados a um aumento de 2º Celsius na temperatura global. Artigo da BBC (Stylianou, 6/12/2018) mostra que as cidades com maior crescimento populacional enfrentam os piores riscos climáticos, conforme mostra o gráfico abaixo. Por exemplo, a capital da Nigéria – Lagos – compõe uma região metropolitana que inclui 16 cidades e mais de 25 milhões de habitantes, sendo a maior metrópole da África. Fica na costa do Atlântico, à beira de um grande lago, e já sofre com as inundações provocadas pela combinação de chuvas e elevação do nível do mar. Com a aceleração do aquecimento global, milhões de pessoas ficarão desalojadas pela invasão das águas salgadas. A Combinação de crise econômica, crise ambiental e alto crescimento demográfico tende a fazer explodir a extrema pobreza, condenando milhões de nigerianos ao sofrimento e fazendo do país um lugar mais perigoso e inóspito para se viver.

cidades com maior crescimento populacional enfrentam os piores riscos climáticos

Se o ritmo atual do aquecimento global não for controlado, isso empurrará bilhões de pessoas para fora do “nicho climático” (as temperaturas em que os humanos podem sobreviver) e os exporá a condições perigosamente quentes. Metade da população mundial estará em situação de vulnerabilidade até o final do século XXI. A 6ª extinção em massa das espécies e o aumento da emissões de gases de efeito estufa leva a uma crise ambiental e climática, sendo que o aquecimento global pode tornar amplas áreas da Terra inóspitas e inabitáveis.

Desta forma, a transição demográfica e o decrescimento populacional podem ser uma forma não só de mitigação do aquecimento global, mas também uma forma de se adaptar às novas condições ecológicas da sociedade de risco e com temperaturas cada vez mais altas.

Como disse o filósofo Bertrand Russell (1872-1970): “O mundo tem gente demais. Acreditando em coisas demais. Se houvesse menos gente acreditando em menos coisas, talvez tudo fosse melhor!”

José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382

Referências:

ALVES, JED. Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico, Liinc em Revista, RJ, v. 18, n. 1, maio 2022 https://revista.ibict.br/liinc/article/view/5942/5595

Nassos Stylianou et al. Aquecimento global: 7 gráficos que mostram em que ponto estamos, BBC, 6/12/2018 https://www.bbc.com/portuguese/geral-46424720

UNEP and IRP. Sustainable Trade in Resources: Global Material Flows, Circularity and Trade. United Nations Environment Programme. Nairobi, Kenya, 2020

https://wedocs.unep.org/bitstream/handle/20.500.11822/34344/STR.pdf?sequence=1&isAllowed=y

Zeke Hausfather. Are temperatures this summer hotter than scientists expected? Earth Berkeley, 27/07/2023 https://berkeleyearth.org/are-temperatures-this-summer-hotter-than-scientists-expected/

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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One thought on “O crescimento populacional aumenta a vulnerabilidade climática

  • Severino Agra Filho

    prezados
    para contribuir com o debate , permitam-me as seguintes observações:
    – o papel do crescimento populacional tem sido refutado por diversos autores. Defendem esses autores que o mais importante é o padrão de consumo da sociedade
    – a generalização de uma era do antropoceno deixa de explicitar o papel predominante de um sistema econômico consumista

Fechado para comentários.