O modo como tratamos o planeta nos denuncia
O modo como tratamos o planeta nos denuncia
Parece que nos especializamos em produzir variados problemas ambientais com o pendor de aprofundar a crise global do meio ambiente
GiLBERTO NATALINI *
EDUARDO JORGE **
MARCUS EDUARDO DE OLIVEIRA***
“Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social;
mas uma única e complexa crise socioambiental”.
(Papa Francisco, Laudato Si’, LS, 139)
Respeitando o olhar da ciência, não há como esconder mais uma verdade inconveniente: estamos promovendo a mais avassaladora destruição da natureza, da biodiversidade, dos ecossistemas, do clima. Estamos contaminando cursos de água, intoxicando os solos com pesticidas. Eliminamos em massa espécies animais e vegetais. Já alteramos 70% da superfície terrestre da Terra. A temperatura global da atmosfera bate recorde. Há um acúmulo de evidências trágicas.
Sintetizando, a crise climática está aqui, entre nós, e estamos cada vez mais próximos de um ponto de não retorno.
Seja como for, a escala da interferência humana no sistema Terra nos denuncia. Para começo de conversa, até hoje, pensando a ofensiva espoliadora contra o meio ambiente, é fácil concluir que não há lugar no Lar Planetário que o chamado homem moderno, de um jeito ou de outro (pouco importa), não tenha modificado.
Resposta óbvia: na tarefa de cuidar do planeta, temos sido um fracasso espetacular. Não por acaso, crise no meio ambiente passou a ser lugar-comum, decerto, referência imediata do nosso jeito antropocêntrico – antropocentrismo dominador.
E poderíamos dizer ainda algo com mais ênfase. Por conta direta do paradigma que nos trouxe até aqui, o da dominação de tudo e de todas as coisas, visto pelo lado do meio ambiente, o veredito parece ser um só: “Nos aproximamos cada vez mais de grandes desastres, provocados especialmente pelo modo como tratamos o planeta”.1
Nesse caso concreto, reforçando o que acabamos de anunciar, acumulam-se evidências de que o jeito como habitamos a Casa Comum que nos acolhe, “especialmente depois que entramos na fase capitalista”, usando as palavras do filósofo alemão Anselm Jappe, define, a rigor, a situação ecológica do mundo, tanto quanto define a saúde e o desenvolvimento humanos. Pesarosa constatação, a verdade é que, moralmente, somos denunciados por isso.
De modo simples e direto, suspeitamos que essa crítica é pertinente porque desnuda nossa irresponsabilidade ambiental, algo que, vale reconhecer, está na base da vida social conhecida. Não por acaso, em pouco mais de 50 anos, diante da crença (cada vez mais influente e dominante) de que a tecnologia pode levantar uma economia sem limites, dobramos nossa pegada ecológica. Agora, “viciados em modernidade”, como gosta de dizer Aílton Krenak, “transformamos” o mundo num gigantesco hipermercado repleto de bugigangas. O resultado não poderia ser outro: a Humanidade toda já excede em 50% a capacidade de regeneração e absorção do planeta.
No horizonte crítico, isso tem um significado claro: para sustentar o peso da produção humana (massa antropogênica talvez seja o termo mais adequado), a atividade humana já explora num ritmo insustentável mais de 100 bilhões de toneladas de materiais (areia, pedra, cimento, biomassa, materiais metálicos e assim por diante) a cada ano. São 13 toneladas por habitante do planeta. Quase a metade disso se transforma em habitações, prédios comerciais, meios de transporte; enfim, produção para uso da sociedade humana.
Por tal razão, aceleramos o planeta em direção ao desastre. Parece que nos especializamos em produzir variados problemas ambientais com o pendor de aprofundar a crise global do meio ambiente. E tudo com velocidade inédita. Agora mesmo, está em avançado curso uma gravíssima crise de recursos hídricos – a crise da água no mundo atual, ou o problema da escassez de água potável, um entre os dez maiores impactos que o planeta enfrenta. De igual modo, aceleramos o aumento de gases estufa cem vezes mais rápido do que em qualquer outro momento da evolução humana.
Poluição, de todos os tipos, se tornou prática comum. A cada ano, 14 milhões de toneladas de plástico, assim relata a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), terminam nos oceanos, ameaçando sobretudo a vida marinha. São 100 mil animais marinhos levados à morte, todos os anos, repita-se.
Com efeito, nessa mesma linha de ameaça à vida animal, segundo o Fundo Mundial para a Natureza (WWF), a partir da degradação ambiental dos habitats pela atividade humana, um terço das espécies de mamíferos corre risco de extinção até a metade do século.
Não surpreende, portanto, que tudo o que estamos aqui relatando, ainda que resumidamente, tenha nomes e sobrenomes conhecidos: crise socioecológica, descompasso climático em avançado estágio. O que talvez cause certa surpresa é a lentidão dos humanos, especialmente das classes mais ricas, em atenuar, conter e mitigar os efeitos do desajuste planetário.
Reconhecidamente, a elite dominante, em larga medida, é a causadora de boa parte do problema. O motivo principal? Deixemos essa boa explicação com a Oxfam em parceria com o Stockholm Environment Institute: as emissões per capita de alguém que faz parte do 1% mais rico são 100 vezes maiores do que as de alguém que faz parte dos 50% mais pobres e 35 vezes maiores do que a meta estabelecida para 2030. Desde 1990, os 5% mais ricos foram responsáveis por mais de um terço do crescimento das emissões totais. Os 1% mais ricos foram responsáveis por mais do que toda a metade mais pobre da população.
Trocando em miúdos, faz tempo que o conhecimento científico nos informa que milhões de mortes no mundo estão relacionadas à crise climática provocada pela ação humana no planeta. Como atestou em relatório a Organização Pan-Americana para a Saúde (OPAS), não é de hoje que a sociedade humana convive com uma “tripla crise planetária”: a mudança climática, a perda de biodiversidade (fenômeno global) e a poluição.
Ocorre que, para essa relevante discussão, parece apropriado afirmar abertamente que, diante de uma tragédia ambiental que enfraquece a capacidade da Terra de responder às mudanças e às constantes perturbações antropocêntricas, sequer o sujeito humano pensa em retroceder. Ao contrário, bem adaptada às sociedades industrializadas e cada vez mais longe de inaugurar um modo de vida frugal, os homens da modernidade seguem avançando além do tolerável.
Diante dessa realidade, ao passo que o modelo vigente insiste em combinar destruição ambiental (superexploração de recursos) e crescimento econômico (a busca de novos mercados), os limites seguros do planeta (biológicos e físicos) estão sendo afrontados. Em sentido corrente, com o agravamento da situação de crise, tem ficado cada vez mais claro que produção e consumo excessivos (indicadores do tamanho da economia), escassez de água, alterações severas no clima, poluição, esgotamento de ecossistemas, alteração das cadeias vitais, são, de fato, ocorrências interrelacionadas.
A título de informação, a insustentabilidade ambiental daí decorrente tende a se consolidar diante de nossos olhos. Em outros termos, estamos falando de um mesmo e abrangente problema multidimensional: o processo de destruição da própria natureza, nosso fundamental sistema de suporte da vida. Inquestionavelmente, esse é o nervo central da questão.
De particular contexto, para entender essa verdade que somente os negacionistas (adversários da ciência e da vida) fazem questão de objetar, David Attenborough, melhor que ninguém, levanta uma sentença emblemática: “o mundo natural está desaparecendo”.
Pensando nisso, sejamos diretos e francos: o agir humano responde diretamente por esse trágico momento.
De tal forma, soa a dolorosa conclusão: embotados pelo véu da ignorância, nos falta a responsabilidade como forma de cuidado. Daí a facilidade com que desafiamos os limites seguros dos sistemas naturais. Na dúvida, vejamos atentamente que:
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sessenta por cento dos serviços vitais que os ecossistemas fornecem à humanidade são explorados de maneira não sustentável ou já estão degradados;3
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três quartos do ambiente terrestre e 66% do ambiente marinho4 sofreram severas modificações nos tempos recentes;
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em apenas 50 anos, da metade do século passado até o ano 2000, foram destruídas mais florestas do que em toda a história de evolução da humanidade;
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por ano, são perdidos 24 bilhões de toneladas de solos férteis, notadamente devido a urbanização e agricultura industrial5;
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de 1980 para cá, metade da vida selvagem já morreu6;
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mais de 95% da população mundial respira um ar que não é seguro, conforme as medições dos Padrões de Qualidade do Ar da Organização Mundial de Saúde (OMS). A propósito, a poluição do ar mata no mundo todo mais de 10 mil pessoas por dia;
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desde 2009, o mundo já perdeu aproximadamente 14% dos corais7.
Conceito fechado, isso tudo pede uma resposta firme voltada a vencer elementares desafios, tais como:
(1) enfrentar a Era do Antropoceno e suas transformações geridas pela sociedade pós-industrial (ameaças ecológicas);
(2) efetuar a transição da era fóssil para a economia de baixo carbono (imperativo de primeira ordem que determina sobretudo o futuro ecológico e que requer o enfrentamento da poderosa indústria dos combustíveis fósseis que movimenta mais de 5 trilhões de dólares por ano);
(3) repensar as atividades humanas, a organização social, o estilo e comportamento de vida cotidianos, e mesmo essa atual e deprimente sociedade de descarte e consumo excessivos, hoje, como ontem, localizados na chamada economia plastificada que não cessa de aumentar.
Fazendo um recorte específico e enfatizando o trivial, ao fim, é sempre assim: o nosso real e imediato compromisso com o futuro é o de construir um mundo sustentável para nós, agora; para as gerações futuras, no amanhã; e para os outros seres vivos, hoje, amanhã e sempre.
Em suma, fundar um novo agir é, sim, a missão maior que nos espera.
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(*) GILBERTO NATALINI é médico cirurgião, vereador por cinco mandatos na Câmara Municipal de São Paulo. Foi secretário municipal do Verde e do Meio Ambiente (2017) e candidato a governador do Estado de São Paulo,
pelo Partido Verde (PV), em 2014.
(**) EDUARDO JORGE é médico sanitarista. Por duas vezes foi secretário municipal de saúde e secretario do meio ambiente. Foi candidato a presidente da República em 2014.
(***) MARCUS EDUARDO DE OLIVEIRA é economista e ativista ambiental. Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo – USP (2005). Autor de ECONOMIA Destrutiva (CRV, 2017) e Civilização em Desajuste com os Limites Planetários (CRV, 2018), entre outros.
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Notas:
1. Expressão de David Attenborough. Ver A Perfect Planet, documentário produzido pela BBC. Para mais detalhes: <https://www.bbcearth.com/shows/a-perfect-planet
2. Disponível em: <https://thelancet.com/commissions/planetary-health>
3. Cf. Gilberto Dupas, Meio ambiente e crescimento econômico – tensões estruturais. São Paulo: Editora UNESP, 2008, (p.23).
4. Disponível em <https://revistacienciaecultura.org.br/?p=4190>
5. Disponível em <https://news.un.org/pt/story/2019/06/1676501>
6. Cf. Relatório publicado pelo WWF, setembro de 2020.
7. Consultar: <https://www.unep.org/pt-br/noticias-e-reportagens/comunicado-de-imprensa/o-planeta-perdeu-14-de-seus-corais-desde-2009-devido>
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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