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O custo dos filhos e a reversão do fluxo intergeracional da riqueza no Brasil

 

O custo dos filhos e a reversão do fluxo intergeracional da riqueza no Brasil, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

O custo de geração e de criação dos filhos normalmente sobe com o processo de urbanização e modernização, em qualquer nação do mundo.

No Brasil, o custo dos filhos era baixo quando o país era predominantemente rural, agrário, com um grande setor de subsistência, com baixos níveis de escolaridade, renda e consumo e não havia políticas públicas de proteção social e previdência (aposentadorias, pensões e outros seguros).

Este quadro prevaleceu de 1500 até meados da década de 1960, quando a maior parte da população estava ainda no meio rural e nem existia o Banco Central no país. Mas com os processos de modernização, urbanização, industrialização, assalariamento e monetarização da economia o custo dos filhos começou a aumentar na medida em que as famílias investem na educação, na saúde e na qualidade de vida das crianças (Alves, 1994).

Um estudo feito pela professora e coordenadora do curso de economia do instituto Insper, Juliana Inhasz, a pedido do Estadão, mostra o custo das crianças da concepção até os 18 anos de idade, na atualidade do Brasil.

As despesas com os filhos na “classe” E (renda familiar mensal de até R$ 2.640) estimada em média em R$ 239,6 mil. Na “classe” D (renda familiar de R$ 2.641 a R$ 5.280) o valor vai de R$ 239,6 mil a R$ 479 mil. Para as famílias que integram a “classe” C – aquelas com renda familiar mensal de R$ 5.281 até R$ 13,2 mil, o gasto estimado varia entre R$ 480 mil e R$ 1,2 milhão. Na “classe” B (entre R$ 13.201 e R$ 26,400 mil de renda mensal), o gasto vai de R$ 1,2 milhão até R$ 2,4 milhões. Já na “classe” A (renda familiar média de R$39,6 mil ao mês), o custo do filho fica em torno de R$ 3,6 milhões, conforme mostra o gráfico abaixo.

custo para geração e criação dos filhos

 

Este aumento do custo dos filhos não é um fenômeno recente, mas um processo que vem ocorrendo pelo menos desde os anos de 1960. O aumento do custo das crianças é um dos fatores que induzem a transição de altas para baixas taxas de fecundidade.

O gráfico abaixo, da Divisão de População da ONU, mostra que a taxa de fecundidade total (TFT) do Brasil estava acima de 6 filhos por mulheres antes de 1965 e caiu para menos de 2 filhos por mulher a partir da primeira década do século XXI. Em menos de 40 anos o número médio de filho das mulheres brasileira caiu de um patamar muito elevado para ficar abaixo do nível de reposição.

A taxa de reposição é de 2,1 filhos por mulher. No longo prazo, ficando acima deste nível a população cresce, ficando ao nível de reposição a população se estabiliza e ficando abaixo a população decresce.

taxa de fecundidade total no Brasil

 

O aumento do custo dos filhos é um dos fatores determinantes da transição da fecundidade. Mas não é o único fator. O demógrafo australiano John Caldwell – no livro Theory of fertility decline, 1982 – afirmou, de forma categórica, que só existem dois tipos de regimes de fecundidade: um, em que prevalecem altas taxas de nascimento e os pais não têm ganhos econômicos no controle da fecundidade; e outro, em que prevalecem baixas taxas de nascimento e não há ganhos econômicos em tal controle. Em ambas as situações o comportamento dos indivíduos é economicamente racional.

No regime de alta fecundidade, o fluxo intergeracional de riquezas (moeda, bens, serviços e proteção contra riscos) vai dos filhos para os pais, ou das novas para as velhas gerações. Isto é, o custo das crianças é baixo e os filhos são fonte da riqueza dos pais, os netos são fonte de riqueza dos avós, etc. Nesta situação, o crescimento das famílias e, consequentemente, da população, é uma estratégia para garantir a “fortuna” das gerações mais velhas. Os descendentes (novas gerações) são o seguro dos ascendentes (velhas gerações).

O regime de baixa esperança de vida e alta fecundidade prevaleceu na maior parte dos 200 mil anos da história do Homo sapiens, com o fluxo intergeracional da riqueza indo das novas para as velhas gerações. Porém, algo aconteceu que possibilitou a reversão do fluxo. E, a despeito de todas as resistências, a fecundidade caiu na maior parte dos países, inclusive no Brasil. Independentemente das ideologias nacionalistas e religiosas, as mulheres e os casais passaram a ter menos filhos, o que representou uma mudança de comportamento de massas sem precedente.

Os estudos de Caldwell mostram que a queda das taxas de fecundidade está ligada à reversão do fluxo intergeracional de riqueza, que deixam de ir dos filhos para os país, ou das novas para as velhas gerações e passa a ir dos pais para os filhos. As famílias passam a investir na qualidade e não na quantidade de filhos. A questão chave para se entender a transição da fecundidade, passa a ser a compreensão da direção e magnitude do fluxo intergeracional de riqueza. Este tipo de família tende a ter maior igualdade de gênero.

Na verdade, caindo as taxas de mortalidade, já não fazia mais sentido manter altas taxas de natalidade. Contudo, houve resistência nas sociedades que haviam se preparado durante séculos para manter altas taxas de fecundidade (número de filhos por mulher) e criado uma cultura pronatalista. Romper com as tradições e os fatalismos é sempre uma ação social que encontra muitas barreiras. A ordem patriarcal foi consolidada valorizando as mulheres enquanto donas de casa, esposas e mães dedicadas, o que restringia uma mudança nas relações de gênero.

Para Caldwell, a reversão do fluxo intergeracional não é mecanicamente determinada pelas condições econômicas e o simples aumento do custo dos filhos, mas sim, por um fenômeno social que decorre da mudança da família extensa para a família nuclear. O processo de ocidentalização significa a erosão das estruturas tradicionais da família e a promoção de um processo de nuclearização que tem como consequência o declínio da fecundidade. As forças que sustentam uma fecundidade elevada podem ser mantidas pelo processo de modernização se não forem acompanhadas por mudanças sociais específicas, como aconteceu no Brasil antes de 1960.

De fato, enquanto os filhos eram criados nas fazendas e áreas rurais, geralmente, não iam para a escola, não possuíam brinquedos e bens industrializados, não demandavam muitos recursos monetários dos pais e ajudavam na produção de subsistência, nas tarefas de cuidado da casa, dos parentes e das gerações idosas. A alta mortalidade infantil era compensada pela alta fecundidade e o custo da mortalidade era baixo. Homens que tinham filhos fora do casamento não se responsabilizavam pelos “filhos ilegítimos” (não existiam exames de DNA e a legislação não garantia os direitos dos filhos fora do casamento). Quando se separavam das mulheres raramente tinham de pagar pensão alimentícia.

Nesta situação, ter muitos filhos era uma atitude racional, pois os pais (as gerações mais velhas) gastavam pouco com os filhos e recebiam deles muitos benefícios monetários ou de outros tipos. Desta forma, existia uma alta fecundidade no Brasil porque o fluxo intergeracional de riquezas ia das novas para as velhas gerações.

Como o processo de modernização e o crescimento da sociedade urbana e industrial as condições mudaram muito. Os filhos precisam ir para a escola (por lei e por exigência do mercado de trabalho), o consumo de alimentos e de produtos industrializados exigem a obtenção de recursos monetários. O casal ficar “grávido”, fazer pré-natal, pagar pelos diversos custos do parto, cuidar da criança nos seus primeiros meses, etc. fazem da mortalidade infantil um custo alto, em termos financeiros e psicológicos.

Garantir uma boa escola e condições de estudo adequadas para os filhos está sempre além das possibilidades das famílias. Paralelamente ao aumento do custo dos filhos, existe a redução dos seus benefícios, pois existem leis contra o trabalho infantil, os filhos fora do casamento são identificados pelo teste de DNA e as separações não eliminam os compromissos dos pais com os filhos. Por outro lado, o sistema previdenciário faz com que os pais não dependam financeiramente dos filhos na velhice. Por conta de todas estas transformações, o custo dos filhos é alto e os seus benefícios são baixos.

Invertendo a relação custo/benefício dos filhos inverte-se também o fluxo intergeracional de riquezas e quando isto acontece a fecundidade cai, de acordo com a análise de Caldwell. Mas não só as mudanças econômicas estruturais possibilitaram a transição da fecundidade.

Como mostrou Faria (1989) as políticas públicas promovidas pelo Governo Federal, depois de 1964, foram estratégicas para o aumento da demanda por regulação fecundidade e a consequente redução da natalidade no Brasil: 1) política de crédito ao consumidor; 2) política de telecomunicações; 3) política de previdência social; 4) política de atenção à saúde. Usando um arcabouço próprio dos enfoques culturais, o autor considera que as políticas públicas influenciaram na queda da fecundidade agindo como vetores institucionais (difusão) portadores de novos conteúdos de consciência (inovação). A transição da mortalidade induz a transição da fecundidade e as mudanças estruturais e institucionais do país sancionam a transição demográfica. Geração e gênero são fundamentais neste processo (Alves, 1994).

A interação entre a demografia e a economia é fundamental para o desenvolvimento econômico. Não é simplesmente o aumento do custo dos filhos que acelera a transição da fecundidade. É todo um estilo de vida que privilegia a qualidade de vida dos membros das famílias e não a quantidade de filhos.

Existe uma interação positiva entre a transição demográfica e o aumento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Políticas públicas de emprego, educação, saúde e previdência são essenciais para colher os frutos de uma estrutura etária favorável e para possibilitar o bem-estar de toda a sociedade. O aumento do custo das crianças está relacionado com a disposição dos país de investimentos na qualidade de vida dos filhos e com a perspectiva de um maior bem-estar para todos os membros da família.

José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382

Referências:

ALVES, J. E. D. Transição da fecundidade e relações de gênero no Brasil. 152f. Tese (Doutorado), Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, UFMG, Belo Horizonte, 1994
https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/MCCR-7UWH66/1/jos__eustaquio_diniz_alves_tese_demografia_1994.pdf

JOHN CALDWELL (Theory of fertility decline. London: Academic, 1982

AGRELA, Lucas, GERBELLI, L. G. Quanto custa criar um filho até os 18 anos? Estadão, 25/02/2023 https://www.estadao.com.br/economia/negocios/quanto-custa-filho-classe-media/#:~:text=%C3%89%20o%20que%20mostra%20um,R%24%201%2C2%20milh%C3%A3o

 

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394

 

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