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Luta e resistência das comunidades quilombolas na Chapada Diamantina

 

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Luta e resistência das comunidades quilombolas na Chapada Diamantina

O que mais me dói é a destruição dos sonhos do meu filho”: o genocídio que assombra a Chapada Diamantina e a resistência que canta

Valéria Correia Lourenço

Professora de Língua Portuguesa e Literaturas do IFCE campus Crateús,

doutoranda em literatura Comparada pela UFC e escritora.

“O que mais me dói é a destruição dos sonhos do meu filho”. Essa foi uma das frases que ouvi de Catarina, em sua cozinha, na comunidade quilombola da Bocaina, enquanto comia uma tapioca com coco e tomava um suco de maracujá selvagem. Dias antes, na comunidade quilombola de Iúna, me emocionei quando dona Jandira, com aquele olhar firme, apesar do corpo paralisado por um AVC, disse querer justiça pelo assassinato de dois filhos e de um neto, na chacina que ocorreu na comunidade em 2017 e que exterminou outras 4 vidas.

Estou falando de duas mulheres negras que, com lágrimas, ousam acreditar em um futuro digno para seus filhos e netos. Esses dois episódios aconteceram na Chapada Diamantina, Bahia, mas são só uma síntese muito rasa do que vivi e ouvi por lá durante mais de quinze dias.

Cheguei em Capim Grosso, Bahia, por volta das 5h da manhã do dia 26 de julho. Meu embarque foi em Teresina, Piauí, no dia anterior, às 14h, mas o ônibus já vinha de Sobral, no Ceará, estado em que vivo hoje, e seguiria para o Rio de Janeiro, estado que me viu nascer e crescer. Chovia. Fazia frio demais. E, durante todo tempo que fiquei na rodoviária esperando meu amigo me buscar às 6h da manhã para irmos até Ruy Barbosa, minha parada provisória em sua casa, por alguns dias, observava aquele monstro branco à minha frente. Era a hélice de uma das centenas de torres de energia eólica que eu encontraria pelo caminho durante meus dias na Chapada.

Não sei vocês, mas eu ainda não tinha visto um daqueles artefatos tão de perto. Interessante que, quando a gente olha as torres de energia eólica de longe, elas parecem cata-ventos tão branquinhos e inofensivos como aqueles de papel que a gente fazia na escola durante a infância e ele girava com o sopro do vento que saía de nossos lábios.

Mas, não se enganem! As torres de energia eólica têm uma altura que varia de 110 a 130 metros e, em geral, comunidades inteiras são deslocadas dos locais usados para as instalações desses parques eólicos. Entre outras consequências, isso pode levar à destruição de laços coletivos e de modos de vida ancestrais. Bem, mas eu ainda não sabia que durante meus dias na Chapada Diamantina encontraria muito mais do que as torres. Conheci diversos quilombos, histórias de luta, de resistência, de chacina, de destruição do meio ambiente e encontrei muitos mais monstros como aquela hélice branca.

Em poucos dias circulando pela Chapada, pude acompanhar de perto um grupo de trabalho da Comissão Pastoral da Terra na região. Esses agentes estavam mobilizando algumas comunidades quilombolas para estarem juntas, em poucos dias, homenageando os parentes e amigos dos jovens assassinados numa chacina no quilombo de Iúna, em 2017. Assim, andamos por Lençóis, Piatã, Seabra e visitei as comunidades quilombolas de Remanso, Iúna, Riacho do Mel, Morro Redondo, Bocaina e Gerais.

Só estive na Bahia poucas vezes na vida, mas sempre em Salvador e região próxima. Nunca havia conhecido a Chapada Diamantina, apesar de já ter ouvido falar de alguns lugares muito famosos pelo turismo como o morro do Pai Inácio e Lençóis. No entanto, subvertendo essa perspectiva turística, vivi a Chapada profunda, aquela que não aparece nos sites ou notícias da grande mídia: a Chapada dos negros, indígenas, quilombolas.

O mapa da Bahia sempre me chamou atenção por ser quase uma réplica do mapa do Brasil e parto daqui para continuar minhas reflexões. O que vi na Chapada Diamantina foi uma espécie de retrato em 3×4 do que temos acompanhado em outras partes de todo território brasileiro e aqui falo especificamente das comunidades quilombolas pelas quais tenho me deslocado desde 2012, seja no Rio de Janeiro, no Ceará ou no Maranhão: os grandes empreendimentos, na maioria das vezes, com o aval e de mãos dadas com o estado brasileiro, avançam de modo voraz, ceifando vidas, seja através da violência física seja através do medo, das ameaças e da coerção a quem ousa continuar a lutar pela terra.

No texto “Literatura como resistência ao genocídio cotidiano: os saraus realizados em Fortaleza, Ceará, 2014-2019”, o pesquisador Atilio Bergamini analisa como se dá uma das formas de resistência da juventude da periferia de Fortaleza contra o genocídio a que estão submetidas: se reunir em saraus para fazer, ler, cantar, falar, gritar poesia.

É ainda neste texto que Bergamini (2012, p. 144) traz “uma das definições mais recentes” para pensarmos genocídio. Partindo de Daniel Feierstein, o pesquisador compreende que o genocídio é uma prática que destrói relações sociais de autonomia e de cooperação entre as pessoas.

Em todas as comunidades quilombolas que conheci na Chapada e com as pessoas com as quais pude conversar, em sua maioria mulheres, os relatos se repetem. Há uma disputa pela terra e essas comunidades acabam sendo ameaçadas por conta de algum grande empreendimento que chegou ao local. É isso que vimos em Iúna, a comunidade que nos transporta a todo momento para o romance Torto arado. É que foi ali que Itamar Vieira Júnior, escritor baiano, se inspirou para dar mais corpo a uma história que ele já havia começado a escrever muitos anos antes mas que tomou ainda mais corpo com suas atividades no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA e em sua pesquisa de doutorado.

Na comunidade quilombola de Iúna, os rios Santo Antônio e Utinga estão constantemente ameaçados por empreendimentos que estão chegando à região e paira um silêncio e um medo nesse local que há 5 anos foi alvo de uma chacina. Foi lá que ouvi dona Jandira falar que espera justiça pelo assassinato dos dois filhos e do neto. Tal tragédia faz parte do movimento de especulação imobiliária e consequente venda de terras que tem avançado naquele território.

Dias depois, o encontro com Catarina Silva, moradora da comunidade quilombola da Bocaina, em Piatã, que vê da janela de sua casa o avanço da mineradora Brasil Iron, me trouxe um momento de inspiração. É que Catarina traz, em suas poesias, a descrição do lugar que vive, as belezas naturais, os modos de vida de sua comunidade e ainda faz uso da palavra para denunciar os riscos e perigos que têm assolado aquele quilombo.

A Chapada Diamantina não se resume ao centro da cidade de Lençóis, região com alto custo de vida e que recebe uma quantidade imensa de turistas do mundo todo. A Chapada Diamantina é preta e indígena. Não podemos nos esquecer disso. São esses modos de vida que estão sendo ameaçados pelos avanços de grandes empreendimentos. São esses os grupos que seguem tendo seus sonhos ameaçados desde a construção deste país.

Mas, depois de quase vinte dias pelo centro da Bahia, não voltei para casa entristecida. Pelo contrário, ver dona Jandira, que perdeu 3 pessoas da mesma família, cercada por três de seus netos, crianças e adolescentes, clamar por justiça, nos enche de revolta mas também de esperança. Ouvir os moradores e as moradoras de Iúna cantar uma de suas músicas no dia marcado para relembrar a chacina dos seus e celebrar a vida, nos enche de revolta e esperança.

Estar com Catarina e ouvi-la recitar um de seus poemas mesmo com a voz embargada, os olhos sempre úmidos, e afirmando que não vai parar de lutar pela sua comunidade, pelos sonhos de seus filhos, me fala de construção de vidas, de projetos coletivos de futuro e me faz acreditar que, mesmo que as ameaças diversas pairem sobre aqueles territórios em forma de monstros brancos como aquela hélice que cruzou meu caminho, ainda há, como nos saraus das áreas vistas como marginalizadas em Fortaleza, muita gente que resiste e canta.

Dedico este texto a Kau Dourado, antropólogo e agente da CPT Ruy Barbosa.

Referências bibliográficas:

BERGAMINI, Atilio. Literatura como resistência ao genocídio cotidiano: os saraus realizados em Fortaleza, Ceará, 2014-2019. Revista Memória em Rede, Pelotas, v.13, n.24, Jan/Jul.2021 – ISSN – 2177-4129 periódicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Memoria.

VIEIRA JÚNIOR, Itamar. Torto arado. São Paulo: Todavia, 2019.

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394

 

 

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2 thoughts on “Luta e resistência das comunidades quilombolas na Chapada Diamantina

  • Valéria sempre encantadora com suas palavras 🤎

  • Arnóbio Júnior

    Magnífico!

Fechado para comentários.