Igualdade abstrata e desigualdade concreta
Igualdade abstrata e desigualdade concreta, artigo de Edi Aparecido Trindade
Um olhar mais detido sobre a história pode ajudar a entender melhor os motivos pelos quais ainda continuamos reproduzindo comportamentos discriminatórios
O século XVIII é, sem sombra de dúvidas, um dos momentos mais significativos na história por representar uma ruptura em praticamente todos os aspectos relativos à organização da sociedade. Tanto no âmbito da vida material, quanto no da vida cultural, conhecemos uma ampla transformação em nosso modo de se relacionar, viver e pensar nossa existência.
A revolução tecnológica, que se intensifica permanentemente, ofereceu a possibilidade de um mundo sem escassez. A revolução política, potencializada pelos anseios de liberdade, ofereceu a possibilidade de um mundo fundado na igualdade entre todos os indivíduos. Mais de 200 anos depois, é inegável que, para a maioria da população, esses propósitos ainda continuam por se realizar.
Indiscutivelmente, os dois principais movimentos naquele século, no aspecto político, foram a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789); mais ou menos no mesmo período, a Inglaterra iniciava a I Revolução Industrial. Os efeitos somados destes movimentos serão os determinantes da nova ordem social que se instalara a partir de então.
Os principais documentos construídos naquele momento (Declaração da Virginia, Constituição Americana, Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na França, entre outros) têm em comum a afirmação de uma perspectiva absolutamente inédita na história humana: a liberdade e a igualdade entre todos. Teoricamente, encerrava-se ali a possibilidade de uma sociedade onde alguns tinham o direito de reduzir seus semelhantes à condição de escravos ou servos.
Entretanto, as transformações produzidas por aqueles movimentos vieram com um “vício de origem”. Mesmo que somente no campo formal, a promessa da igualdade entre todos já não se realizava. Neste sentido, o dito popular de que “todos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”, comum em nossa terra brasilis, remonta à própria origem do projeto idealizado para romper com o “antigo regime”, como diziam os franceses.
Mas afinal, em que consistiam esses “vícios”? Ao olhar para o período que inicia no final do século XVIII, é possível observar que três grupos importantes da sociedade ficaram fora do alcance dos direitos constituídos: as mulheres, os trabalhadores e, mais especificamente na América, a população negra.
No caso específico das mulheres, as restrições à sua autonomia alcançavam a esfera civil e a esfera política. Na civil, constituía-se por um conjunto de impedimentos para a prática de atos jurídicos que incluíam não poder assinar contratos, não ter direitos sobre a guarda de filhos e precisar de autorização do marido para trabalhar, entre outros.
A participação na esfera política só vai se realizar de maneira ampla ao longo do século XX. Foram necessários quase dois séculos para as mulheres terem reconhecido, após muita mobilização, o direito de votar e, consequentemente, de serem votadas. No Brasil, essa participação ocorre pela primeira vez em 1932, à exceção de casos isolados ainda na década de 1920.
Se aos trabalhadores homens era conferido o direito de praticar atos na esfera civil, no campo político a realidade era diferente. O direito de votar era reservado apenas àqueles que fossem proprietários. E da mesma forma, foi a mobilização dos trabalhadores que aos poucos foi rompendo com essa proibição, de maneira a garantir a todos (inicialmente aos homens) a possibilidade de participar da vida política da sociedade.
E apesar de todas as vozes e documentos que proclamavam a liberdade e a igualdade, a vergonhosa e desumana prática da escravidão continuou seu curso rotineiro, especialmente no continente americano. EUA e Brasil prolongaram essa situação quase que ao longo de todo o século XIX. A escravidão americana chegou a termo em 1865 e, no Brasil, apenas em 1888.
Ainda nos dias de hoje nos debatemos, frequentemente, com questões de desrespeito a vários direitos que deveriam ser observados por todos. A violência contra as mulheres, a discriminação racial, o preconceito contra trabalhadores, para citar alguns, são acontecimentos que integram nosso cotidiano como se fossem naturais.
Um olhar mais detido sobre a história pode ajudar a entender melhor os motivos pelos quais ainda continuamos reproduzindo comportamentos discriminatórios. Mesmo resultando de um processo de transformação baseado nas revoluções do século XVIII, é preciso reconhecer que a sociedade que “surgiu” ali continuou reproduzindo privilégios para uma pequena parcela de viventes. Isto significa que ainda temos uma longa jornada pela frente para fazer valer, de direito e de fato, a igualdade entre todos os seres humanos.
Edi Aparecido Trindade é professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie em Campinas. Mestre em Economia Social e do Trabalho pela Unicamp.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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