A pegada ecológica e a transição energética da China
A pegada ecológica e a transição energética da China, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
A maior parte da pegada ecológica é emissão de CO2. Se a China zerar as emissões líquidas e reduzir o tamanho da população poderá diminuir o seu déficit ambiental
“Assim como a Idade da Pedra não acabou por falta de pedras,
a Era do Petróleo chegará ao fim, não por falta de óleo”.
Ahmed-Zaki Yamani
A China é o maior importador de combustíveis fósseis e o maior emissor de gases de efeito estufa do mundo. Portanto, o “Império do Meio” depende de acordos geopolíticos para garantir o fornecimento de petróleo e gás, além de pagar um alto custo pela poluição e a degradação do meio ambiente.
Para reduzir a dependência dos exportadores de petróleo e gás, evitar a vulnerabilidade das rotas marítimas controladas por outros estados e descarbonizar a economia, a China pretende transformar sua matriz de geração de energia de aproximadamente 70% dos combustíveis fósseis hoje para 90% de fontes renováveis em 2050, conforme mostra o gráfico abaixo da Bloomberg Energia.
A segurança energética, sempre foi uma preocupação para a China, mas ganhou mais atenção depois que a cisão sino-soviética na década de 1960, que acabou com o fornecimento de petróleo soviético na época. Tornou-se uma prioridade maior quando a China se tornou um importador líquido de petróleo na década de 1990. No ano passado, a China respondeu por cerca de um sexto do consumo global de petróleo. Pouco mais de 70% disso veio do exterior. Os investimentos chineses de petróleo e o gás no exterior satisfizeram menos de um quinto de sua demanda doméstica e muito desse combustível viaja por gargalos como o Estreito de Malaca, vulnerável a um bloqueio naval, na visão de Pequim.
Pelo lado ambiental, o foco do presidente Xi Jinping tem sido na metas de pico de emissões antes de 2030 e líquido zero até 2060, em linha com o espírito do Acordo de Paris. As principais metas ambientais do governo para seu atual plano de cinco anos são reduzir o consumo de energia por unidade do PIB em 13,5% até 2025 e a intensidade de carbono em 18% no mesmo período.
Assim, diversificar as fontes de energia é uma necessidade ecológica, mas também visa aumentar a eficiência por razões geoestratégicas. O 14º Plano Quinquenal no início deste ano aliou a ambição verde ao foco na recuperação econômica e na segurança, com referências ao uso eficiente do carvão, à expansão dos estoques de petróleo e gás e à exploração doméstica. A China tem procurado construir sua Reserva Estratégica de Petróleo. Todavia, o abandono dos hidrocarbonetos é uma mudança em direção a alternativas nas quais Pequim tem um controle mais estreito da cadeia de abastecimento.
Porém, essa mudança não será instantânea. O consumo de energia da China aumentou no ano passado, mesmo com a pandemia que provocou uma queda em todo o mundo. A indústria pesada chinesa tem tido dificuldade para descarbonizar a produção. A Administração Nacional de Energia foi criticada por ser muito frouxa para evitar novas usinas de carvão – o combustível fóssil mais sujo – que ainda é responsável por mais da metade da matriz energética do país em 2021. Recentemente, a China tomou a decisão histórica de vender parte do petróleo que estocou em uma reserva estratégica há anos.
Abandonar o petróleo e carvão não vai ser fácil para o país. Agora, em setembro de 2021, a China vive uma crise energética grave e vários setores da indústria e dos serviços estão tendo de paralisar as atividades por falta de energia. Com os blecautes provocados pela escassez do suprimento de carvão, vários governadores de províncias pedem para o país importar carvão e afrouxar as metas ambientais.
Assim, fica claro que Pequim ainda ficará dependente da energia movida a carvão enquanto o crescimento econômico continuar sendo prioridade. Isto quer dizer que a mudança pode vir muito tarde, pois a crise climática já está mostrando imediatamente os danos no mundo todo. A China pretende gastar menos com importação de combustíveis fósseis e lucrar mais com a exportação de tecnologias verdes. Ou seja, as perspectivas de mudança energética são positivas, mas se o caminho da transição for longo poderá ter muitos impactos climáticos indesejados.
O gráfico abaixo mostra que a China tinha superávit ecológico no primeiro quinquênio da década de 1960, mas passou a ter déficits crescentes e chegou em 2017 com uma pegada ecológica per capita de 3,7 hectares globais (gha), para uma biocapacidade per capita de 0,92 gha. O déficit ecológico foi de 303%. O desafio é inverter a curva da pegada ecológica o mais rápido possível.
Indubitavelmente, a China já vive muito acima dos seus meios e de seus recursos naturais, contribuindo para o desequilíbrio ambiental do Planeta. O desafio da sustentabilidade requer respostas complexas e soluções múltiplas. Sem dúvida, uma tarefa inadiável é promover o avanço tecnológico, a mudança da matriz energética, revolucionar a produção de alimentos e esforçar para o desacoplamento entre produção e recursos naturais. Mas isto só não basta. É preciso também reduzir a pegada ecológica e o número de “pés”, isto é, diminuir o consumo conspícuo e o número de consumidores. Neste ponto, a China será o primeiro dos 10 países mais populosos a iniciar o decrescimento demográfico (a população chinesa vai começar a diminuir no máximo até 2025 e deve haver uma redução de cerca de 400 milhões de habitantes até 2100).
A maior parte da pegada ecológica é emissão de CO2. Se a China zerar as emissões líquidas e reduzir o tamanho da população poderá diminuir o seu déficit ambiental. Mas precisará também mudar o paradigma do crescimento econômico desregrado e se preocupar menos com o tamanho do PIB (inclusive reduzindo gastos militares) e mais com a qualidade de vida humana e ambiental. Adicionalmente, a China pretende liderar o mundo na nova matriz energética que inclui a produção de equipamentos e grandes montantes de energia renovável, mas também veículos elétricos e a eletrificação dos meios de transporte.
As energias renováveis estão aumentando em todo o mundo, mas não suficientemente para evitar a expansão dos combustíveis fósseis. O gráfico abaixo, da REN21 (junho 2021) mostra que mesmo com toda a expansão das energias renováveis (que passaram de 8,7% para 11,2% no consumo final de energia global) os combustíveis fósseis continuam crescendo em termos absolutos (embora tenham mantido praticamente o mesmo percentual).
Desta forma, fica claro que não basta apenas avançar com as energias renováveis. Certamente a China vai buscar hegemonizar o novo padrão de produção internacional, pois só os negacionistas acreditam na Terra plana e infinita. Mas além de mudar o padrão global de produção e consumo é preciso planejar o decrescimento demoeconômico (redução da pegada ecológica). Desta forma, superar a Era dos combustíveis fósseis é essencial e inadiável. Como mostra Jason Hickel: “Menos é mais”. A China e o mundo precisam de menos poluição e mais regeneração ambiental. Menos humanosfera e mais ecoesfera!
José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
ALVES, JED. Ascensão e queda da civilização dos combustíveis fósseis, Ecodebate, 02/04/2014
Ted Trainer. Can Renewable Energy Sustain Consumer Society, 2012
UNEP. Global Trends In Renewable Energy Investment 2019, September 2019
https://wedocs.unep.org/bitstream/handle/20.500.11822/29752/GTR2019.pdf
Jason Hickel. Less is more: Degrowth Will Save the World, 2020
REN21, Renewables Global Status Report, June 2021
https://www.ren21.net/wp-content/uploads/2019/05/GSR2021_Full_Report.pdf
Jonas Jorge da Silva. Enfrentar a crise climática é inadiável. “O ecocídio é também um suicídio”, avalia Diniz Alves, IHU, 18/05/2021
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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