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Análise da obra de Paulo Freire ao longo de sua trajetória

 

Paulo Freire
Paulo Freire

Análise da obra de Paulo Freire ao longo de sua trajetória

‘Paulo Freire partia da percepção de que vivemos um sistema insuportavelmente injusto, excludente, opressor, racista e machista’

Walter Kohan é professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor de vários livros que tratam sobre a vida e a obra freireana. Nesta entrevista, produzida para a matéria de capa da Revista Poli e que integra um especial comemorativo do centenário de Paulo Freire, o pesquisador contextualiza as experiências desenvolvidas pelo patrono da educação brasileira. Ele também questiona o uso da expressão “conscientização” associada à sua pedagogia, analisa os programas educacionais atuais à luz dessa concepção e explica por que Freire se tornou alvo de perseguição de grupos políticos no Brasil de hoje.

Por Cátia Guimarães – EPSJV/Fiocruz

Queria que o sr. falasse um pouco sobre o “caldo de cultura” da educação que se desenrolava nos anos 1960, que resulta no Movimento de Cultura Popular do Recife, o ‘De pés no chão também se aprende a ler’, entre outros. Qual a influência desses movimentos sobre Paulo Freire e vice-versa?

De fato, Paulo Freire foi muito influenciado pelo movimento da cultura popular. Paulo Freire é uma pessoa que só se entende a partir do seu contexto, dessa realidade política e cultural dos anos 1960 e 1950. Era uma efervescência, inclusive, pelas possibilidades de a educação participar de um processo de transformação social e política. Paulo Freire não era pedagogo, não era educador, era formado em Direito. Sua primeira esposa, Elza, é que era professora de educação primária e parece que teve uma influência muito grande na dedicação de Paulo Freire à educação. Eu penso que Paulo Freire começou a perceber gradativamente as possibilidades de um processo transformador a partir da educação, pensada como parte de um movimento da cultura popular. Não tanto a educação institucionalizada, estatal, de cima para baixo, mas a educação como parte de um processo de o povo encontrar-se a si próprio e encontrar as condições para uma vida melhor. Nesse sentido, o movimento, que era muito forte no Nordeste, tem uma influência muito grande em Paulo Freire e Paulo Freire também teve uma influência muito grande nesse movimento, sobretudo a partir da sua intervenção no primeiro congresso de jovens e adultos e da sua experiência no SESC, em Angicos [de alfabetização de adultos no Rio Grande do Norte] e depois com o Plano Nacional de Alfabetização, que seria abortado pela ditadura. Daí Paulo Freire foi se tornando uma figura de referência na área de educação, mais especificamente na alfabetização de jovens e adultos.

Algumas dessas experiências lançavam mão de outros espaços, fora das escolas, e de estratégias alternativas, como rádios, por exemplo. Por quê? Qual o lugar que a educação formal e a educação informal ocuparam nessas experiências, na concepção de educação popular e na obra de Paulo Freire?

A rádio era um fenômeno extraordinário nessa época porque chegava a trabalhadores que de outra maneira não teriam acesso [àquele conteúdo]. Então, era um instrumento de formação cultural muito importante, pela sua penetrabilidade, pela sua acessibilidade, mas também porque era a palavra oral numa cultura fortemente oral. A rádio tem essa dupla força de chegar e se espalhar facilmente em um país com as dimensões que tem o Brasil e, por outro lado, de ser o veículo da oralidade, a palavra falada que transmite e faz cultura, que contribui na formação cultural, na educação formal e informal. Aqui há três expressões: educação formal, educação informal e educação não formal, que talvez seja um pouco mais ampla do que a informal. Paulo Freire, naquela época, trabalhou sobretudo com a educação não formal. A experiência de Angicos, embora tivesse apoio do governo do estado, era um programa na verdade apoiado financeiramente pela Aliança para o Progresso, dos Estados Unidos, que depois no finalzinho retirou o apoio.  Paulo Freire e os movimentos da cultura popular nasceram fora da educação institucionalizada. Angicos tinha 75% de analfabetos, era a cidade que tinha o maior índice de analfabetismo no Rio Grande do Norte. O curso foi para 300 adultos e aconteceu em 16 lugares: em casa de família, igreja, enfim, em qualquer lugar que se oferecia, porque havia necessidade de espaço, inclusive em lugares sem eletricidade, onde coletavam eletricidade da bateria de um carro. Então, era bem não formal, bem por fora da educação institucionalizada – em parte também porque o sistema não dava conta: a estrutura burocrática e a lógica da educação formal não conseguiriam nunca alfabetizar 300 adultos em 40 horas nas condições em que esses adultos precisavam ser alfabetizados. O curso acontecia durante as noites, depois que os adultos trabalhavam. Ele teve, por várias vezes, que ser suspenso por causa do tempo, das condições climáticas ou até por causa da colheita, porque eram pessoas que trabalhavam no campo. E a educação formal muito rígida é muito inflexível a certas condições.

Mas houve outro momento da vida de Paulo Freire como Secretário de Educação na cidade de São Paulo, na administração de [Luíza] Erundina, do PT. Ele tinha voltado do exilio e pensava que não podia negar a Luiza Erundina, que era também nordestina, militante do PT também, cofundadora, essa tentativa de tentar mudar a educação através do sistema formal. Então, Paulo Freire tentou de tudo, não se recusou a nenhuma das duas possibilidades. Ele fez campanhas de alfabetização na África, nas ex-colônias portuguesas, na América Central, na Nicarágua… Todas as campanhas que Paulo Freire coordenou tiveram apoio do Estado e, digamos assim, surgiram de uma revolução política: tanto a Revolução Sandinista na Nicarágua quanto as revoluções libertadoras em Guiné-Bissau e Cabo Verde. Paulo Freire relata como algumas condições políticas de certo modo impostas pelos governos revolucionários, como a necessidade de alfabetizar em português, em países que tinham muito poucos falantes de português e uma grande diversidade de línguas, foi um fator contraproducente, negativo, que conspirou contra o sucesso da campanha alfabetizadora. Então, é muito complexo e  interessante o lugar que ocupam a educação formal e a educação não formal na obra e na concepção de Paulo Freire. Porque ele tentou um pouco das duas, tentou pelos dois caminhos. Paulo Freire era uma pessoa que preferia errar por fazer e não por não tentar. Ele sempre confiava e tentou de todas as formas explorar as potências transformadoras da educação.

“Não há como ler a palavra sem ler o mundo”

O que é educação popular e o que Paulo Freire tem a ver com ela?

É muito interessante e complexa a pergunta porque, de fato, educação popular não é uma expressão que Paulo Freire use. Eu não sei se ele usa alguma vez, mas quase não usa, se é que usa. Ao mesmo tempo, todos os movimentos da educação popular têm como referência principal Paulo Freire, no mundo inteiro. Eu também não quero simplificar demais, mas Paulo Freire, no Brasil e depois internacionalmente, tornou-se referência basicamente a partir da sua experiência de Angicos, com o programa de alfabetização em 40 horas. Em 40 horas, sem condições prévias, as pessoas passavam a estar alfabetizadas no sentido não apenas técnico, não apenas mecânico, não apenas instrumental, mas alfabetizadas linguística e politicamente. Ou seja, podiam ler não apenas uma palavra mas também o mundo. Paulo Freire disse repetidas vezes que toda leitura do mundo precede a leitura da palavra, que a leitura da palavra está precedida pela leitura do mundo que é anterior, que sustenta e apoia a leitura da palavra. Não há como ler a palavra sem ler o mundo. Então, o curso de Paulo Freire era de aprendizagem da palavra e também de releitura desse mundo que sustenta a palavra. Era uma experiência extraordinária e tremendamente necessária em países como o Brasil, que nos anos 1960 tinha 40 milhões de analfabetos. Os analfabetos não votavam naquela época, então imagina o impacto político que esse curso teve!

O plano [nacional de alfabetização] de Paulo Freire, aquele que durou apenas três meses e sequer chegou a ser começado oficialmente, iria alfabetizar cinco ou seis milhões de pessoas só no primeiro ano. Ou seja, o Brasil iria ter só no primeiro ano seis novos milhões de votantes. Imagina o impacto que isso teria! E isso era no mundo inteiro: era necessário alfabetizar pessoas no mundo inteiro, sobretudo na América Latina e na África.

Paulo Freire é uma figura extraordinária. Ele não só propôs um método, como se envolveu praticamente, colocou seu corpo para trabalhar, organizou as equipes… Quando veio o golpe, a ditadura em 1964, primeiro ele foi preso, depois teve que se exilar alguns anos no Chile, trabalhando como assessor do Ministério da Reforma Agrária.  Lá começou a [escrever o livro] Pedagogia do Oprimido, que primeiro foi publicado em espanhol, depois em inglês e só mais tarde em Português. Ainda hoje a Pedagogia do Oprimido é um dos livros mais lidos do mundo nas ciências sociais e o mais lido do mundo na área da educação. Ainda hoje tem mais citações em espanhol do que em português. Então, Paulo Freire começou a se tornar uma figura de referência na América Latina e depois, quando o livro foi publicado em inglês nos Estados Unidos, Canadá e na Europa, enfim, no mundo todo, Paulo Freire se tornou uma referência mundial.

Vários textos que tentam contextualizar Paulo Freire mostram que a prioridade da alfabetização de adultos como política pública remete ainda à década de 1940 e que mesmo a concepção mais ampla de que isso deveria se dar a partir da melhoria das condições de vida da população analfabeta é anterior ou concomitante a Paulo Freire, se fortalecendo ali pelos anos 1950, principalmente. Qual o diferencial de Paulo Freire nesse processo? O que ele trouxe de novo e por que isso é importante?

Talvez o seu diferencial – eu acho que já disse, mas insisto – seja primeiro a concretização de um método. A experiência de Angicos, que até o Presidente da República visitou no final, foi muito importante porque o índice de sucesso foi muito grande. Mais de 300 adultos efetivamente se alfabetizaram em 40 horas. Era um curso promissor e o Plano [Nacional de Educação] que depois Paulo Freire foi convidado a realizar, como eu falei,  tinha a promessa de seis milhões de novos alfabetizados em um ano. Então, a diferença principal de Paulo Freire era a força prática, a força concreta, a maneira com que ele alterava essa realidade absurda de 40 milhões de analfabetos. Por isso se tornou tão importante, mas também tão perigoso, gerou a inimizade e essa sensação das forças reacionárias e conservadoras do perigo que significava aquele plano. Porque ele queria alfabetizar e alterar rapidamente a condição política do país.

O ‘método’ de alfabetização de Paulo Freire pressupõe também um processo de “conscientização”. O que isso significa?

A palavra conscientização é muito importante para Paulo Freire, sobretudo no início, mas é também uma palavra que ele abandonou, deixou de usar, pela interpretação equivocada que se fazia do termo. É um termo complexo, difícil, porque conscientização, a princípio, literalmente, seria a ação de conscientizar. Eu não quero simplificar exageradamente, mas o risco, o perigo do conceito, é que conscientização significa basicamente um processo a partir do qual alguém que não tem uma consciência ganha essa consciência, alguém que não estava conscientizado passa a estar conscientizado. E a questão perigosa e delicada é que se pode interpretar que alguém já tenha essa consciência e vai ser encarregado de passar essa consciência, conscientizar, oferecer essa consciência a quem não a tem. Essa leitura foi feita e é perigosa e, em certo sentido, até contraditória com as ideias de Paulo Freire. Porque não reconhece suficientemente os saberes do povo, os saberes daqueles que não estariam conscientizados e a conscientização teria mais a ver com o processo ideológico. Paulo Freire falava sobre a dialética em que educando e educador, em diálogo, mediatizados pelo mundo, encontram uma nova consciência. Mas é uma palavra muito complexa e, por alguma razão, Paulo Freire a abandonou. Eu acho que é uma palavra que traz conotações mais negativas do que afirmativas.

“O Mobral que a ditadura instaurou é como uma antítese de Paulo Freire”

Durante a ditadura, foi instituído o Mobral, com foco principalmente na alfabetização de adultos. Como é possível comparar o método, os objetivos e os resultados com o que vinha sendo construído antes, no governo Jango, com a participação de Paulo Freire?

O Mobral que a ditadura instaurou é como uma antítese de Paulo Freire. Como eu disse anteriormente, toda leitura da palavra, para Paulo Freire, supõe uma leitura do mundo. A concepção do Mobral era a leitura da palavra pela leitura da palavra, um procedimento técnico e instrumental. E tudo isso se fez às vezes em nome de uma não politização, uma não ideologização, não doutrinamento. Mas Paulo Freire mostrou claramente que esse processo não tem como não ser político, que educação não pode não ser política e que fazer da alfabetização dos jovens e adultos um processo meramente técnico é também uma postura política, é uma forma de legitimar e transmitir um mundo que já existe, é impedir uma releitura desse mundo, é consolidar e legitimar uma única leitura do mundo. Então, esse processo é que, na verdade, é doutrinador e ideológico, porque oculta a dimensão política que todo processo educativo tem.

Paulo Freire é reconhecido especialmente pelo seu ‘método’ de alfabetização de adultos. Suas contribuições servem também para se pensar a alfabetização como um todo? Que outras contribuições podem ser extraídas do pensamento e experiências de Freire para outros segmentos e para a educação em geral?

Paulo Freire se ocupou sobretudo da alfabetização dos jovens e adultos e eu acho que isso tem a ver em parte com sua grande sensibilidade política porque nos jovens e adultos é onde [o analfabetismo] é mais cruel, mais injusto, mais opressivo. É onde o sistema se mostra porque são pessoas que já padecem há muito mais tempo da injustiça de serem excluídas do seu direito. São pessoas que foram roubadas no seu direito à educação e à alfabetização. É onde o crime, o roubo, a exploração, a expropriação são mais gritantes, mais chamativos. Talvez por isso Paulo Freire tenha se dedicado mais a essas pessoas. Mas eu penso que as contribuições de Paulo Freire são para todas as idades, inclusive para a infância, para a educação infantil a que eu me dediquei muito. Porque é uma temática que não é tão explorada – recentemente tem sido  mais, mas até uns 20 anos atrás ninguém relacionava Paulo Freire com a infância porque, de fato, ele não escreveu sobre alfabetização de criança pequena. Mas Freire sempre diz que todas as suas ideias sobre educação foram inspiradas na forma com que foi alfabetizado e ele manteve uma relação com a infância extraordinária. Então, muitas das ideias de Paulo Freire eu sinto que não têm a ver com o tempo das idades, mas com o tempo da vida, com o tempo do pensamento, da pergunta, da criação, ou seja, um tempo que não diz respeito aos anos que se tem, mas a uma forma de vida curiosa, inquieta, que é importante em qualquer idade. A pedagogia da pergunta, por exemplo, é importante a todas as idades.

Embora as experiências mais marcantes do ‘método’ Paulo Freire remetam a antes do golpe, principalmente em Angicos, costuma-se dizer que seu pensamento e suas concepções sofreram mudanças importantes ao longo do tempo que ele passou no exílio. Queria que você falasse um pouco sobre essa trajetória: do ponto de vista das concepções de educação e do método, quais foram as “fases” de Paulo Freire?

Há evolução do seu pensamento, eu penso que Paulo Freire mudou muito. A experiência do exílio foi dura, forte, mas também muito marcante e de muito aprendizado. Os anos no Chile, por exemplo, foram fundamentais. Os primeiros anos que ficou lá, de 1964 a 1968, 1969, foram extraordinários porque ele aprendeu muito com os campesinos chilenos, uma experiência que não tinha tido no Brasil. Então, seu pensamento, que era um pensamento vivo, sensível e atento, foi mudando permanentemente. Depois, nos Estados Unidos, na Suíça, em suas viagens ao redor do mundo, efetivamente o pensamento de Paulo Freire foi crescendo, amadurecendo e mudando. Não há, na verdade, um Paulo Freire, poderíamos dizer que tem o Paulo Freire anterior ao exilio, os primeiros trabalhos que você citou, na Pedagogia do Oprimido já se percebe a influência do seu trabalho com o movimento campesino no Chile, com o movimento da reforma agraria, com as lideranças populares. Depois tem uns trabalhos que se seguem, inclusive a Pedagogia da Esperança, que é uma releitura da Pedagogia do Oprimido, um livro extraordinário. Publicado 20 anos depois da Pedagogia do Oprimido, ele nasce como uma espécie de prefácio de uma nova edição e acaba sendo um livro escrito para fazer uma espécie de diálogo consigo mesmo e com outros que faziam críticas à Pedagogia do Oprimido. É um livro de autocrítica, extraordinário. Todos deveríamos aprender a coragem que significa dialogar e responder às críticas a um livro próprio, repensar a si próprio. Mostra uma abertura, uma disposição ao diálogo. E depois tem o Paulo Freire final. A sua obra Pedagogia da Autonomia é um livro muito diferente da Pedagogia do Oprimido, parece escrito por outra pessoa, mas ao mesmo tempo é a mesma pessoa, que evolui, que está viva, portanto, que pensa e muda de ideia, que adequou as suas ideias ao tempo e ao contexto. É um pensamento vital, muito dinâmico, muito ativo.

Olhando retroativamente, para além dos muitos méritos, existe hoje algum balanço crítico a se fazer no pensamento e na obra de Paulo Freire?

Claro que há muito para se criticar, é uma obra muito imperfeita a de Paulo Freire, como toda obra humana. Ele cometeu muitos erros e ele próprio diz isso. Falei agora que ele faz isso na Pedagogia da Esperança, mas também nas Cartas à Guiné-Bissau, por exemplo. Fez muitas, repetidas vezes, porque era um pensamento muito autocrítico. Em Guiné-Bissau, reconhece o erro de ter feito o processo de alfabetização em língua portuguesa. Na Pedagogia da Esperança, reconhece o erro da sua linguagem sexista, machista, usada na Pedagogia do Oprimido, o que foi muito criticado especialmente pelas feministas norte-americanas. Paulo Freire aceita, reconhece esse erro, corrige e passa a utilizar uma linguagem menos sexista: em vez de falar de homens, fala de homens e mulheres, e por aí vai. Eu diria que há muitas coisas a serem criticadas em Paulo Freire, o que mostra sua vitalidade, sua potência. Paulo Freire dizia que para ser freiriano havia que não ser freiriano, ou seja, uma coisa um pouco paradoxal porque nós precisamos repeti-lo, precisamos dizê-lo, para dizer que não vamos repeti-lo, que vamos, na verdade, reinventá-lo, recriá-lo. Não se trata de um pensamento que deva ser tomado como se fosse uma verdade ou um pensamento perfeito, porque não é. Na verdade, eu acho que a graça de Paulo Freire e sua obra é que é muito imperfeito, ou seja, que tem muitos erros, porque dos erros se aprende e Paulo Freire aprendia muito com seus próprios erros.

Para ler Paulo Freire, eu tenho trabalhado também com a ideia de errância, que tem uma tradição grande na história das ideias latino-americanas. Errância é como errar, como equivocar-se e fazer do erro um aprendizado, algo afirmativo, algo positivo, mas é também uma forma de viagem, de deslocamento, um viajar sem antecipar o sentido da viagem. Paulo Freire era um errante nos dois sentidos. Portanto, é muito bom se relacionar com Paulo Freire a partir da errância, com a sensibilidade grande para manter o seu pensamento aberto e não para colocar o seu pensamento de forma dogmática.

Abarcando os mais diversos segmentos, têm tido destaque como temas ou iniciativas prioritárias no campo da educação atualmente uma nova Política Nacional de Alfabetização; uma nova Política de Educação Especial; a implementação da reforma do ensino médio, que vem de governo anterior; a implantação de escolas militares; a defesa do homeschooling; acompanhadas de uma certa invisibilidade da EJA. Gostaria que você comentasse alguns desses temas ou políticas que dizem respeito à educação no Brasil hoje à luz dos ensinamentos de Paulo Freire.

Eu acho que o que nós vivemos hoje é um momento de muita tristeza na educação, com muito retrocesso nas políticas públicas. É um momento lamentável. O Brasil só perde e o que mais retrocede são os setores populares, que mais precisam. É como se fosse a antítese de Paulo Freire. Paulo Freire falava em gestão democrática e estamos assistindo uma gestão autoritária. A  militarização das escolas é uma vergonha, um processo autoritário, de violentização da vida educativa. A defesa do homeschooling é uma forma de privatização, de tentar tirar a importância da educação como direito e bem público. A invisibilização da EJA é um instrumento de ataque contra os setores que precisam mais do que ninguém da educação, que foram mais explorados e violentados. Eu disse em outra pergunta que Paulo Freire talvez tenha se dedicado à EJA pela grande sensibilidade com a injustiça. Bom, a invisibilidade da EJA mostra a grande insensibilidade do atual governo com a injustiça. É uma política educacional a favor da reprodução da injustiça.

“Os inimigos de Paulo Freire são os inimigos de quem pensa que a educação tem alguma coisa a ver com a transformação social”

Por que Paulo Freire se tornou alvo da extrema direita no Brasil de hoje?

Porque Paulo Freire estava muito preocupado com a injustiça e com a opressão e pensava que a educação tinha um poder transformador. Não que a educação podia tudo, também Paulo Freire foi mudando seu otimismo com relação ao que a educação poderia em termos de transformação social. Mas sempre confiou que a educação podia fazer alguma coisa porque partia da percepção de que vivemos um sistema insuportavelmente injusto, excludente, opressor, racista, machista, com um racismo estrutural, com uma violência estrutural, com um machismo estrutural, uma opressão estrutural e que a educação deveria mexer com isso. Então, todos aqueles que, ao contrário, não se sentem de forma alguma incomodados com o sistema ou que acham que está tudo bem, que as coisas são como são porque alguns têm mais méritos, mais sorte ou se esforçam mais do que outros, só podem ver em Paulo Freire um inimigo. Porque ele é alguém que pode questionar o estado de coisas que essas vozes veem como absolutamente normal, desejável e do qual se favorecem, certamente ocupando posições de privilégio. É bastante simples: os inimigos de Paulo Freire são os inimigos de quem pensa que a educação tem alguma coisa a ver com a transformação social, que pode ter alguma coisa a ver com fazer do mundo um lugar mais justo, mais bonito e mais amoroso, que defende uma educação como política da vida e não de morte, de extermínio, de armamentismo, como tem se defendido aqui no Brasil ultimamente. Essas pessoas considerarem Paulo Freire um inimigo no fundo é um elogio, porque Paulo Freire está no outro lado: felizmente ele é uma bandeira do amor, da solidariedade, da vida. Foi sempre um inimigo das ditaduras e um amigo das democracias populares.

in EcoDebate, ISSN 2446-9394

 

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