Desinvestimento em Ciência no Brasil pode agravar as crises hídrica e energética
Desinvestimento em Ciência no Brasil pode agravar as crises hídrica e energética
“Afastamento do governo com o meio científico pode agravar cenário de crises hídrica e energética no país”, avalia professor da Unifesp
Assim como tem acontecido no cenário ambiental, que vem sofrendo com o avanço das queimadas no país, onde a participação científica nacional por meio de sua coleta de dados tem sido reduzida ou, por vezes, ignorada para a tomada de decisões no âmbito governamental, nos segmentos hídrico e energético o Brasil pode estar indo para o mesmo caminho, ampliando ainda mais o risco de crise nesses setores. A avaliação é de Décio Semensatto, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador do centro SOU_Ciência.
“Recentemente, muitos colegiados associados aos ministérios foram esvaziados ou extintos, inclusive com a diminuição ou exclusão da participação de entidades de representação de cientistas, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC). Isso reduziu significativamente o diálogo entre a administração pública e o meio acadêmico, que com sua vasta produção de dados e informações poderia contribuir ainda mais nos processos decisórios estratégicos para o país. Por exemplo, no caso do Conselho Nacional da Amazônia, criado em 2020, a participação da comunidade científica é praticamente nula, o que diminui muito a possibilidade de aplicação da experiência e conhecimento que temos sobre esse bioma”, diz Semensatto.
Apesar de diversas análises acerca da crise hídrica serem desenvolvidas por pesquisadores nas universidades e em institutos de pesquisa nos últimos anos, a produção científica pode não alcançar o impacto desejado e possível justamente pela necessidade de se haver maior abertura de espaços de interação entre a gestão do governo e a comunidade científica, “que ocorre por meio de fóruns permanentes, colegiados dos ministérios e secretarias estaduais, fomento a projetos direcionados às políticas públicas e atuação de cientistas em cargos estratégicos, entre outros”, ressalta o docente.
Décio Semensatto reforça a necessidade de maior participação da comunidade científica, lembrando que “a crise hídrica e energética estão de mãos dadas, justamente porque a produção de energia no país depende muito das condições climáticas e dos recursos hídricos, que por sua vez dependem de as bacias hidrográficas estarem bem conservadas para contínua produção de água. Uma crise puxa a outra, trazendo impactos diretos para toda a sociedade. Se os governos aproveitassem melhor a capacidade científica nacional, os efeitos das crises associadas ao meio ambiente muito provavelmente seriam bem menores”.
Queimadas: exemplo a não ser seguido
O avanço das queimadas, em especial na Amazônia e no Pantanal nos últimos anos, e a forma como a esfera pública tem trabalhado a gestão de dados produzidos pela Ciência, é um exemplo desse ruído no diálogo entre os atores.
“Temos a produção técnica e científica de universidades e institutos de pesquisa sobre os cenários de mudanças climáticas, com destaque para a atuação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Dados científicos publicados no formato de relatórios e de artigos científicos normalmente chegavam à gestão governamental por meio da participação de cientistas nos colegiados ou de atuação de cientistas em cargos nos ministérios com algum poder de negociação e decisão. Na contramão disso e numa postura obscurantista, o governo federal decide agora alterar a atribuição de gestão e divulgação de informações sobre incêndios e queimadas no país, passando do INPE para o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), além de mudar a forma de registro e divulgação de dados. Isso impacta grandemente a série de dados construída pelo INPE nas últimas décadas e as simulações de mudanças climáticas no Brasil, o que certamente elevará as incertezas sobre o cenário hídrico e energético no futuro. Se queremos água para beber, produzir alimentos, energia e realizar todas as nossas atividades, temos que controlar as queimadas. Sabemos detalhes dessa relação porque cientistas brasileiros descobriram. Outro exemplo foi a recente troca de direção do INPE porque os dados sobre queimadas desagradaram. Preferiu-se desacreditar um cientista renomado que alerta para o problema, ao invés de combater o próprio problema numa ampla perspectiva. Esses tipos de ação enfraquecem o diálogo e cria barreiras para que a contribuição do que a Ciência produz de melhor seja usada em benefício nacional. Todos perdemos”.
Antes da decisão de mudança pelo presidente Jair Bolsonaro, cientistas do INPE divulgaram relatórios que demonstravam o aumento expressivo das queimadas na Amazônia e no Pantanal. Esses relatórios chamaram atenção da comunidade internacional, que criou formas de pressão política conforme a situação e a gravidade.
“O desinvestimento em Ciência no Brasil, tanto no aspecto da infraestrutura quanto de pessoal, vem desde 2014 corroendo toda a estrutura de produção do conhecimento pelo próprio país. Isso conduz a uma dependência cada vez maior do que é produzido por outros países, que muitas vezes está mais alinhado à realidade local, ou vamos nos iludir de que cientistas de outros países irão estudar nossos recursos hídricos e energéticos? Perder espaço na Ciência diminui a nossa soberania, já que o controle do conhecimento científico é um elemento importante no jogo geopolítico. É notório que governos de países que sustentam suas estruturas de produção científica e que buscam ouvir cientistas para apoiá-los em suas decisões, conseguem dar maior eficiência às suas ações, mesmo apesar de nem sempre seguir a Ciência o quanto seria necessário. O resultado é o alcance de níveis de desenvolvimento e de bem-estar social um pouco melhores, pelo menos para a maioria de suas populações. Isso se vê durante a pandemia, mas também se via antes na forma como tratam as mudanças climáticas e a conservação do meio ambiente”, conclui Semensatto.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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