Racismo Ambiental e Violência Estatal-Corporativa: A Flexibilização do Licenciamento Ambiental
Racismo Ambiental e Violência Estatal-Corporativa: A Flexibilização do Licenciamento Ambiental, artigo de Karine Agatha França
São as populações da terra, com suas sabedorias e conhecimentos saqueados pela branquitude no processo de colonização que sustentam a única possibilidade de vida neste planeta
Na madrugada desta quinta-feira (13/05), a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do projeto de lei nº 3729/2004, que flexibiliza as regras de licenciamento ambiental. A discussão do projeto ocorre desde 2004, mas só ganhou destaque no governo Bolsonaro, em razão da fortificação da Bancada Ruralista. O relator da proposta foi o Deputado e ex-ministro da Agricultura Neri Geller (PP-MT), vice-presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA).
O histórico do deputado evidencia um percurso experiente na ilegalidade. Neri Geller já foi preso em novembro de 2018, após ter sido acusado de participar de um esquema de propinas, onde recebeu R$ 250 mil reais da JBS, na pessoa de Florisvaldo de Oliveira, mais conhecido como o “homem da mala”. As investigações foram baseadas na delação de Lúcio Funaro, apontado como operador do MDB. Em 2014, Geller também foi citado em depoimento sobre a investigação de fraude de terras, pela invasão e negociação de terras públicas da União destinadas a reforma agrária no estado do Mato Grosso. As terras teriam sido usadas para monocultura, como soja e milho. Na ocasião, foram presos os dois irmãos do deputado, Odair e Milton Geller, através do cumprimento do mandado de prisão pela Polícia Federal na Operação Terra Prometida.
A campanha do deputado Geller para coordenar a comissão do meio ambiente da FPA foi financiada por pessoas e familiares, com histórico de multas pelo Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por crimes de desmatamento no Mato Grosso. Um dos principais doadores da campanha foi o grande produtor de soja, Elizei Zulmar Maggi Scheffer que doou R$ 100 mil reais a Geller. José Izidoro Corso doou R$ 25 mil e já foi autuado por desmatar a reserva legal do Pontal do Piranha em Gaúcha do Norte, assim como Maria Aparecida Corso Martins e Silva e Josué Corso Netto. Ivo Luiz Ruaro também foi multado, e possui seis autuações entre 2012 e 2014. As áreas onde as multas foram aplicadas, também foram reconhecidas como foco de trabalho análogo a escravidão, especialmente de campesinos e campesinas e povos originários Ikpeng.1 Ao todo, Geller declarou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ter investido mais de R$ 2,4 milhões para se eleger.
Para o deputado, a proposta da Lei Geral de Licenciamento Ambiental pretende diminuir a “burocracia cega” para permitir que os órgãos ambientais foquem nas questões técnicas e de fiscalização. Para ele “o empreendedor fica à mercê de uma gritante imprevisibilidade e o meio ambiente não é preservado”.2 No entanto, as maiores articulações de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais do país, assim como ambientalistas e ativistas contrapõem o projeto, alegando que se trata de um verdadeiro genocídio e etnocídio indígena, além de corroborar com o aumento do número de desmatamento, conflitos por terras, exploração e destruição ambiental.
O Instituto Socioambiental apurou que 297 terras indígenas, ou seja, 41% das áreas com processos de demarcação de terras já instaurados pela Fundação Nacional do índio (Funai), seriam atingidas, uma vez que o projeto dispõe sobre o licenciamento de territórios já homologados, com a demarcação já concluída. Em relação aos territórios quilombolas, mais de 1.770 processos de demarcação já iniciados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) seriam afetados, ou seja 87% dos processos seriam excluídos da análise dos órgãos ambientais.
O projeto de lei é de interesse maior da Bancada Ruralista e de setores privados, como as indústrias de mineração, que desejam acelerar os projetos de exploração de minério em territórios indígenas. Tramita na Agência Nacional de Mineração (ANM), mais de 3 mil pedidos de atividades de mineração na Amazônia, dentre os quais, 58 foram aprovados, mesmo atingindo diretamente terras indígenas, prática que é vedada pela Constituição Federal. A empresa que lidera a lista de requerimentos aprovados é a mineradora Anglo American Níquel3, responsável pelo faturamento de 10 bilhões de dólares somente no ano de 2019, pagando aos seus acionistas mais de 1,4 bilhão de dólares nos últimos anos. A terra indígena mais afetada pelas atividades da empresa é a Sawré Muybu (Pimental), no Pará, ocupada pelos indígenas Munduruku.4 As corporações não atuam de forma isolada, mas contam com apoio de outros países e organizações financeiras. No caso da Anglo, a empresa recebeu 14,5 bilhões de dólares entre os anos de 2017 e 2020, por 25 instituições financeiras, representadas pelos países das grandes potências mundiais como os Estados Unidos, China, Japão, Austrália, Suíça, Canadá, França, Alemanha e Holanda.5
Uma das grandes preocupações dos movimentos ambientalistas é em relação a chancela do governo federal sobre as atividades danosas que podem levar a danos ambientais massivos como os casos de Mariana e Brumadinho, ambos da empresa Vale/SA. No caso de Brumadinho, alterações na legislação estadual do licenciamento permitiram uma redução na classificação do porte poluidor de todo complexo de mineração da região Paraopeba, incluindo, o reservatório de rejeito da mina Córrego do Feijão que levou a 270 mortes em 2019.6
Dentre as principais atrocidades previstas no projeto de lei nº 3729/04, estão:
-
Dispensa de licenciamento em 13 tipos de atividades que comprovadamente geram impactos ao meio ambiente como a distribuição de energia, uso da água e sistemas e estações de tratamento de água e esgoto sanitário; obras de manutenção em estradas e hidrelétricas; cultivo de espécies de agrossilvipastoris, de silvicultura e pecuária extensiva (mesmo com pendências ambientais);
-
Permissibilidade da “autodeclaração” (Licença por Adesão e Compromisso) pelos empreendimentos de baixo impacto ambiental, sem qualquer análise prévia do órgão ambiental, tornando o licenciamento a exceção e crimes como Mariana e Brumadinho a regra, já que entram nesses empreendimentos, barragens de rejeitos;
-
Estados e municípios poderão estabelecer regras de licenciamento menos rigorosas em comparação a outras unidades da federação, o que pode gerar uma verdadeira disputa entre governadores e prefeitos;
-
Retirada do poder de veto das comunidades indígenas, concentrando o poder decisório sobre o licenciamento ao órgão regulador, resultando em uma sucessiva violação de direitos dos povos originários e comunidades tradicionais como quilombolas;
-
Exclusão das terras indígenas (41%) e dos territórios quilombolas (87%) ainda não demarcados e titulados, ameaçando as unidades de conservação e deixando os povos ainda mais reféns das violências e massacres provocados por latifundiários, garimpeiros, representantes de empresas e do Estado;
-
Restrição da participação de órgãos fundamentais para a proteção das comunidades atingidas e do meio ambiente como o ICMBio, Funai, Iphan, Ministério da Agricultura e da Saúde;
-
Isenção de responsabilização socioambiental de bancos e outras instituições que financiam empreendimentos que provocam danos sociais.
O projeto de lei comprova a execução da estratégia proposta pelo Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, na reunião interministerial, realizada no dia 22 de abril de 2020, que aduziu ser o momento da pandemia propício para “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas [ambientais] (…) de baciada”. O ministro também argumentou que “estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de covid-19”.7 Um ano depois, a boiada está passando e com maior intensidade sobre as populações originárias e quilombolas, uma vez que são alvos preferenciais da atuação repressiva do Estado, através da institucionalização do racismo ambiental. Os povos tradicionais são considerados verdadeiros empecilhos para o progresso econômico, nos moldes difundidos pelo Estado, bancos, empresas e políticos da Bancada Ruralista, uma vez que movimentam as estruturas de dominação, através da radicalidade política anticapitalista de suas próprias existências.
Os efeitos da flexibilização do licenciamento ambiental para as atividades agropastoris, que incluem os diferentes empreendimentos do agronegócio, autorizam e fortificam a destruição provocada pelo agronegócio hegemônico sobre o meio ambiente, vidas humanas e não humanas. Estas atividades são responsáveis pela maior parte do desmatamento da Amazônia; geram impactos econômicos e sociais graves pela concentração de renda nas mãos de poucos grupos privilegiados; aumentam o número das queimadas; lideram a lista de trabalho análogo à escravidão, bem como estão relacionadas as mortes no campo e em territórios indígenas.8 Como resposta, o Estado intensifica a produção dessas violências, chancelando a “boiada” do Salles, e garantindo os interesses privados das grandes empresas, bancos e políticos.
Nesse ponto, os interesses sustentados na tentativa de aprovação do PL nº 3729/2004 envolvem não apenas as negociações das empresas mineradoras, agropecuárias e hidrelétricas, mas também, do próprio Estado, o qual atua em conjunto com as empresas para garantir que suas atividades sejam impulsionadas e seus atores sejam imunizados, em qualquer resultado nocivo. Exemplos disso são os casos de Mariana e Brumadinho, onde a empresa da Vale/SA, mesmo após o cometimento dos danos ambientais e mortes provocadas, continua a lucrar. No primeiro trimestre de 2021, a mineradora registrou um lucro líquido de 5,5 bilhões de dólares, superando os 239 milhões de dólares do ano passado.9
O deputado Geller alega que “é preciso concentrar o poder decisório nas autoridades licenciadoras, pois são elas que possuem o corpo técnico adequado para a análise e que têm o dever funcional de autorizar ou não o empreendimento”. 10 O discurso faz parte da lógica racista anti-indígena que atribui aos povos originários e quilombolas um lugar de inferioridade, irracionalidade e infantilização.
Tudo isso faz parte ordem branca hegemônica, própria da branquitude, a qual determina como lugar exclusivo dos brancos o da sabedoria e racionalidade. No entanto, são as populações da terra, com suas sabedorias e conhecimentos saqueados pela branquitude no processo de colonização que sustentam a única possibilidade de vida neste planeta, através do respeito as multiplicidades e singularidades, da relação próxima de cuidado e valorização da natureza e dos animais não humanos.
Karine Agatha França, mestranda pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Bolsista CAPES. Integrante da rede Infovírus. Membra dos grupos de pesquisa Direito à Verdade, à Memória e à Justiça de Transição; Vozes silenciadas, vítimas invisíveis: danos socioambientais em crimes estatal-corporativos e Criminologia, Violência e Controle.
1 FUHRMANN, Leonardo. Acusados de desmatamento financiaram campanha de ruralista que coordena comissão de ambiente da FPA, de olho nos ruralistas, 24 mai, 2019. Disponível em: https://deolhonosruralistas.com.br/2019/05/24/acusados-de-desmatamento-financiaram-campanha-de-ruralista-que-coordena-comissao-de-ambiente-da-fpa/
2CLAVERY, Clavery; BARBIÉRI, Luiz Felipe. Câmara aprova texto-base de projeto que dispensa licença ambiental para diversas atividades. G1, 13 mai, 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/05/13/camara-aprova-texto-base-de-projeto-que-dispensa-licenca-ambiental-para-diversas-atividades.ghtml
3A empresa chegou a declarar estar ciente da proibição da exploração de mineração em terras indígenas, e referiu que os requerimentos foram retirados, mas no sistema da Agência Nacional de Mineração e ainda estão lá. No entanto, ainda há 5 pedidos de 2017 e 2019 registrados na ANM, demonstrando que na realidade, a atuação da empresa não parou. A hipótese se deve pela proposta do Governo Federal de liberar as TI’s para o exercício de atividades de mineração, através do projeto de lei nº 191\2020, o qual a Anglo conta para o processamento e autorização das atividades minerarias.
4POTTER, Hyury; ANDRADE, Eduardo Goulart de. Levantamento mostra avanço da mineração em terras indígenas. DW Made For Mins Brasil. 26, nov, 2020. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/levantamento-mostra-avan%C3%A7o-da-minera%C3%A7%C3%A3o-em-terras-ind%C3%ADgenas/a-55713592.
5POTTER, Hyury; ANDRADE, Eduardo Goulart de. Levantamento mostra avanço da mineração em terras indígenas. DW Made For Mins Brasil. 26, nov, 2020. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/levantamento-mostra-avan%C3%A7o-da-minera%C3%A7%C3%A3o-em-terras-ind%C3%ADgenas/a-55713592.
6INSTITUTO SOCIAMBIENTAL. Indígenas, quilombolas e extrativistas são contra projeto que praticamente acaba com licenciamento, 11 mai, 2021. Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/indigenas-quilombolas-e-extrativistas-sao-contra-projeto-que-praticamente-acaba-com-licenciamento
7ETIM, Felipe. Brasil é o terceiro país mais letal do mundo para ativistas ambientais, só atrás de Filipinas e Colômbia. ELPAÍS, 28 jul, 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-28/brasil-e-o-terceiro-pais-mais-letal-do-mundo-para-ativistas-ambientais-so-atras-de-filipinas-e-colombia.html
8FRANÇA, Karine Agatha; BUDÓ, Marília De Nardin; DA VEIGA DIAS, Felipe. O aquecimento global no discurso parlamentar brasileiro: denúncia e negação de responsabilidade do agronegócio. Revista Direito, Estado e Sociedade, 2021.
9NOGUEIRA, Marta; SAMORA, Roberto. Vale lucra US$5,5 bi no 1º tri com alta do minério; supera expectativa, ISTOÉ, 26 abr, 2021. Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/vale-lucra-us55-bi/
10CLAVERY, Clavery; BARBIÉRI, Luiz Felipe. Câmara aprova texto-base de projeto que dispensa licença ambiental para diversas atividades. G1, 13 mai, 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/05/13/camara-aprova-texto-base-de-projeto-que-dispensa-licenca-ambiental-para-diversas-atividades.ghtml
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 14/05/2021
A manutenção da revista eletrônica EcoDebate é possível graças ao apoio técnico e hospedagem da Porto Fácil.
[CC BY-NC-SA 3.0][ O conteúdo da EcoDebate pode ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, à EcoDebate com link e, se for o caso, à fonte primária da informação ]
Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário da revista eletrônica EcoDebate, ISSN 2446-9394,
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta enviar um email para newsletter_ecodebate+subscribe@googlegroups.com . O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.
O EcoDebate não pratica SPAM e a exigência de confirmação do e-mail de origem visa evitar que seu e-mail seja incluído indevidamente por terceiros.
Remoção da lista de distribuição do Boletim Diário da revista eletrônica EcoDebate
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para newsletter_ecodebate+unsubscribe@googlegroups.com ou ecodebate@ecodebate.com.br. O seu e-mail será removido e você receberá uma mensagem confirmando a remoção. Observe que a remoção é automática mas não é instantânea.