Fraternidade e Ecumenismo
Fraternidade e Ecumenismo, artigo de Juacy da Silva
[EcoDebate] Se nós, cristãos, não conseguirmos nos entender, vivermos em harmonia, em paz, termos tolerância, saber respeitar as pessoas que pensam, sentem e agem de maneira diferente de nós, as diferenças de crenças, estilo de vida, culturas, ideologias, como imaginar que podemos contribuir para transformar a realidade atual e construirmos um mundo melhor, sem violência, sem exclusão, sem racismo, sem homofobia, sem machismo, sem intolerância, sem corrupção e sem discriminação e com respeito ao meio ambiente? Este é o desafio que a Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021 nos apresenta.
Ao longo da história humana coexistem duas dimensões que se opõem. De um lado o ideal de uma convivência pacífica, de harmonia entre as pessoas, entre as comunidades e entre os países e de outro, uma realidade cruel da violência, da exclusão, da intolerância, dos conflitos e da Guerra, símbolo maior da bestialidade humana, que ao longo da história já ceifou centenas de milhões de vidas inocentes, ou ainda quando milhões de vidas inocentes são ceifadas em nome de credos religiosos, de ideologias e pela busca desenfreada do poder e dominação.
O primeiro relato de que se tem notícia, a partir da história sagrada, como narrado na Bíblia foi a morte, o assassinato cometido por Caim contra seu irmão Abel e desde então o espírito da intolerância, da ganância, do preconceito, do racismo, do machismo, da homofobia e tantas outras manifestações irracionais tem se perpetuado em todos os países, em alguns com maior virulência e em outros em formas disfarçadas, como ocorre no que se convencionou chamar de “pax romama” ou paz do cemitério, quando o opressor impõe sua vontade, retirando ao oprimido toda a capacidade de reagir e acabar com a violência do opressor.
A antítese desta realidade cruel é o ideal de liberdade, de harmonia, de justiça, de igualdade e fraternidade, ou seja, onde as pessoas se relacionam com respeito mútuo, com tolerância quanto `a diversidade cultural, de costume, de religião, de ideologia e de visão de mundo.
Dois exemplos significativos desta trajetória em busca de uma nova ordem com mais harmonia social, politica e econômica podem se encontrados nas Revoluções Americana e Francesa, nesta última que perpetuou a trilogia : Liberdade, Igualdade e Fraternidade, mas que, apesar das mesmas, ambos os países ainda convivem, como de resto diversas outros países, com demonstrações explícitas de violência (racial, de gênero, econômica, politica, ideológica e religiosa, entre outras formas que podemos observar e constatar na atualidade mundo afora.
Voltando `a história sagrada, a narrada na Bíblia, no velho Testamento são inúmeras as passagens, principalmente as que se referem aos profetas, em que os mesmos não se cansam de alertar os poderosos, os reis, os governantes e a sociedade daquela época em geral quanto aos males provocados pelas injustiças, incluindo a escravidão, `a exclusão social, política e econômica como pecados que afrontam não apenas seus semelhantes, mas, que tal modelo de sociedade e prática dos poderosos são pecados e uma afronta a Deus.
O mesmo discurso de condenação dessas formas distorcidas de convivência ou para ficarmos com um modismo atual, a mesma narrativa, vamos encontrar no Novo Testamento, com a Encarnação do Filho de Deus, “que se fez carne e habitou entre nós”, com sua mensagem de amor, de fraternidade, de cuidado com os que mais sofrem e também com a denúncia de práticas de intolerância, de ganância e de opressão.
Cristo costumava falar `as multidões ou a cada pessoa individualmente através de parábolas, todas muito lindas e com um significado importante tanto para as relações das pessoas com a divindade, com a transcendência quanto para as questões do dia-a-dia, os desafios e as angústias de quem sofre na carne as consequências do pecado e também da opressão, da exclusão , da violência e das injustiças, reforçando sempre o ideal da fraternidade, ou seja, que devemos pautar nossas ações pelo espírito da caridade, da solidariedade, enfim, da fraternidade, ou seja, tratarmo-nos mutuamente como irmãos, onde o amor e solidariedade são as tônicas dominantes.
Fraternidade neste sentido significa amor, afeto em relação ao próximo, convivência harmônica entre as pessoas, utilizar a não violência como mecanismo para resolver as pendências, os desacordos, os conflitos e jamais a violência ou intolerância, que apenas agravam os problemas.
Este é o ideal do que podemos denominar de “civilização do amor” ou da “sociedade do bem viver”, único conjunto de valores e princípios capazes de embasar a construção de um mundo melhor, de um país melhor, de uma comunidade melhor.
Um dos mais belos exemplos do ensinamento de Jesus podemos encontrar na Parábola do Bom Samaritano, quanto um certo “doutor da Lei”, questionou o Mestre o que era necessário uma pessoa fazer para ganhar/herdar o reino eterno, Cristo afirma, conforme relatado no Evangelho de Lucas 10:25-27, “ Ame o Senhor teu Deus, de todo a sua alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento e, prosseguiu Jesus, “ e ao teu próximo como a ti mesmo”.
Em outra passagem relatada no Evangelho de Mateus 7:12, novamente é reforçada a ideia da fraternidade como prática do bem viver, da civilização do amor , quando Jesus diz “ Portanto, tudo quanto quereis que as pessoas vos façam, fazei-o vós também a elas, pois esta é a Lei e os profetas, os dois únicos caminhos”.
Para denunciar as relações injustas nas sociedades de então, os profetas não se cansavam de enfatizar em suas mensagens, como podemos observar no Livro de Isaias 1:17 “ aprendei a fazer o bem, buscai a justiça (e, claro, a JUSTIÇA SOCIAL), acabai com a opressão, fazei justiça ao órfão e defendei a causa das viúvas”.
No livro dos Provérbios em 31:9, podemos ler claramente quando é dito “Ergue a tua voz e julga com justiça, defenda o pobre e o indigente”. O profeta Jeremias também não se cansava de denunciar a realidade de sua época, cujas práticas pecaminosas afrontavam tanto a Deus quanto `as pessoas como consta do Capítulo 22:, 3, 16 e onde podemos ler, também de forma clara “Assim diz Deus, o (Pai) Eterno, Praticai o direito, exercei a justiça e livrai da mão do opressor aquele que esta sendo espoliado por ele. Não façais nenhum mal, constrangimento ou qualquer outra violência contra o estrangeiro (migrante), o órfão, a viúva e nem derramai sangue inocente”.
Para não alongar demasiadamente as referências `as denúncias e exortações dos profetas, vamos relembrar as palavras de Zacarias 7: 9-10 que dizem textualmente “Assim diz o Senhor, o Todo Poderoso: praticai a Justiça verdadeira, demonstrai amor misericordioso e compassivo, cada um para com o seu próximo”.
No Novo Testamento há relatos de como viviam as comunidades cristãs primitivas, onde todos compartilhavam o que possuiam e os bens eram coletivos, ou seja, o que prevalecia era o sentido do bem comum, da união, da fraternidade, da solidariedade e da harmonia das relações entre irmãos, que tinham no Evangelho sua base comum.
Mesmo uma certa divisão, como ocorria entre cristãos de origem Judaica e outro grupo cuja origem eram os gentios, os apóstolos não cansavam de exorta-los de que era fundamental, imperiosa a convivência harmônica, cultivando a tolerância em nome de um projeto maior que era a propagação das boas novas do evangelho.
Com certeza aí estão as raízes do ecumenismo e o caminho para acabar com a intolerância e a violência religiosa, que, lamentavelmente ainda está presente entre pessoas e grupos que professam religiões e fé distintas, inclusive entre cristãos, entre católicos e protestantes ou entre cristãos e adeptos de religiões de matriz afro ou outras culturas.
É neste contexto que surgiu, no Brasil, na década de 1960, uma experiência exitosa que se repete todos os anos desde então, que é a CAMPANHA DA FRATERNIDADE, que é realizada durante o período da Quaresma, que tem inicio na quarta feira de cinzas e termina na semana santa.
A Campanha da Fraternidade tenta resgatar a memoria do que foi feito por Jesus, quando, por 40 dias, foi para o deserto, passando aqueles dias em penitência, em oração, sendo tentado. Assim, para os cristãos a Quaresma representa um tempo de oração, de jejum, de conversão, de reconciliação de cada pessoa com Deus e também de reconciliação entre irmãos, de solidariedade, tudo isto, como uma preparação para a pascoa, o julgamento (injusto) de Cristo, sua condenação a morte, de Cruz e sua ressureição, que significa a grande esperança para os cristãos.
A Quaresma foi instituída na Igreja Cristã no Século IV, no ano de 325, durante o primeiro Concílio de Nicéia, portanto, muito antes do grande embate que acabou desaguando na Reforma Protestante, cujos 500 anos foram “comemorados” recentemente.
Mas desde muito tempo tem havido um grande esforço para lançar as bases para uma convivência harmônica entre cristãos de diferentes credos e práticas religiosas, buscando aspectos que podem aproximar tais grupos religiosos.
No Brasil, desde os anos oitenta diversas teólogos, integrantes da hierarquia Católica e de outras igrejas Evangélicas como Luterana, Metodista, Anglicana, Presbiteriana Unida do Brasil, Síria Ortodoxa de Antioquia, Aliança de Batista do Brasil, Betesda, todas articuladas e integrantes do CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, do qual faz parte também a Igreja Católica Apostólica Romana. Aqui cabe uma observação que durante o 18º Concílio Geral, realizado em julho de 2006, a Igreja Metodista resolveu desligar-se do CONIC.
Desde a realização do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica através de seus documentos, inclusive Encíclicas e manifestações de diferentes Papas, tem reforçado o empenho para que o Ecumenismo seja uma prática que possibilite uma maior harmonia e união de ações transformadoras por parte dessas igrejas cristãs no Brasil.
Em decorrência deste empenho coletivo por parte de diferentes igrejas cristãs foi possível iniciar um trabalho em conjunto através da realização de Campanhas da Fraternidade Ecumênicas, a cada 5 anos, desde o ano 2000.
Para a realização das Campanhas da Fraternidade, sejam elas as “rotineiras” articuladas e coordenadas pela Igreja Católica/CNBB ou as Ecumênicas, são escolhidos um Tema e um Lema, que possibilita vincular a reflexão do Evangelho com a busca da transformação da realidade e a realização de ações de caridade/solidariedade. Aqui vale a pena destacar que existem planos diferentes de caridade, mas integrados entre si, que são: caridade assistencial; caridade promocional, caridade sócio transformadora e caridade libertadora.
A primeira Campanha da Fraternidade Ecumênica foi realizada no ano 2000 e teve como Tema: Dignidade Humana e Paz e Lema: Novo Milênio sem Exclusões; a segunda foi em 2005 com o tema Solidariedade e Paz e o lema Felizes os que promovem a paz; a terceira foi em 2010 abordando o tema: “Economia e Vida”. O lema é tirado do Evangelho de Mateus: “Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” ; a quarta Campanha foi em 2016 com o tema “Casa Comum, nossa responsabilidade” e tem como lema “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca” (Am 5,24).
Finalmente chegamos em 2021, quando, a Campanha da Fraternidade será novamente realizada de forma Ecumênica, o que tem gerado certas interpretações distorcidas e malévolas, por parte de alguns grupos católicos minoritários, que buscam ofuscar a importância, o significado e a extensão deste esforço ecumênico para superar tantas formas de violência, de injustiças, de exclusão, de racismo e de intolerância que ainda existem em nosso país e em nossas igrejas, cujos resultados geram fome, miséria, sofrimento, violência e morte, principalmente neste tempo de pandemia.
O Tema da Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021 é “Fraternidade e dialogo: compromisso de amor” e tem como Lema, a passagem do Livro de Efésios 2:14 “Cristo é nossa Paz; do que era dividido fez uma unidade”.
O texto Básico e demais materiais da Campanha foram produzidos de uma forma totalmente diferente do que as campanhas anteriores, tendo em vista as dificuldades e impossibilidade de reuniões devido ao avanço do coronavírus no mundo todo e também no Brasil.
As contribuições foram apresentadas de forma virtual e coube ao CONIC, onde também tem assento um representando da CNBB/Igreja Católica, concretizar o projeto e colocar a disposição dos fiéis e da hierarquia eclesiástica de todas as Igrejas envolvidas.
Como em Campanhas anteriores foi utilizado o Método, já consagrado, com suas fases: Ver, Julgar e Agir, nesta Campanha renomeadas como “Paradas”, fazendo alusão, imagino eu, `as “paradas” da via sacra. Enfim, a primeira parada é o momento de analisarmos a realidade em que estamos vivendo presentemente no Brasil, em meio a esta pandemia, onde também as Igrejas estão inseridas.
Ai são destacados os aspectos do impacto da COVID-19 na nossa realidade com o aumento da exclusão, da miséria, da fome, decorrentes do aumento do desemprego, da falta absoluta de renda afetando milhões de famílias, principalmente com o fim do auxílio emergencial e também o agravamento de problemas antigos que dilaceram nossas relações e nosso país como o aumento da violência em geral, do feminicídio, da intolerância, dos assassinatos, inclusive de integrantes de minorias étnicas , de gênero e outros grupos excluídos, com destaque também para a presença da intolerância religiosa, principalmente contra os grupos religiosos que professam e praticam “religiões”/crenças de matrizes indígenas e afro ou outras mais.
A segunda parada tem como subtítulo “Carta para pessoas de boa vontade em um mundo cheio de barreiras e divisões”, representa o momento ou fase do julgar, apontar caminhos tendo como base os ensinamentos da Bíblia, principalmente os Evangelhos e as Cartas Apostólicas dos primeiros cristãos, onde inúmeras exortações são feitas para demonstrar os perigos das divisões e conflitos entre as primeiras igrejas cristãs.
No item 113, por exemplo, podemos ler e entender claramente este desafio quando é dito “ A fé em Jesus Cristo é o vínculo que une a comunidade e garante que experimentemos os sinais do Reino de Deus entre nós: o amor, a benevolência, o perdão, a liberdade e a graça. Efésios, 1:3 – 8. E no item 117 podemos ler, também de forma clara, a afirmação “Cristo é a nossa paz” confessa que em Cristo (não importa a igreja a qual pertençamos) não há lugar para a violência e o racismo, para o ódio e a discriminação”
Essas passagens/trechos do Documento Base da Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021 representam exortações para todos os cristãos quanto a importância da harmonia, do entendimento, da tolerância em relação a aspectos que cada igreja tem em particular, daí a importância do lema “…do que era dividido fez uma unidade”, um apelo claro ao espirito do ecumenismo. Esta e a base para a terceira parada.
Quando se faz um balanço do que já foram os resultados das Campanhas Ecumênicas em anos anteriores e indica pistas para o que se pode fazer neste momento e em futuro próximo para superarmos não apenas as divisões entre igrejas irmãs, já que todas, Católica e protestantes/evangélicas professa uma única fé, em Jesus Cristo, percebe-se a importância de uma ação sócio transformadora ecumênica
Este o que fazer e envolve não apenas aspectos teológicos ou mesmo transcendentais de nossa fé cristã, mas o que os cristãos, em conjunto, em harmonia e em união de esforços podem realizar também para melhor cuidar da “casa comum”, combater a degradação ambiental, as mudanças climáticas; contribuir para que até 2030 os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável estabelecidos pela ONU sejam alcançados plenamente no Brasil, como combater e reduzir significativamente os níveis de miséria, de desemprego, de fome, de violência em suas varias formas e manifestações, como construir uma sociedade onde não haja tanto desperdício de alimentos de um lado e fome de outro; tanta miséria ao lado da opulência e, também, o que ; podemos fazer como cristãos para que governantes sejam mais eficientes, mais comprometidos com o bem comum, que as gestões pública e empresarial sejam realizadas segundo normas transparentes e éticas e que na definição de politicas públicas os governantes não venham a reforçar a acumulação de bens, riquezas, renda e oportunidades sempre em favor de minorias privilegiadas, em detrimento de uma imensa maioria que permanece excluída dos frutos do progresso e do desenvolvimento nacional.
Este é o sentido da Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021. Vale a pena refletir e participarmos da mesma, com espirito verdadeiramente cristão que é a única e grande esperança de que é possível transformar tudo que gera sofrimento e morte em busca de um mundo melhor!
JUACY DA SILVA, professor universitário, fundador, titular e aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso, sociólogo, mestre em sociologia, articulista e colaborador de alguns veiculos de comunicação. Email profjuacy@yahoo.com.br Twitter@profjuacy
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 17/02/2021
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