Os 10 anos da maior tragédia climática do Brasil
Os 10 anos da maior tragédia climática do Brasil
Como a população da Região Serrana do Rio de Janeiro segue enfrentando velhos desafios
Em 2021, a maior tragédia climática do Brasil completa 10 anos. No dia 11 de janeiro de 2011, mais de 900 pessoas perderam as suas vidas, inúmeras desapareceram e cerca de 35.000 ficaram desabrigadas após chuvas intensas atingirem as cidades da região serrana do estado do Rio de Janeiro (RSRJ), inserida no bioma da Mata Atlântica, que possui apenas 28% de sua cobertura original.
Especialistas afirmam que a tragédia se deveu à soma de diferentes fatores, como a intensidade das chuvas, a impermeabilização do solo e moradias construídas em áreas irregulares. De acordo com Pinheiros, Andrade e Moura (2011): “O evento extremo que atingiu a RSRJ pode ser considerado como elemento integrante da variabilidade climática, que por sua vez pode ser afetado pela ação antropogênica.” O ocorrido teve repercussão internacional, a imprensa veiculava sua dimensão, o número de mortos e a dor, sentida não apenas por quem havia sido diretamente afetado, mas por quem se solidarizou com a situação.
A fim de tentar entender como chegamos até aqui em 2021 e os desafios que a região ainda possa enfrentar uma década após um evento sem precedentes no país, Felipe Sá e Vitória Holz, do coletivo de cicloativistas Cicli – Pedalando pelo Clima, pedalaram mais de 100 quilômetros em 4 dias pelo município de Teresópolis em dezembro de 2020 para escutar 3 pessoas que foram diretamente afetadas em contextos diferentes.
Os impactos das chuvas daquele mês puderam ser notados logo no primeiro dia de pedal. Em Poço dos Peixes, no Segundo Distrito, escutaram uma moradora que sobreviveu à tragédia, teve sua casa interditada, saiu com o auxílio do aluguel social, mas voltou depois de alguns anos por falta de opção (com o fim do auxílio, segundo informou).
Ela contou o que viveu na madrugada daquele dia e como se sente sempre que janeiro se aproxima desde então:
“[…] quando chega dezembro, […] pra mim o Natal, Felipe, é um dia muito triste, porque já começa, vem o ano novo, aí vem o dia 11 e vem aquilo tudo na cabeça da gente, a gente fica super triste, né? Porque perder amigos, irmãos de igreja […] é horrível.” Fonte anônima, Poço dos Peixes, Teresópolis, 19 de dezembro de 2020.
Hoje, sua casa encontra-se interditada pela Defesa Civil, mas sem o aluguel social não tem outro lugar para morar. Segundo a fonte, não há diálogo com autoridades sobre educação ambiental e climática, nem sobre obras de adaptação climática, algo realizado no quintal de sua casa após a tragédia. Ela disse que se mudaria para a Fazenda Ermitage (caso isso lhe fosse exigido) – o conjunto habitacional construído para as famílias desabrigadas em 2011 -, mas afirma não ter medo e querer continuar onde está.
“Eu, hoje, moro na minha casa. A minha casa está interditada, mas eu não tenho o aluguel social […] e o governo diz que a gente tem que sair daqui, mas nós vamos sair pra onde?
Eu […] já estou com minha papelada toda na Caixa Econômica, mas eles não chamam a gente e não sei o porquê. A gente vai lá e eles falam: Ah! Vocês têm que aguardar fazer os novos apartamentos. Mas eu confesso pra você, Felipe, eu gostaria de ficar na minha casa. A minha casa é uma casa grande, boa, eu tenho mais tranquilidade aqui do que lá na Fazenda (Ermitage). Eu gosto muito daqui, tenho muita paz aqui.
Não tenho medo. Me sinto segura! A casa é boa!” Fonte anônima, Poço dos Peixes, Teresópolis, 19 de dezembro de 2020.
A ocupação não planejada de encostas de morros e áreas próximas a rios e córregos aumenta o risco de desastres, por isso políticas públicas de relocação e o investimento em moradia popular de qualidade e acessível são muito importantes. Também é fundamental observar as condições em que isso acontece, sendo necessário salvaguardar a dignidade e a qualidade de vida das pessoas que acessem esses direitos.
Uma das milhares de famílias que não puderam retornar para suas casas é a da Maria Elizabete, quem hoje mora em um dos condomínios da Fazenda Ermitage. Ela falou do aluguel social ao qual os desabrigados tiveram acesso e que, no meio disso, alguns conseguiram ser indenizados e comprar outra casa, os que não conseguiram teriam de aguardar os apartamentos que estavam sendo construídos para eles – que foi o seu caso.
A princípio, o marido de dona Bete não queria ir para o apartamento, mas ela quis, mesmo não tendo sido uma decisão fácil.
“Muita coisa se passou até a gente conseguir conquistar esse apartamento, né? […] Os 7 anos antes da gente entrar aqui, todo ano a gente tinha que fazer um novo cadastro, um novo cadastro e era tudo de novo e era xerox daqui e xerox dali pra gente poder entrar aqui. Então assim, pra mim, Elizabete, ter entrado pra cá foi uma mudança de vida, porque eu tinha uma depressão tremenda. Eu tinha uma casa, né? Era no terreno da minha sogra, mas eu tinha o meu cantinho. Era simples, mas era meu aonde eu morava. Mas eu tinha um quintal, eu tinha uma varanda e a minha vida era dentro de um quarto, que era o lugar em que eu me sentia mais segura. […] Quando eu vim pra cá, […] o meu marido, ele não queria vir. […] E eu decidi assim de um dia pro outro. Eu falei: Não! Eu vou me mudar pra lá! Se me foi dado, eu vou pra lá porque eu não sei o que é que Deus tá preparando. E vim pra cá! Isso aqui pra mim foi como abrir a gaiola e o passarinho voar, sabe? Eu tive […] uma nova revitalização pra minha vida, porque a minha depressão tá controlada, eu me vejo aqui, assim, livre, sabe? Por mais problemas que a gente possa ter nesse lugar, eu me acho muito bem aqui.” Trechos da fala de Maria Elizabete no dia 20 de dezembro de 2020 em Teresópolis (RJ).
Eles se mudaram, mas ainda havia o que ser feito. Durante o planejamento da construção dos condomínios, pontos fundamentais não foram contemplados. Entre algumas das questões que precisavam ser resolvidas, estava a da mobilidade urbana. Os prédios foram construídos do outro lado de um trecho da BR-116 e o seu acesso a pé e de transporte público foram grandes desafios resolvidos com a luta dos moradores, um deles parcialmente. Um túnel foi construído para viabilizar o acesso dos moradores aos condomínios a pé, porém a falta de iluminação, a presença de infiltrações e a insegurança os levam a arriscarem suas vidas atravessando a rodovia, mas, hoje uma linha de ônibus já os atende sem terem que cruzá-la.
Depois de escutarem a dona Bete, Felipe e Vitória pedalaram rumo à zona rural no terceiro dia da cicloviagem onde visitaram o Roberto Selig no sítio do Bicho Solto, um sítio que produz alimentos em sistemas agroflorestais. Lá é possível sentir o diferencial de se plantar em harmonia com a natureza, utilizando seus princípios e respeitando-a. Nesse modo de produção, culturas agrícolas são associadas com árvores florestais e frutíferas na mesma área, buscando utilizar os recursos naturais, como solo, água e energia da maneira mais eficiente. Essa técnica reproduz processos naturais, tornando o solo mais saudável, resiliente e produtivo, diferente do que se observa na agricultura convencional, que força a existência de condições não naturais levando ao empobrecimento do solo e ao aumento de sua vulnerabilidade. Beto argumenta que o próprio sistema provê a fertilidade do solo, não sendo necessário recorrer à “fertilidade comprada na loja”. No sítio do Bicho Solto, a Mata Atlântica é conservada e as margens do córrego que passa por ele são preservadas, o que infelizmente não se repete nas redondezas.
Beto contou que seus vizinhos passaram e ainda passam por experiências de vulnerabilidade ambiental mas que, felizmente, em alguns casos, pôde ajudá-los. Pouco antes da tragédia de 2011, um vizinho havia aplicado glifosato em um morro para “limpá-lo” e plantar eucalipto. O resultado foi devastador pois, sem floresta, o mesmo deslizou com a água das chuvas, enquanto ao lado, o solo protegido do sítio Bicho Solto manteve-se firme. A exposição do solo causa problemas na região devido ao seu impacto no assoreamento do córrego próximo às propriedades. Junto com o assoreamento, o uso de agrotóxicos dificulta ou até impede, no caso do Beto, a utilização da água dos córregos da região. As águas que nascem no sítio do Bicho Solto garantem a sua produção e, inclusive, a de propriedades vizinhas.
A segurança alimentar também é um ponto forte no tipo de cultivo do sítio. Com as chuvas de 2011, muitas famílias ficaram ilhadas em suas propriedades e, como produziam apenas poucas variedades para o mercado, não plantando para si mesmas, passaram por uma escassez de alimentos ao não conseguirem sair de suas terras.
“Quando tudo ficou fechado, as ruas fechadas, a estrada fechada, […] nós tínhamos tudo pra comer em casa. Tinha tudo! Tinha fubá, tinha mel, tinha banana, amendoim, né? Porque nós sempre tivemos essa direção de produzir para consumo, de ter a produção para consumo junto com a produção de mercado, né? Então, […] na ocasião da tragédia, a região ficou sendo alimentada por helicóptero. O helicóptero vinha trazendo comida e água porque não tem comida aqui na região. A verdura se acabou toda, se estragou toda e não tinha alimento, né? Hoje a situação é basicamente a mesma. Pouquíssimo mudou. Se mudou é, assim, muito irrisório. Eu acredito que algumas pessoas tenham sido sensibilizadas. Eu conheço algumas pessoas que se orgulham de: Ah! Eu tenho bastante pé de fruta em casa! Tem pessoas assim, né? Que certamente foram estimuladas por aquele episódio, mas a grosso modo, continua a mesma insegurança alimentar daquele momento.” Trecho de fala do Beto no dia 22 de dezembro de 2020 em seu sítio, no interior do município de Teresópolis (RJ).
Essa realidade é um indicador de que a soberania alimentar no município de Teresópolis é frágil, mas exemplos como do sítio do Bicho Solto mostram que o cenário pode melhorar e há práticas escaláveis que podem ser compartilhadas a fim de combater a insegurança alimentar na região. Ana Paula Pegorer1, da Associação Agroecológica de Teresópolis, observando isso há dez anos atrás, lançou o projeto batizado de “Quintais Agroecológicos”, buscando melhorar a relação dos produtores rurais com a terra, combatendo a fome ao estimular as famílias a produzirem para autoconsumo além de apenas para o mercado.
É preciso que nos preparemos para enfrentar eventos climáticos extremos e tomemos atitudes que reduzam as chances de que esses continuem acontecendo. A mudança do clima provocada pela atividade humana tem como duas de suas consequências justamente o aumento da frequência de extremos climáticos e a imprevisibilidade dos mesmos (BRASIL, 2011, p. 27). O que aconteceu em 2011 pode voltar a acontecer. Infelizmente, não é uma questão de “se”, mas uma questão de “quando”.
Uma década se passou e os desafios em Teresópolis, onde a cicloviagem aconteceu, e em toda a Região Serrana do Rio de Janeiro são muito semelhantes aos de 2011. Segue sendo fundamental promover educação ambiental e climática, fortalecer a aplicação da legislação ambiental, investir em políticas públicas de relocação e em moradia popular e no combate à insegurança alimentar. É preciso que as autoridades competentes façam o dever de casa. A crise climática cobra.
Mini-bio
Felipe Sá é internacionalista (UERJ) e Vitória Holz é bióloga (UFRJ). Ambos integram o Cicli, um coletivo de cicloativistas que se configura em uma rede descentralizada, presente em diferentes regiões do país, com o objetivo de promover a conscientização sobre a crise climática. Entre suas ações, realiza cicloviagens documentando histórias de quem está na linha de frente da mudança do clima.
Referências bibliográficas
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Relatório de Inspeção. 2011. Disponível em: <https://www.mma.gov.br/estruturas/182/_arquivos/relatoriotragediarj_182.pdf>. Acesso em: 04/05/2020.
PINHEIROS, Henri; ANDRADE, Kelen; MOURA, Carlos. A MAIOR CATÁSTROFE CLIMÁTICA DO BRASIL SOB A VISÃO OPERACIONAL DO CPTEC/INPE. INPE, 2011. Disponível em: <http://plutao.sid.inpe.br/col/dpi.inpe.br/plutao/2011/11.23.16.17/doc/Pinheiro_A%20maior.pdf>. Acesso: 04/05/2020.
1 Quem infelizmente nos deixou em 2020.
É um crime taxar essa tragédia de tragédia climática. Não basta ter bom coração para falar sobre o tema, há que ter, antes de mais nada, competência e experiência profissionais.
Recomendo leitura de tudo que geólogos e engenheiros geotécnicos pulbicaram sobre esse e outros eventos semelhantes., Aí descobrirão que a tragédia não tem absolutamente nada a ver com variações climáticas globais e sim com a forma totalmente equivocada de uso e ocupação do solo nas regiões serranas tropicais.
Eu entendo a sua colocação, Álvaro, mas note que no início do texto mencionamos uso e ocupação do solo como fatores que se somam aos que levaram ao ocorrido. Toda a cobertura que fizemos é baseada em referências científicas. Para enriquecer a discussão, recomendo a leitura do estudo do INPE citado no artigo que afirma que: “O evento extremo que atingiu a RSRJ pode ser considerado como elemento integrante da variabilidade climática, que por sua vez pode ser afetado pela ação antropogênica” (PINHEIROS; ANDRADE; MOURA, 2011). Acrescento que o ponto que levantamos é o de que a tragédia foi desencadeada por um extremo climático, o tipo de evento que pode ser mais frequente e menos previsível devido à mudança do clima.