As crises sanitária, climática e ecológica estão relacionadas
As crises sanitária, climática e ecológica estão relacionadas
O Capitaloceno e as pandemias
“As crises sanitária, climática e ecológica estão intimamente relacionadas e se explicam em boa medida por um sistema capitalista que gira em torno do crescimento econômico constante, em um planeta com recursos finitos, encontrando os limites de suas próprias dinâmicas”, escreve Antón Fernández Piñero, biólogo, em artigo publicado por El Salto, 21-11-2020. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A Peste Negra foi uma pandemia que marcou tanto física como espiritualmente o mundo ocidental, na Idade Média. Esta doença estava localizada nos vales do Afeganistão até que a rota da seda e as invasões mongóis favoreceram sua expansão por todo o mundo. As consequências são bem conhecidas. É que a história não só é escrita pelas quedas de impérios, conquistas de novos continentes e invenções tecnológicas, mas também por pandemias globais que atuam revolucionando a mentalidade das sociedades.
De modo análogo à Peste Negra, mas com sete séculos de distância, a pandemia provocada pelo SARS-CoV-2 está mudando o mundo, embora existam diferenças. O patógeno, por exemplo, não é uma bactéria, mas um vírus e enquanto a peste matou de um terço a metade da população europeia, no século XIV, a atual pandemia é muito menos mortífera, fundamentalmente pelas próprias características biológicas do vírus e pelo desenvolvimento da ciência e da medicina moderna.
No entanto, as duas doenças compartilham o fato de surgir e se expandir como resultado do aumento das interações humanas no globo. As razões estão em um conjunto de fatores derivados de uma economia que comercializa bens e serviços, sem se importar com os custos sociais e ecológicos, desde que seja lucrativo economicamente, mesmo que a longo prazo isto seja paradoxalmente negativo para os mercados.
O Capitaloceno e a urgência da estratégia preventiva
Neste mesmo ano, a IPBES (Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos) elaborou um relatório exaustivo com o trabalho de mais de 150 especialistas e outros 350 colaboradores alertando que futuras pandemias emergirão com maior frequência, proliferarão mais rápido, afetarão mais a economia e serão mais letais que a covid-19, a não ser que haja uma mudança transformadora de enfoque na luta contra as doenças infecciosas, passando da reação à prevenção.
Desde a mal denominada “gripe espanhola” de 1918, seis pandemias se espalharam pelo mundo: três do vírus da gripe, o SIDA, o SARS e o Covid-19. Sua frequência está aumentando. Estimam-se de 631.000 a 827.000 os vírus desconhecidos com capacidade de infectar os humanos. Ao mesmo tempo, os custos econômicos atuais são 100 vezes superiores aos estimados para a estratégia preventiva.
O relatório afirma que somente por meio de uma “mudança transformadora dos fatores econômicos, sociais, políticos e tecnológicos” é possível alcançar os objetivos e as metas de Aichi, fixadas para proteger a biodiversidade e os bens e serviços de importância capital que a natureza nos oferece. Uma das características citadas desta mudança, que se requer urgente, é “a evolução dos sistemas econômicos e financeiros para desenvolver uma economia sustentável em nível mundial, que se distancie das limitações do atual paradigma do crescimento econômico”. Uma mudança de paradigma que está na mesma base da filosofia do modo de produção capitalista.
O Capitaloceno é um conceito proposto para a era geológica atual que surge como resposta ao de Antropoceno, que aponta a atividade humana sem exceção e o crescimento demográfico como responsáveis pela alteração dos ciclos geoquímicos globais. Não obstante, por ser etnocêntrico e injusto, este enfoque foi reformulado por alguns autores que defendem que a responsabilidade na alteração dos ciclos geoquímicos é das atividades humanas sob o sistema de relações socioeconômicas dominante.
A conquista da América permitiu e favoreceu o comércio mundial, robustecendo a burguesia e sua influência econômica e política. As revoluções industriais que se sucederam, a partir de fins do século XVIII, basearam-se no aumento exponencial da demanda por energia fóssil, nas invenções tecnológicas e em uma atitude receptiva em relação à evolução da técnica. O desenvolvimento da civilização moderna acelerou o crescimento da economia global e os impactos do ser humano no meio ambiente, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, permitindo um auge demográfico sem precedentes.
Apesar da inegável importância do aumento da população total sobre os recursos limitados do planeta Terra, este não é o fator mais importante, mas a voracidade energética de uns poucos. A proporção do PIB por habitante quase multiplica por dois, nos últimos dois séculos, a proporção de crescimento da população, o que significa que a crise ambiental é consequência do aumento da produção e do consumo por habitante, em vez do aumento populacional.
Um relatório da OXFAM conclui que a mudança climática está indissoluvelmente ligada à desigualdade econômica, porque está baseada nas emissões dos ricos, que afetam e afetarão em maior medida os pobres. Por exemplo, os 10% mais ricos da população mundial emitem 49% das emissões totais de Gases do Efeito Estufa, ao passo que os 50% da população mundial mais pobres emitem apenas 10% do total.
A importância de se ter ecossistemas sadios
A causa-efeito entre a destruição dos ecossistemas e a propagação de novas doenças é evidente. É o que afirmam as principais organizações internacionais dedicadas a seu estudo. A FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) publicou recentemente um relatório que avalia o estado das matas em nível global, a cada dez anos. Destaca que a extensão total das matas está diminuindo a um ritmo de 10 milhões de hectares por ano e que, desde 1990, desapareceram 420 milhões de hectares. Atualmente, ocupam 4,06 bilhões de hectares, ou seja, 31% da superfície terrestre.
Embora o ritmo de desmatamento esteja diminuindo desde 1990, são principalmente as matas nativas dos trópicos, que acumulam a maior parte da biodiversidade terrestre, que estão sendo dizimadas.
A agricultura industrial é o fator mais importante de tal desmatamento devido principalmente aos cultivos de alimentos para o gado, sintoma da necessidade de se mudar os sistemas alimentares atuais. A agricultura local de subsistência, a urbanização, a construção de infraestruturas e a mineração são as outras causas mais importantes do desmatamento.
Neste contexto, a conservação dos ecossistemas, e mais concretamente das matas nativas, se apresenta vital porque oferecem bens e serviços de um valor incalculável. Alguns de uso direto, como alimentos, fármacos e energia, e outros de uso indireto, talvez mais intangíveis, mas importantíssimos em nível global, como a purificação da água, o controle da erosão e o controle das pragas e doenças.
A biodiversidade atua controlando diversas pragas e doenças por meio de um efeito de diluição e de corta-fogo. Quando muitas espécies convivem em um ecossistema, a probabilidade de que um patógeno infecte uma espécie em concreto é menor. Além disso, o patógeno pode ver bloqueado seu desenvolvimento ao se hospedar em certas espécies onde não é capaz de se reproduzir.
As redes tróficas também equilibram a expansão exagerada de certas espécies. Ou seja, quando há muitos indivíduos de uma espécie, outras equilibram a balança, depredando-a ou parasitando-a. Isto é especialmente importante quando uma determinada espécie possui uma alta carga viral (quantidade de partícula viral que pode estar presente no sangue de uma espécie) que varia de uma espécie para outra.
Outro fator muito importante é que muitas vezes as espécies que atuam como reservatórios de vírus são generalistas, podendo se desenvolver e sobreviver em diversas condições ambientais. Desta maneira, os patógenos são regulados por um complexo equilíbrio de interações entre diferentes espécies.
No entanto, a transmissão de uma doença animal a um humano (zoonose) é favorecida quando um ecossistema é afetado por algum tipo de perturbação, como o corte de uma mata ou um incêndio, porque este equilíbrio se vê alterado. A consequência direta é o surgimento de doenças emergentes e reemergentes, em sua maioria de origem animal e potencialmente zoonóticas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que 75% das novas doenças humanas são de origem animal. Exemplos disto são a covid-19, a febre do Nilo Ocidental, a SARS de 2002 e uma longa lista de outras doenças.
A globalização provocou um enorme aumento na velocidade e no volume do tráfego de mercadorias e de viajantes, mas também de patógenos e de seus hóspedes animais.
O contrabando de animais é um negócio que movimentou, em 2019, 107 bilhões de euros e 24% das espécies de vertebrados, representando uma das principais causas da perda de biodiversidade em nível global, já que este mercado se retroalimenta com o desmatamento. A tendência global de urbanização, assim como sua expansão em detrimento das matas, aumenta não só a probabilidade de contagiar e ser contagiado, como também a exposição aos animais selvagens. A receita perfeita para uma pandemia global.
Longe de teorias conspiratórias sobre a criação artificial de uma arma biológica em forma de vírus, que não se sustentam, no sudeste asiático, todos estes fatores seguem atuando conjuntamente, há muito tempo, e posicionam um mercado de animais vivos como o cenário mais provável onde ocorreu a primeira infecção por SARS-CoV-2. Por que estas teorias não se sustentam? Dito de um modo popular, porque a natureza é mais velha que a ciência, o que significa que também é mais inteligente.
Segundo um estudo científico que discute as diferentes hipóteses sobre a origem do vírus, “é improvável que o SARS-CoV-2 tenha nascido de uma manipulação, em um laboratório, de um coronavírus causador da Síndrome Respiratória Aguda Grave”, porque a proteína do vírus que se une a um receptor celular humano está otimizada de tal modo que nem sequer pode ser prevista pelas simulações informáticas que recriam todas as possíveis modificações genéticas que poderiam ser realizadas para fabricá-la.
Sendo assim, as hipóteses mais plausíveis se baseiam na seleção natural do vírus. De um ou de vários hóspedes animais prévios à zoonose ou da seleção natural do vírus em humanos. Existe evidência de que seus hospedeiros primários são morcegos, já que estes constituem um reservatório natural de uma grande variedade de coronavírus. Ao sequenciar o genoma do morcego Rhinolophus affinis, descobriu-se um coronavírus que é 96,2% semelhante geneticamente ao SARS-CoV-2 (causador da Covid-19) e 80% semelhante ao SARS-CoV que provocou a epidemia de 2002 na China.
No Mercado de Huanan, em Wuhan (China), eram vendidos animais selvagens vivos (entre eles os morcegos) e em alguns casos exóticos, razão pela qual é muito provável que pudessem afetar outros animais no processo para acabar saltando aos humanos.
Outro fato que apoia esta hipótese é que o estresse sofrido por estes animais aumenta a probabilidade de adoecer e transmitir a doença, ao se fragilizar seu sistema imune. Até agora não é possível reconstruir 100% a história, mas entre os hóspedes intermediários estimados como possibilidades estão as serpentes e os pangolins.
Em definitivo, as crises sanitária, climática e ecológica estão intimamente relacionadas e se explicam em boa medida por um sistema capitalista que gira em torno do crescimento econômico constante, em um planeta com recursos finitos, encontrando os limites de suas próprias dinâmicas.
Parece existir um paralelismo com a pandemia da Peste Negra, mas, neste caso, a mudança de mentalidade deve resultar em um maior respeito à natureza. A Terra está enviando sinais para mudar nossa maneira de nos relacionarmos com ela.
(EcoDebate, 25/11/2020) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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