A cueca do senador e o foro privilegiado
A cueca do senador e o foro privilegiado
Artigo de Juacy da Silva
[EcoDebate] “O foro privilegiado é o guarda-chuva dos malandros de colarinho branco”, assim se pronunciou o Senador Álvaro Dias, em entrevista concedida ao programa Entrevista CNN, na madrugada/manhã de 20 de Outubro de 2020, quando a referida entrevista versava sobre o “imbroglio” do Senador Chico Rodrigues e sua cueca, recheada de dinheiro vivo.
Disse ainda o referido Senador (Álvaro Dias) que se o Senado fizer com o atual caso o mesmo que fez para salvar o mandato do então Senador Aécio Neves, a imagem daquela casa de Leis e do próprio Congresso Nacional, “ficará mais ainda no chão”.
Nossos políticos, muitos dos quais eleitos pelo voto popular e outros indicados por esses para ocuparem cargos na alta administração da República, dos Estados e Municípios, quando em campanhas eleitorais ou depois de eleitos costumam proferir inúmeros discursos, recheados de promessas para atenderem aos interesses e necessidades de seus eleitores ou então, manifestações em defesa da família, da pátria, da honra, dos bons costumes e da moralidade.
Todavia, há mais de um século, o então Senador, escritor, jurista, politico Rui Barbosa, enfim, um homem público exemplar que deixou suas marcas na história da República e nos anais do Senado, onde também tem assento o Senador Chico Rodrigues, assim pronunciou Rui Barbosa: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”. (Trecho do discurso proferido no Senado Federal, em 1914).
Confesso que, em meus quase 80 anos, pensava que já havia visto de tudo ou quase tudo em matéria de camuflagem, enrolação e formas de corrupção, mas acabei me surpreendendo com a “criatividade” do Senador Chico Rodrigues, um dos três Senadores representantes do Estado de Roraima no Senado da República.
O Brasil nos últimos anos já viu também quase tudo, incluindo prisões de ex-presidente da República; ex governadores, ex parlamentares municipais, estaduais e federais, ou parlamentares e governantes e seus auxiliares diretos sendo investigados, flagrados ou presos por envolvimento em atos de corrupção.
Mesmo com a Lei da Ficha Limpa, com a Lava-jato e com tantas operações dos Ministérios públicos Federal e estaduais, da Polícia Federal, da AGU, do TCU, das reportagens da imprensa investigativa, parece que os agentes públicos eleitos ou que participam da gestão pública não se intimidam e continuam roubando, assaltando os cofres públicos, em detrimento das necessidades da população, talvez na certeza de que a impunidade e a lentidão das decisões lhes protegerão.
Parece que cadeia continua sendo para ladrão de galinha, aquele que rouba uma lata de doce ou algum outro produto de pequeno valor em um supermercado, como se costuma dizer, criminosos de colarinho branco continuam zombando da “cara” da justiça e do povo brasileiro.
A corrupção chegou a tal ponto que um Juiz Federal ficou superconhecido como o “juiz lalau” por ter roubado preciosos recursos da construção de um edifício público em São Paulo, o mesmo acontecendo com um senador ( hoje ex senador) que perdeu o mandato e que trocou seu suntuoso gabinete no Senado por uma cela na Papuda (penitenciária de Brasília).
Dois ex governadores do Rio estão trancafiados na cadeia há alguns anos e tudo leva a crer que, mesmo não tendo prisão perpétua no Brasil, terminarão seus dias na prisão, sendo que um deles, o ex governador Sérgio Cabral já foi condenado a mais de 200 anos de prisão.
Lembro-me também de uma cena que, se não fosse dantesca seria hilariante, de um assessor do então presidente Temer, saindo correndo (literalmente) de uma pizzaria com uma mala, de rodinhas, cheio de dinheiro ou de um assessor de um deputado do PT, também flagrado com dinheiro vivo na cueca ao embarcar em um aeroporto.
Um ex-deputado, que já havia sido ministro de vários governos , depois vice-presidente da Caixa Econômica Federal e um verdadeiro “manda chuva” do então PMDB da Bahia, sendo pego com a “boca na botija” com diversas malas e caixas de papelão onde estavam mais de 55 milhões de reais em espécie.
Não podemos também nos esquecer do ex presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha, que foi figura central no processo de impeachment da então presidente Dilma Roussef e que cumpre pena em regime fechado por envolvimento com a corrupção.
Em Mato Grosso, que `a semelhança do Rio de Janeiro e outros Estados, a corrupção há poucos anos atingiu todos os níveis de governo, tendo levado `a prisão um ex governador, um deputado estadual que por quase duas décadas era o “dono” da Assembleia Legislativa e diversos secretários estaduais, tudo por envolvimento com a corrupção, tão amplamente divulgado pelos órgãos de comunicação, por meses a fio.
Os Tribunais de Contas que tem por missão fiscalizar e controlar as contas públicas dos Estados e Municípios também, volta e meia, tem sido envolvidos em escândalos como o de Mato Grosso que já teve diversos de seus integrantes afastados por suspeitas de corrupção. Em certo momento, nada menos do que 5 dos sete conselheiros titulares ficaram afastados e continuam sendo investigados e o do Rio de Janeiro que também, com frequência, tem estado envolvido em denúncias de corrupção.
A corrupção tem chegado até mesmo `a esfera do Poder Judiciário, como já aconteceu em vários estados, como Mato Grosso e mais recentemente, no Tribunal de Justiça da Bahia. Enquanto escrevo este artigo o Tribunal de Justiça está votando o afastamento de um Juiz, acusado de vender sentença, pela bagatela de 10% do valor das causas.
Na mesma toada do Senador Chico Rodrigues, também diversos deputados estaduais de Mato Grosso há poucos anos, inclusive um então deputado e que atualmente tenta a reeleição como prefeito de Cuiabá, foram flagrados recebendo grana viva, dinheiro da corrupção, denunciados pelo então ex- governador que tentava aliviar sua condenação, sendo que um desses, ao colocar o dinheiro no bolso do paletó, deixou cair alguns pacotes e até sorriu.
Lembro-me também do caso de um casal de pastores evangélicos que foram presos em Miami por terem uma “pequena” importância, em torno de US$55 mil dólares, dentro de uma bíblia, que era oca, ou seja, não era o Livro Sagrado, mas uma caixa oca na capa de uma suposta bíblia. Por este ato ficaram mais de um ou dois anos presos nos EUA.
Em plena era da informática, da era das operações digitais, das transferências eletrônicas de valores, fica complicado, ininteligível, inexplicável como um Senador da República, que é amigo antigo do atual Presidente da República, desde os tempos em que os dois eram deputados federais e participavam do chamado “baixo clero”, pode dar a desculpa esfarrapada de que tinha colocado alguns milhares de reais, alguns pacotes de dinheiro vivo na cueca para efetuar pagamentos a funcionários.
Do relatório da Polícia Federal, que embasou a decisão do Ministro Barroso, do STF, por afastar o referido senador por 90 dias, consta o seguinte: “Segundo a Polícia Federal, durante as buscas realizadas pela corporação no imóvel, Rodrigues pediu para ir ao banheiro. O delegado afirmou que o acompanharia. Diante do volume e formato observados na bermuda do parlamentar, a equipe de investigadores decidiu questioná-lo. Ele “ficou bastante assustado e informou que não havia nada”. Após a negativa, o delegado decidiu revistá-lo Quando foi encontrado no interior de sua cueca, próximo às suas nádegas, maços de dinheiro que totalizaram a quantia de R$ 15 mil. Ao ser indagado pela terceira vez, com bastante raiva, enfiou a mão em sua cueca e sacou outros maços de dinheiro”, afirma o policial na descrição.”
Diante deste fato inusitado, fiquei curioso e fui procurar informações sobre as origens da cueca, como surgiu esta peça íntima do traje masculino e para que servia ou ainda serve e se entre suas utilidades consta a guarda de dinheiro vivo como fazia o Senador Chico Rodrigues.
De acordo com o site de busca Wikipedia “Cuecas (coloquialmente também chamadas pelo singular cueca) são peças da indumentária usada para cobrir e proteger os órgãos sexuais” e esta definição é expandida para “A palavra (cueca) deriva de “cu”, de origem no latim vulgar culus que significa ânus e de “eca” do grego eco que significa domicílio”, ou seja, é uma peça íntima da indumentária masculina para proteger órgãos que não devem estar expostos ao público, como acontecia com povos primitivos.
Segundo essas mesmas fontes descobrimos que: “O exemplo mais antigo dessa peça da roupa íntima masculina data dos homens das cavernas.” Mas, com certeza, essas cuecas primitivas evoluíram e acabam chegando `a atualidade como instrumento de operações financeiras, como ocorreu com o Senador Chico Rodrigues.
Li tudo o que consegui encontrar sobre as funções da cueca e não encontrei nenhuma referência, nem mesmo das cuecas samba-canção, que por serem mais folgadas poderiam comportar algum bolso escondido onde se possa guardar dinheiro.
Ao longo de anos temos visto e ouvido através dos meios de comunicação de pessoas que transportam drogas (mulas) que engolem pequenos envelopes de plástico com cocaína como forma de burlar a fiscalização e depois tomam purgante para “evacuarem” os pacotinhos de drogas.
Também temos notícias de que mulheres ao visitarem parceiros presos escondem celulares, carregadores ou drogas nas partes íntimas para burlarem a fiscalização carcerária. Mas eu nunca ouvi falar de alguém que tenha usado a cueca para transportar ou esconder dinheiro vivo.
Antigamente, dizem os mais velhos do que eu, moradores da área rural escondiam dinheiro em espécie em baixo dos colchões, como maneira de evitarem a ação de ladrões, mas, de forma semelhante, nunca escondiam dinheiro na cueca.
Ora, não consigo entender porque o nobre senador não usa o sistema bancário, como também parece ser prática de alguns integrantes da família Bolsonaro que negociam imóveis de alto valor pagando tudo em dinheiro vivo ou os famosos depósitos em espécie que o ex assessor do então deputado estadual do RJ e hoje Senador Flávio Bolsonaro realizava na boca do caixa de bancos existentes na Assembleia Legislativa daquele estado, segundo consta das informações públicas nas investigações das “rachadinhas” na Assembleia Legislativa daquele estado.
Não podemos deixar de lembrar que o Senador Chico Rodrigues é amigo pessoal do Presidente Bolsonaro, chegando este (o Presidente) a confessar de público que já gozavam de uma “união estável”, tamanha é (ou era) esta amizade que foi escolhido por Bolsonaro para ser seu vice-líder no Senado (um dos, já que o governo tem vários vice-líderes em cada Casa Legislativa Federal).
Diante dos fatos e da repercussão negativa não apenas para a sua figura de um senador da República como uma maneira de emporcalhar a imagem daquela Casa de Leis, um dos símbolos mais emblemáticos de nosso país e da República, coube ao senador tentar apresentar suas “explicações” para o inexplicável, ou como dizem, quando um marido é pego com a boca na botija traindo a esposa e não tem como explicar a mancha de batom na cueca, sempre a maldita cueca!
Mesmo assim, o “nobre” Senador da República passou a difundir a narrativa de que o dinheiro vivo escondido em sua cueca era para pagamento de funcionários, empregados. Explicação estranha e pouco convincente, vinda de um senador, que há alguns meses proferiu um eloquente discurso da tribuna do Senado, da mesma tribuna (figuradamente, é claro) de onde Rui Barbosa e outros ilustres senadores ao longo da história deixaram seus nomes inscritos de forma indelével nos anais daquela Augusta Casa de Leis, condenava enfaticamente a corrupção de governos passados e, ao mesmo tempo, exaltava a ação do atual governo, do qual até há poucos dias, era um vice-líder de peso.
Lembro-me também de outro exemplo de um senador que brandia suas armas verbais (discursos em defesa da moralidade, contra a corrupção e o crime organizado) e acabou sendo descobertas suas ligações com o crime organizado/contravenção no Estado de Goiás e acabou sendo cassado. ou do então líder do Governo Dilma, o então Senador Delcídio Amaral que também foi cassado por seus pares por atos de corrupção.
Em boa hora o Ministro Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou o afastamento do senador Chico Rodrigues, por 90 dias, até que as investigações sejam concluídas. Ato contínuo, para não sofrer críticas de que sua decisão represente alguma forma de arbítrio, por ser uma decisão monocrática, o referido ministro solicitou que sua decisão de afastar o Senador Chico Rodrigues, seja discutida e decidida pelo pleno da mais alta instância do poder judiciário brasileiro.
Ai, surge mais um “embróglio”, que é o fato de que tal afastamento ou até mesmo a cassação do mandato do Senador Chico Rodrigues por quebra do decoro parlamentar, como já requereram alguns partidos no Senado, depende de uma decisão “soberana” do Senado da República, que, em algumas oportunidades, tem agido seguindo um verdadeiro “espírito de corpo”, protegendo um de seus integrantes, mesmo que os fatos e a opinião pública indiquem que tal corporativismo mancha a imagem do Senado e desmoraliza ainda mais o Poder Legislativo perante a população.
Todavia, como o Senador Chico Rodrigues faz parte dos quadros do DEM, mesmo partido dos presidentes do Senado, da Câmara Federal e do presidente da Comissão de Ética do Senado, partido que faz parte da base de apoio do Governo Bolsonaro, parece que estão tentando colocar “panos quentes” e salvar a pele do citado senador, como aconteceu em passado recente quando o Senado, de forma vergonhosa, para sua história, salvou o mandato do então senador Aécio Neves, também acusado e investigado por corrupção.
Mais curioso ainda nesta história, além do senador guardar dinheiro vivo, dinheiro sujo pela origem e pelas circunstâncias e local de guarda, o suplente do senador, em caso de afastamento do mesmo ou de perda de mandato, é ninguém nada menos e nem mais do que seu próprio filho, aliás prática nefasta, nada ética para partidos e para um país que fala tanto de democracia, ética na politica, espírito republicano e outros ufanismos verborrágicos.
Resta saber se esta prática de guardar dinheiro vivo na cueca não seja algo que, `a semelhança de tantas outras virtudes, passe de pai pra filho, só nos resta aguardar para conferir. Pela entrevista recente do Senador Jaime Campos, DEM/MT, presidente da Comissão de Ética do Senado, parece que tudo, pelo menos no âmbito do Senado, vai acabar em pizza, a Pizza da Cueca.
É muito triste para quem vive em um país fustigado pelo coronavírus, pelo desmatamento, pelas queimadas, pela falência do sistema público de saúde, por elevados índices de desemprego e subemprego, pelo aumento da pobreza, da fome, da miséria e agora, como os dados do último Atlas da Violência demonstram que esta novamente voltou a aumentar no Brasil, termos que continuar convivendo em meio a práticas de corrupção, quando agentes públicos, incluindo ocupantes de altos cargos eletivos e seus subordinados (secretários e assessores) serem presos por roubalheira aos cofres públicos.
E pensar que a narrativa dos atuais donos do poder e seus apoiadores seja a tentativa de demonstrar que a velha politica, do toma lá, dá cá, é coisa do passado, dos governos do PT e seus aliados de então. Só que inúmeros daqueles que agora estão ao lado do Governo Bolsonaro, vários dos quais foram ou são investigados por corrupção, em passado recente também apoiaram os governos que ora criticam, como ocorre com parlamentares do Centrão e outros partidos que apoiam o Governo Bolsonaro.
Lamentável, uma vergonha que denigre a imagem da politica, do Senado da República, do Congresso Nacional e do Brasil, interna e internacionalmente.
Se tudo acabar em pizza da cueca, vai ser difícil acreditarmos em nossos representantes, principalmente no Poder Legislativo, tão mal avaliado há muito tempo pela opinião pública, consiga construir uma nova imagem.
Em nome da cidadania, da moralidade, da ética e da transparência na gestão pública não se pode permitir que se confunda imunidade parlamentar com impunidade parlamentar, afinal, como consta da Carta Magna da República “todos são iguais perante a Lei” e que ninguém está acima da Lei, pouco importa o cargo ou função que ocupe, isto sim, é o fundamento de um verdeiro estado democrático de direito, o resto é lero lero!
JUACY DA SILVA, professor universitário, fundador, titular e aposentado UFMT, sociólogo, mestre em sociologia, articulista de alguns veiculos de comunicação. Email profjuacy@yahoo.com.br Twitter@profjuacy
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 20/10/2020
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