Não basta ser antissexista e antirracista, é preciso ser antiespecista
Não basta ser antissexista e antirracista, é preciso ser antiespecista
“A mentira é o único privilégio do ser humano sobre todos os outros animais”
Fiódor Dostoiévski (1821-1881)
“A libertação animal também é uma libertação humana”
Peter Singer (1946 – )
Artigo de José Eustáquio Diniz Alves
[EcoDebate] Hoje em dia julgamos e condenamos os erros históricos daqueles personagens do passado que cometeram crimes e promoveram discriminação com base na raça e no sexo das pessoas em geral e, em particular, das vítimas do processo de colonização. Atualmente derrubamos estátuas de ícones racistas e sexistas e boicotamos as obras e as iniciativas com traços racistas ou sexistas.
Fazer uma revisão histórica é fundamental. Todavia, condenar os erros originários do passado é mais fácil do que perceber as práticas equivocadas que vem de tempos imemoriais até o presente. Assim, não basta reclamar, pois temos que imaginar como as gerações futuras vão avaliar os erros das gerações atuais e os nossos próprios pontos cegos morais.
Provavelmente, as gerações futuras questionarão a nossa dieta atual que é responsável por um complexo processo gerador de uma grande crueldade contra os animais e o nosso atual estilo de vida e crescimento demoeconômico que são responsáveis pela aceleração da 6ª extinção em massa das espécies.
Por exemplo, no livro “A sexta extinção”, a jornalista Elizabeth Kolbert lança mão de trabalhos de dezenas de cientistas nas searas mais diversas e vai aos lugares mais remotos para mostrar como o ser humano alterou a vida no planeta como absolutamente nenhuma espécie o fizera até hoje. Ela apresenta ao leitor doze espécies, algumas desaparecidas, outras em vias de extinção, como amostra da quantidade inigualável de animais que estão desaparecendo bem diante de nossos olhos. Ao mesmo tempo, a jornalista traça um panorama de como a extinção tem sido entendida pela humanidade nos últimos séculos. Kolbert mostra que a sexta extinção corre o risco de ser o legado final da humanidade e nos convida a repensar uma questão fundamental: o que significa ser humano?
Já Justin McBrien, em artigo no site Truthout (14/09/2019), mostra que as atrocidades que se desenrolam nos diversos biomas da Terra não tem nenhum análogo geológico e chamá-lo de “sexta extinção em massa” é fazer com que, aquilo que é uma erradicação ativa e organizada, pareça algum tipo de acidente passivo. Estudos que mostram o “apocalipse de insetos”, a “aniquilação biológica” ou o “holocausto biológico” confirmam a perda de 60% de todos os animais selvagens nos últimos 50 anos. A humanidade já ultrapassou diversas “fronteiras planetárias” e está promovendo uma “Grande Morte” no Planeta. Não se trata de uma erupção vulcânica de grandes proporções, a caída de um asteroide gigantesco ou a liberação lenta de oxigênio na atmosfera devido à fotossíntese das cianobactérias. Ele diz: “O que acontece atualmente é o 1º Evento de Extermínio, que está levando a Terra à beira do NECROCENO, a era da nova morte necrótica”.
A Revista científica Science (25/07/2014) fala em defaunação em larga escala. Assim, a escravidão animal e o extermínio das espécies não humanas, indubitavelmente, culminará e reverterá no extermínio dos próprios seres humanos.
Outra questão ética refere-se à crueldade imposta aos animais pela agropecuária industrial que causa sofrimento generalizado às espécies domesticadas para produzir proteínas baratas e abundantes para satisfazer a gula e o apetite da humanidade. Milhões de seres sencientes são sacrificados todos os minutos, horas e dias para produzir proteínas animais. A Ecologia Profunda diz que os animais possuem direitos intrínsecos e não devem ser encarrados como instrumentos para a satisfação humana.
Há que se registrar que mais de 200 milhões de animais são mortos por comida em todo o mundo todos os dias – apenas em terra. Incluindo peixes capturados e criados na natureza, chegamos a um total próximo de 3 bilhões de animais mortos diariamente. Isso representa 72 bilhões de animais terrestres e mais de 1,2 trilhão de animais aquáticos mortos por alimentos em todo o mundo a cada ano (Zampa 2020). Ou seja, bilhões de animais passam por situações de estresse e de sofrimento desnecessário antes e durante o seu abate. Como Paul McCartney costuma dizer: “se matadouros tivessem paredes de vidro, todos seriam vegetarianos”.
O livro “Libertação Animal”, do filósofo Peter Singer, de 1975, foi uma das primeiras obras de grande repercussão a expandir o princípio da igualdade na consideração da dor e do sofrimento às espécies não humanas. Singer assume uma postura ética que inclui os animais, pois todos os seres sencientes devem receber um tratamento que evite as circunstâncias dolorosas. Assim, devemos agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar possível, não só para os animais humanos, mas para todos os seres que possuem faculdade de sofrer.
Por sua racionalidade e livre-arbítrio, os seres humanos têm deveres morais em relação à preservação da biodiversidade e na defesa do direito fundamental das outras espécies à vida, evitando a escravidão e o sofrimento animal. Singer batizou de “especismo” o preconceito e o mal trato contra as espécies não humanas. O livro de Singer, fundado numa ética biocêntrica, inspirou o surgimento de um movimento global pelo abolicionismo animal e pelo fim da exploração dos seres sencientes não humanos. A libertação animal defende: a eliminação do mau trato animal; o fim do enjaulamento; o fim dos rodeios, das touradas e das corridas de cavalo; o fim dos aquários e dos zoológicos; o fim do uso de animais nos circos; o fim da experimentação animal; a adoção da dieta e da filosofia vegana, etc.
Como escrevi há cerca de uma década (Alves, 28/12/2011), além de combater o sexismo, o racismo, a xenofobia e a homofobia é preciso combater o especismo: “Ou seja, é preciso colocar um fim ao especismo. Os Direitos Humanos não podem estar em contradição e em conflito com os direitos da Terra e os direitos da biodiversidade. A humanidade precisa saber utilizar a sua racionalidade, não para a dominação e a exploração predatória da Terra e das demais espécies vivas, mas é preciso saber utilizar a razão para a convivência pacífica e harmoniosa entre todos os seres vivos do Planeta”.
A sociedade brasileira precisa abandonar a hipocrisia e reconhecer que é extremamente racista, sexista e especista.
As gerações futuras vão julgar o nosso compromisso ético atual nestas três áreas. Para enfrentar este conjunto de discriminações, não basta ser antirracista e antissexista é preciso também ser antiespecista.
José Eustáquio Diniz Alves
Colunista do EcoDebate.
Doutor em demografia, link do CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
ALVES, JED. Classicismo, sexismo, escravismo, racismo, xenofobismo, homofobismo e especismo, Geledés, 28/12/2011
KOLBERT, Elizabeth. A sexta extinção: uma história não natural, Intrínseca, 2015
Matt Zampa. How Many Animals Are Killed for Food Every Day?, Sentient media, 01/03/2020
Vanishing fauna. Science. Special Issue, 25 July 2014
http://www.sciencemag.org/site/special/vanishing/index.xhtml
Justin McBrien. This Is Not the Sixth Extinction. It’s the First Extermination Event. Truthout, 14/09/2019
https://truthout.org/articles/this-is-not-the-sixth-extinction-its-the-first-extermination-event/
SINGER, Peter. Libertação Animal. Editora WMF Martins Fontes, 2010
Vídeos mostrando os impactos negativos da humanidade sobre o Planeta e a escravidão animal:
Ética e Direitos Animais – Sônia T. Felipe
http://www.youtube.com/watch?v=EK0hVSpHn_I
A Carne é Fraca – documentário completo
http://www.youtube.com/watch?v=g0VoeRNEKnE
“Carne Sofriboi”, do chargista Maurício Ricardo
http://studiopegasus.blogspot.com/2015/02/animacao-2d-em-carne-sofriboi-chargista.html
Documentário “Linha de Desmontagem”
http://www.youtube.com/watch?v=BYHel1oZ62o
Se os abatedouros tivessem paredes de vidro – com Paul McCartney (dublado em português)
https://www.youtube.com/watch?v=4fBBX10kCnc
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 28/08/2020
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