A sociedade ainda não percebeu a extensão e a urgência do colapso ecológico
A sociedade ainda não percebeu a extensão e a urgência do colapso ecológico
“Não tem mais mundo pra todo mundo”, diz Deborah Danowski
A filósofa, que pesquisa há anos “a quebra da relação do homem com o mundo”, diz que a pandemia foi “uma pancada”, mas a sociedade ainda não percebeu a extensão e a urgência do colapso ecológico, em parte pela ação dos negacionistas financiados pela elite
Por Marina Amaral, Agência Pública
Deborah Danowski não é apenas professora, doutora e pós-doutora em filosofia. Ela é uma das maiores estudiosas do aquecimento global, ou do colapso ecológico, como ela prefere, e militante ambiental aguerrida. Com o companheiro, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, divide alguns cursos na pós-graduação Pós-Graduação da PUC, e a autoria de um livro que vem dando muito o que pensar. Lançado em 2014, “Há um mundo por vir: ensaio sobre os medos e os fins” é uma espécie de ensaio-provocação sobre a ruptura do homem com o mundo, que está por trás da destruição do planeta em ritmo assustador. As ficções distópicas no cinema, nas séries de TV, nos livros, as versões de “fins dos mundos” que imaginamos, são uma maneira de expressar a percepção desse colapso, diz Deborah, embora a humanidade esteja longe de perceber a urgência e a extensão dessa catástrofe, da qual a atual pandemia é uma pequena amostra.
Para a filósofa, porém, lembra o que disse Bruno Latour, a elite financeira, política e econômica do planeta, sabe muito bem do que está acontecendo e mente para se proteger. Ela chama a atenção para a desigualdade de efeitos do colapso ecológico sobre as populações, como está acontecendo com o coronavírus. “O aquecimento global é democrático como se diz que a pandemia é democrática, isto é, no sentido de que todos, pobres e ricos, são ou serão atingidos. Mas nenhuma das duas coisas é democrática em relação a quem tem mais capacidade de se proteger, ou meios para reagir, como, no caso da pandemia, o acesso à saúde”.
Pensadora inquieta, Deborah concluiu no ano passado seu segundo pós-doutorado na PUC-SP – o primeiro foi concluído em 2001, junto à Universidade de Paris IV (Panthéon-Sorbonne). O tema de sua pesquisa “Negacionismos” não poderia ser mais relevante no mundo e, especificamente, no Brasil de Bolsonaro – adepto do negacionismo em relação à pandemia – “uma gripezinha” -, à ditadura militar e até dos fatos, com seu desprezo pelo jornalismo e pela ciência. “Tem pessoas que dizem que a Terra é plana, que a ditadura militar não existiu no Brasil, ou que a Globo é comunista, que os nazistas eram de esquerda, que a cloroquina cura sem sombra de dúvida, enfim a lista é longa. Não pode ser por acaso que todas essas coisas se juntaram neste governo e, embora eu tenha estudado um pouco esse fenômeno, ele continua sendo um mistério para mim; porque não são só esses absurdos que são ditos sabe-se lá por quais interesses, são as pessoas que acreditam neles, e que seguem o que o presidente e seus ministros dizem”.
Confira a entrevista.
Você estuda os fins dos mundos e fala também de como essa ideia se traduz culturalmente nas distopias produzidas em filmes, livros, séries. Um dos trechos do Há um mundo por vir: ensaio sobre os medos e os fins?, o livro que você escreveu com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, cita uma dessas catástrofes imaginadas na ficção, a do “supervírus letal”. Como você recebeu a notícia dessa pandemia?
Pois é, mas foi uma menção muito rápida. A gente mencionou o vírus letal, e inclusive poderíamos acrescentar o vírus zumbi, né? [rs]. Brincadeiras à parte, Eduardo e eu falamos do vírus letal dentro desse quadro que a gente chamou de imaginações do fim do mundo. E, embora eu tenha passado anos em torno dessa questão do colapso ambiental, do fim do mundo, e as várias formas desse fim do mundo – mundo sem gente, gente sem mundo, antes e depois do mundo presente –, que foi como a gente começou a pensar as variações possíveis nas imaginações sobre a quebra dessa relação do homem com o mundo, pois na verdade é sobre isso que é o livro, eu tenho que confessar que nunca levei muito a sério esse tipo de coisa – meteoro, vírus letal, guerra bacteriológica – justamente porque já é tão grande o colapso ecológico que isso ocupava minha mente o tempo todo. Então foi uma surpresa pra mim também. E as primeiras notícias vinham cheias de adversativas, diziam que o novo coronavírus não era tão grave assim, que não se espalhava tão rápido quanto o sarampo, então minha primeira tendência foi não prestar atenção. Mas, pra mim, foi muito rápida essa passagem de não prestar atenção a perceber que era uma coisa séria. Já outras pessoas demoraram mais a se dar conta. Há graus diferentes de velocidade com que as pessoas vão se dando conta e vão entendendo que aquilo é real. A minha universidade, por exemplo, demorou um pouco a fechar, dei aulas com 40 alunos, com 60 alunos, e naquele momento eu já sabia que era sério. Tem graus de velocidade com que as pessoas vão se dando conta e vão entendendo que aquilo é real. Acho que isso é muito parecido com a demora maior ou menor com que as pessoas se dão conta do colapso ecológico.
O colapso ecológico é o seu tema principal de estudo. Quando soube da pandemia, você ligou o surgimento do novo coronavírus a essa catástrofe maior? Você acha que as pessoas estão fazendo essa ligação?
Pra mim, sim, era evidente. Não só a origem, mas a forma e a rapidez da disseminação do vírus, que tem a ver com a movimentação das pessoas e produtos, com o transporte global, com o desmatamento, com a agroindústria, com a forma como a gente está vivendo. O colapso ecológico não se resume à mudança climática, são vários parâmetros ou limites planetários; e, se um deles cai, se um deles é ultrapassado, tudo cai junto, é que nem um dominó. E o vírus está dentro desses subsistemas ecológicos, que constituem e sustentam a biosfera. Então, quase imediatamente eu me dei conta e, em seguida, percebi a proximidade desse processo pelo qual as pessoas recebem as notícias da pandemia e do colapso ecológico e respondem ou não a ela.
Claro, há algumas diferenças muito grandes, a começar pela velocidade do próprio acontecimento. A pandemia, em um, dois, três meses aqui no Brasil, já tinha assolado tudo, enquanto a mudança climática é bem mais gradual: a temperatura está aumentando, os eventos extremos estão mais frequentes e fortes, as secas, as tempestades, um pouco aqui, um pouco ali, e os fenômenos não acontecem na mesma velocidade e da mesma forma no mundo inteiro. Então isso permite que as pessoas afastem de si, enquanto podem, esse pensamento, esse perigo, porque é algo muito mais lento e demorado. Mas temos nos dois casos o mesmo processo de recusa do que está acontecendo, de negação, de dizer “não é tão grave”, “é só uma gripezinha”, “vai ter um remédio que vai nos curar, a vacina vai chegar a tempo”, “alguém vai fazer alguma coisa”. E aqui, no Brasil, a gente está percebendo claramente que ninguém vai fazer nada; ou melhor, somos nós mesmos que estamos fazendo, nós que temos que fazer, a sociedade civil, os coletivos, os grupos, ONGs, laboratórios, universidades, artistas, porque do outro lado, do lado do Estado, que hoje virou um poder de milicianos, só encontramos a tentativa de nos impedir, de nos barrar.
E o que é especialmente trágico, cruel, além das mortes, é esse isolamento que a gente é obrigada a fazer, que necessariamente bate em todo mundo e de uma maneira violenta porque não dá nem pra gente enfrentar adequadamente esse governo de loucos. A resistência existe. Por exemplo, tem esse movimento incrível de pessoas que estão se juntando para ajudar, os coletivos, uma porção de grupos da sociedade civil que estão se organizando; as pessoas estão indo lá, enfrentando a pandemia com seus próprios corpos, mas é muito difícil enfrentar o que está acontecendo sem poder ver as pessoas, falar com as pessoas, tocar nas pessoas.
Aproveitando o gancho da recusa de aceitar a gravidade da pandemia, o colapso ecológico, você pesquisa o negacionismo também, não é? Como você vê esse duplo negacionismo do governo, de um lado um presidente que nega fatos históricos, nega a ditadura militar, de outro a negação da gravidade da pandemia, da ciência?
Eu me interessei pela questão do negacionismo por ter me acontecido várias vezes de debater com pessoas, inclusive com pessoas de esquerda, pessoas da academia, que simplesmente não acreditavam no aquecimento global: “Isso é aquecimentismo, isso é Hollywood, isso são os países desenvolvidos querendo impedir o Brasil de se desenvolver”. E fui percebendo que existem vários graus e várias maneiras de se negar. Desde Olavo de Carvalho, que diz que a Terra é plana, Trump, que diz que o aquecimento global é uma bobagem ou um complô da China, ou as pessoas que são pagas pelas indústrias de combustíveis fósseis – porque o grosso do negacionismo é financiado, como aconteceu também com a invasão de fake news na época das eleições –; desde esse tipo de gente, então, até ecologistas, pessoas que há anos trabalhavam em defesa da preservação do meio ambiente e da justiça ambiental, mas que, quando se viam diante do problema do aquecimento global, tinham como que um obstáculo epistemológico, para usar o termo do [Gaston] Bachelard. Isso não cabia dentro das suas estruturas mentais. E algo parecido se passa com pessoas que pensam “ah, tem sim, mas isso alguém vai resolver, vão inventar uma tecnologia” e até com nós mesmos, que não conseguimos pensar nisso o tempo todo e que portanto também negamos uma boa parte do tempo.
Então eu achava esse negacionismo um mistério, e um pouco até pra me defender do estado de espírito em que eu ficava quando debatia com alguém sobre isso, com alguém que negava, um dia eu pensei: “Vou dar um curso sobre isso”. E comecei desdobrando a negação em várias modalidades, passando por conceitos da psicanálise, da filosofia, e retrocedi até o Holocausto. Porque o termo “negacionismo” – isso é importante – passou a ser usado com um sentido semelhante a partir de 1987 pelo historiador francês Henry Rousso, pra denunciar os revisionistas do Holocausto, que diziam que não tinha havido campos de extermínio, que não tinha havido genocídio de judeus etc.
E esse negacionismo do passado, com fatos históricos registrados em documentos, depoimentos, assim como acontece aqui com a ditadura, é mais difícil de entender do que a recusa do aquecimento global, que é em relação ao futuro.
Pois é, justamente. Se a pessoa é paga pra isso até dá pra entender, e se a pessoa tem interesses econômicos, políticos ou religiosos, isso também é, digamos assim, compreensível. Mas e quando isso não existe? Porque, no caso do Holocausto, há documentos provando, testemunhas, histórico das indústrias que fabricaram o gás Zyklon B e que continuam existindo até hoje. Por que esses empresários colaboraram com o regime nazista? Por que algumas dessas empresas continuam existindo? Acho bem interessante essa comparação que você faz entre negar o passado e negar o futuro. Porque o aquecimento global já está acontecendo, e nesse sentido ele é presente e passado, mas a grande negação é de que isso vá explodir, com uma dimensão muitíssimo maior do que a pandemia da Covid-19, num futuro próximo, e vai atingir todos nós, ou pelo menos nossos filhos e netos, vai atingir todos os povos, incluindo aqueles que menos emitem dióxido de carbono e outros gases de efeito estufa. Porque o aquecimento global é democrático, como se diz que a pandemia é democrática, isto é, no sentido de que todos, pobres e ricos, são ou serão atingidos. Mas nenhuma das duas coisas é democrática em relação a quem tem mais capacidade de se proteger, ou meios para reagir, como, no caso da pandemia, o acesso à saúde.
Mas voltando à comparação entre o negacionismo do passado e do futuro. Tem muita coisa diferente nessas duas formas, mas muita coisa parecida também. Existe um texto excelente, bastante conhecido, da Shoshana Felman, “In a era of testimony”, sobre o Shoah, aquele filme maravilhoso do Claude Lanzmann, de 1985, que tem quase nove horas e foi feito só com testemunhas do Holocausto, em que ele leva as testemunhas, em sua maioria sobreviventes dos campos, para aqueles mesmos locais na Polônia e força uma espécie de reencenação: ele vai fazendo perguntas, e em alguns momentos ficamos até incomodados com isso, porque ele força as pessoas a falar, a se lembrar, mesmo contra a vontade delas, porque quer construir uma memória. E a Shoshana Felman analisa esplendidamente esse filme e mostra como o Lanzmann se baseia, em parte, numa distinção feita pelo historiador Raul Hilberg no livro A destruição dos judeus europeus, entre três tipos de personagens do Holocausto:– perpetradores – nazistas –, vítimas – judeus – e espectadores – os poloneses que viviam ao redor dos campos ou nas aldeias próximas. Então são três tipos de testemunhas que aparecem no filme: os sobreviventes judeus, os nazistas – que ele filma escondido – e os poloneses, que dizem que não tinham nada contra os judeus e que eram proibidos pelos nazistas de olhar, mas que, quando levados pelas perguntas de Lanzmann a falar um pouco mais, percebemos que conheciam muitos detalhes do que se passava, ouviam os gritos, sabiam para que serviam os trens, e não haviam feito nada.
Inspirada nesse texto, pensei: “Eu posso começar trazendo para a questão do aquecimento global essas três posições”. Só que eu inseri mais um termo nessa comparação: os animais criados e mortos nas grandes fazendas-fábricas; porque vários já chamaram de genocídio, e mesmo de Holocausto, aquilo que fazemos com esses animais, mas vamos deixar essa questão de fora aqui. Pois bem, eu percebi que essa transposição das três posições de Hilberg funciona para o aquecimento global, porque você tem as vítimas da crise ecológica, começando com os animais e as plantas, já que estamos causando a sexta grande extinção em massa da história da vida na Terra, numa taxa que, dizem alguns, é de até mil vez o número de espécies que normalmente são extintas no curso da evolução; e evidentemente há as vítimas humanas, porque o colapso ecológico vai atingir todo mundo, embora, em primeiro lugar e mais fortemente, as pessoas mais pobres, as mesmas que estão morrendo mais devido ao coronavírus, não é? Então temos as vítimas, os perpetradores, que nesse caso podem ser as grandes empresas de combustíveis fósseis, as empresas de processamento de carne, a Monsanto, as mineradoras, o sistema financeiro; e podemos ir desdobrando até onde a gente quiser: há os maiores poluidores e devastadores – alguns estudos falam em 20 empresas que são responsáveis por um terço de todas as emissões globais de carbono; outros falam em 100 grandes companhias que, sozinhas, são responsáveis por 70% das emissões –, mas a partir daí você pode ir descendo. E temos os espectadores, que somos todos nós no fim das contas, porque somos ao mesmo tempo vítimas e espectadores – quando não somos perpetradores. E, assim como os poloneses em relação aos judeus, nós não fazemos quase nada, fazemos muito pouco. Continuamos vivendo como se houvesse amanhã, como se estivesse tudo bem. A pandemia bateu forte porque a gente não pode, pelo menos neste momento, continuar vivendo como estava vivendo. Até a Rede Globo foi forçada a dizer: tem alguma coisa errada; tem que ter um sistema de saúde que proteja todo mundo, tem que ter uma renda básica pra todo mundo.
Voltando às três posições: como mostrou muito bem a Shoshana Felman, elas não são apenas três perspectivas sobre o que estava acontecendo, três maneiras de ver, elas também são três maneiras de não ver. Nem mesmo as vítimas tinham a noção da totalidade do que estava acontecendo; os perpetradores tinham que esconder, impedir os outros de ver e dizer, e os espectadores eram impedidos de olhar, viam pelas frestas, digamos assim. E é um pouco o que acontece com a gente em relação ao aquecimento global.
Os espectadores são mais negacionistas que os demais? Porque, se eles não estão nem de um lado nem de outro, poderiam ver melhor, não? Por que eles negam o que estão vendo?
Sim, acho que você tem razão, e é exatamente aí que a coisa começa a ficar mais difícil de entender. É talvez a “zona cinzenta” de que falava o escritor italiano, sobrevivente de Auschwitz, Primo Levi. No filme de Lanzmann, os espectadores trazidos à cena são poloneses e alguns alemães. E embora eles dissessem que o que aconteceu foi horrível, e que eles gostavam dos judeus etc., não hesitaram, por exemplo, em pegar para si as casas dos judeus que foram levados pros campos. E quando, por exemplo, Lanzmann leva Simon Srebnik – que sobreviveu porque tinha uma voz muito bonita e os alemães gostavam de ouvi-lo cantar – para a aldeia onde ele vivia, os antigos moradores de início festejaram a sua volta, mas, conforme eles vão falando – respondendo às perguntas do diretor –, vai se revelando todo o preconceito e toda a raiva que eles tinham dos judeus na época. Isso pra dizer que os espectadores negam por vários motivos.
Um parêntesis para uma diferenciação importante. O negacionismo é um termo que vem do francês, como eu disse, négationnisme; em inglês se usa denial, negação. E uma coisa é to deny, negar; outra coisa é to be in denial, estar em negação, ou em denegação, não querer acreditar, o que pode ser entendido, resumidamente, como o mecanismo psíquico necessário para evitar um sofrimento ainda maior do sujeito – e a psicanálise nos ensinou que há várias formas patológicas dessa recusa da realidade, de torção da realidade. Os judeus estavam em negação, mais do que negavam o que estava acontecendo, embora tenha havido, também entre eles, certas atitudes que poderiam ser interpretadas como negacionistas. Mas existem todas essas posições dentro de cada uma das posições, essa é que é a verdade.
Mas e os negacionistas de hoje? Porque, quando eles estavam imersos no Holocausto, essa negação era possível, mas e agora que a gente sabe com segurança o que aconteceu?
Pois é. Tem pessoas que dizem, por exemplo, que a Terra é plana, que a ditadura militar não existiu no Brasil, ou que a Globo é comunista, que os nazistas eram de esquerda, que a cloroquina cura sem sombra de dúvida, enfim a lista é longa. Não pode ser por acaso que todas essas coisas se juntaram neste governo e, embora eu tenha estudado um pouco esse fenômeno, ele continua sendo um mistério para mim; porque não são só esses absurdos que são ditos sabe-se lá por quais interesses, são as pessoas que acreditam neles e que seguem o que o presidente e seus ministros dizem. Eu estava trabalhando com o negacionismo quando entrou o Bolsonaro, e então tudo ficou desatualizado imediatamente, eu me senti atropelada pela realidade, mesmo que eu já soubesse que tudo que se escreve sobre o aquecimento global fica desatualizado muito rápido, já que as mudanças climáticas estão se acirrando cada vez mais rapidamente. Quando eu comecei a trabalhar nesse texto sobre o negacionismo – o texto que saiu pela n-1 –, eu me concentrava no colapso ecológico, e o Brasil não era como os Estados Unidos, por exemplo. Na direita americana você tem que ser negacionista do clima, senão você é democrata, mas aqui não era assim. Com o Bolsonaro ficou assim. O negacionismo se expandiu, o governo inteiro se voltou contra a ciência, mesmo no que diz respeito à pandemia do coronavírus, como estamos vendo. No caso do governo, é difícil saber se eles acreditam mesmo nisso tudo ou se é só uma estratégia… O Olavo de Carvalho, por exemplo, eu não creio que ele ache que a Terra é plana, ou que o nazismo era de esquerda. Mas a coisa chegou a tal ponto que é difícil saber ali dentro quem acredita no quê. Ou até mesmo quem é adepto daquelas religiões neopentecostais que acham que o mundo vai acabar mesmo, e que então tudo bem, vamos aumentar o caos, e o vírus é até bem-vindo porque está ajudando a apressar o Apocalipse, para que sobrem só os eleitos. No que o Bolsonaro de fato acredita, não sei. E não cabe a nós ter que decifrá-lo. Mas lembremos que os que apoiaram sua eleição, acharam que era melhor – e mesmo vantajoso – aguentar no governo uma pessoa que diz esse tipo de coisas, contanto que o Paulo Guedes conseguisse fazer passar suas reformas. Onde colocar esses que o apoiaram em plena consciência, por cálculo político-econômico? Certamente não entre as vítimas inocentes. Serão meros espectadores ou, quem sabe, colaboracionistas?
Podemos considerar as fakes news uma espécie de negacionismo? Dos fatos? Do jornalismo?
Acho que sim. Porque esse é um trabalho de profissionais, não é de pessoas que receberam uma informação errada. Eles são financiados para isso, como vimos na última campanha eleitoral. E aí, não basta negar, você tem que colocar alguma coisa no lugar, criar confusão, então se criam os fatos falsos. Isso não é denegação, não é recusa, não é desinformação, e muito menos discordância: é mentira mesmo, e criminosa, claro. Eles sabem que aquilo é falso, mas acham que podem extrair alguma vantagem disso. E essa é uma posição muito forte também dentro do negacionismo climático. Eles sabem que o aquecimento está acontecendo, ainda mais que cada vez é mais difícil de ignorar a enorme quantidade e gravidade dos eventos climáticos extremos – tanto que o número de pessoas que, de boa-fé, digamos assim, não acreditam no aquecimento global está caindo.
O último livro do Bruno Latour – Onde aterrar –, que, aliás, está pra sair em português aqui no Brasil, tem uma hipótese muito interessante para tentar compreender a eleição do Trump e a geopolítica global recente. Ele sugere que as elites sabem muito bem, e há bastante tempo, o que está acontecendo, sabem que não há mundo para todos, que aquele ideal propagandeado pelo neoliberalismo, de fazer o bolo crescer para depois distribuir, é um engodo. Essa elite nem se preocupa mais em fingir que pretende implantar um Estado de bem-estar social. Já faz tempo que eles sabem que não vai dar e escolheram mentir para proteger apenas a si próprios, e para isso tem sido fundamental esse negacionismo financiado há décadas pelas maiores empresas de combustíveis fósseis, porque no fundo eles já abandonaram as pessoas. E Latour acrescenta que, se não se entende que é esse o papel do negacionismo hoje, não se entende nada do que está acontecendo ultimamente no mundo. Essa é uma grande hipótese, na minha opinião. E, de fato, o que vemos muito claramente na pandemia da Covid-19 é essa mesma perda de mundo que estamos vivendo com o colapso ecológico. Os novos políticos de direita, os novos nacionalismos, do America First ao Brasil acima de tudo, seguidos cegamente por toda essa gente que se sentiu traída e abandonada pelo sonho da modernidade para todos. A consciência de que estamos perdendo o mundo modificou a geopolítica global. Não tem mais mundo pra todo mundo, simples assim.
Você está entre aqueles que acham que o mundo não será mais o mesmo depois da pandemia? Esse choque de realidade vai alterar o pensamento das pessoas?
Alterar o mundo, acho que sim, porque não tem como você sair igual de uma coisa desse tamanho. Mas essa esperança de que as pessoas ou os países vão sair melhores, que vão se dar conta do colapso que vivemos, que temos que mudar pois senão vão vir outras pandemias e coisas piores… Eu sou muito pessimista em relação a isso. Aquela reunião ministerial vazada pelo Moro, o que a gente vê ali? O Salles dizendo: “Vamos aproveitar que está todo mundo distraído pela pandemia e vamos desregulamentar, passar a boiada”. O Guedes, o que ele diz ali? “Vamos salvar as grandes empresas, mas não as pequenas, essas não adianta, não dão lucro, não dão retorno”. Ou seja, o grande capital está se aproveitando dessa desgraça. Os pequenos vão quebrar, mas as maiores companhias e o sistema financeiro estão sendo compensados e talvez saiam até melhor depois da crise. E também sou pessimista porque não sei se, depois que acabar, se acabar – porque algumas análises dizem que não vai acabar, que vamos ter que aprender a conviver com a Covid-19 –, as pessoas vão poder se dar ao luxo de simplesmente pensar: acabou. Alguém fez uma charge onde havia três ondas – a pandemia era a onda menor, depois vinha a crise econômica, uma onda maior, e atrás vinha uma onda enorme, monstruosa, um tsunami, que é a catástrofe ecológica. Não sei se vai dar tempo de conscientizar todo mundo, eu sou pessimista. Tenho esperanças, vai que as pessoas se iluminam, percebem que não é possível continuar desse jeito, mas não sei não. Vai haver mudanças; a crise econômica virá com certeza, vai ter rupturas de hábitos, a maneira de se deslocar no mundo vai se alterar, talvez se reforcem em alguns países algumas redes de segurança social; mas não sei se virá a grande mudança, um mundo realmente diferente. Em relação ao “Há um mundo por vir”, acho que continuamos naquela modalidade que a gente analisa ali, que é a degradação gradual. Claro que dentro dessa degradação gradual a pandemia foi uma enorme pancada, mas, quando ela passar ou mesmo quando se retomar mais ou menos as coisas como eram, a tendência é seguir nesse quadro maior de degradação. Acho que a gente vai ter que conviver com isso, e vai ter que aprender a se organizar, a resistir sozinhos, coletivamente. E nesse sentido, acho incrível como a sociedade civil está se organizando para ajudar a combater a pandemia, ou ao menos para ajudar os que se encontram em situação de maior fragilidade a enfrentá-la. Isso talvez saia fortalecido. Porque as pessoas tiveram que inventar muito rápido e pôr em marcha imediatamente essas invenções. Era uma questão de vida ou morte. A pandemia fez as pessoas exercitarem a imaginação e isso é fundamental, porque é o que teremos que fazer conforme o colapso ecológico se aprofunde. Nos reorganizar, inventar pequenas saídas políticas, econômicas, desviantes da grande política, da grande economia, dessa coisa destrutiva que nos apresentaram como se fosse a única realidade possível, uma realidade única e sem saída. A pandemia está mostrando que esse discurso era falso, e nesse sentido sinto uma esperançazinha.
A mídia, os jornalistas vêm desempenhando um papel importante tanto para revelar a realidade da pandemia como do governo Bolsonaro. Você acha que, em relação ao aquecimento global, a imprensa tem a mesma boa performance?
De jeito nenhum. A imprensa fala pouquíssimo do colapso ecológico que está acontecendo e, quando fala, fala de um jeito meio blasé. Sempre se diz que vai dar tudo certo, que, se cada um fizer a sua parte, tudo vai se resolver. Esse é o papel que a grande mídia tem feito em relação ao aquecimento global. Às vezes, no Dia do Meio Ambiente ou na época das conferências do clima – as COPs –, a mídia fala um pouco mais, põem uns programas especiais à meia-noite falando disso e logo depois vem um anúncio de caminhonete 4×4. Tudo continua como está, a economia tem que crescer. Sobretudo no Brasil, a mídia tem sido péssima para levar a sério o colapso ecológico. Se eles levassem a sério, imagine o papel que poderiam ter. Eu considero a grande mídia quase tão criminosa quanto os negacionistas profissionais. Porque, se estamos falando de centenas de milhares de mortes na pandemia, talvez alguns milhões, no caso do aquecimento global as mortes vão chegar a bilhões. É uma coisa enorme para os humanos e para os outros seres vivos também. Isso deveria ser levado a sério como a pandemia está sendo levada a sério. Se isso acontecesse, se a mídia parasse de se vender como um espectador neutro – coisa que sabemos que não existe –, a gente aí teria só o poderoso mas pequeno grupo dos negacionistas profissionais e daquelas cem grandes companhias poluidoras para combater juntos.
Reportagem originalmente publicada na Agência Pública
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 10/06/2020
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