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Covid-19 e o SUS: O papel da Atenção Primária à Saúde no controle da epidemia

 

Covid-19 e o SUS: O papel da Atenção Primária à Saúde no controle da epidemia

Porta de entrada do Sistema Único de Saúde, a atenção básica com foco comunitário e ação no território pode contribuir para reduzir a pressão sobre os hospitais e melhorar a vigilância durante a epidemia de coronavírus

Por Cátia Guimarães – EPSJV/Fiocruz

Esperando um possível aumento dos casos graves de Covid-19, a ampliação dos leitos de hospital se tornou prioridade para as autoridades sanitárias. O diagnóstico é que o sistema de saúde não está preparado para uma enxurrada de internações por coronavírus, que se somariam às demandas de outras doenças, que não deixam de existir apenas porque se está em meio a uma pandemia. Mas essa pressão seria ainda maior se o Sistema Único de Saúde, o SUS, não tivesse uma rede de serviços que, no cotidiano, tenta reduzir uma corrida às emergências. Trata-se da Atenção Básica ou Atenção Primária à Saúde, que, no Brasil, é a porta de entrada do sistema. “Com uma atenção primária forte, você tem a capacidade de evitar o agravamento de doenças, diminuindo as internações”, explica Angélica Fonseca, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). E esse destaque é importante porque nem todo sistema de saúde funciona assim, mesmo aqueles que são públicos e universais: de acordo com Gastão Wagner, médico e professor da Universidade de Campinas (Unicamp), a Espanha tem um desenho parecido com o brasileiro nesse aspecto, enquanto Itália e França são exemplos de países com sistemas mais centrados no hospital do que na atenção básica.

E por aqui? Claro que se você sofrer um acidente ou passar muito mal no meio da madrugada, provavelmente procurará uma emergência ou uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), assim como hoje, em meio à epidemia, as pessoas com sintomas sérios estão sendo levadas diretamente a um hospital. Mas essa não é a regra. De modo geral, é naquele posto de saúde que fica mais próximo de casa que as pessoas recebem o primeiro ‘atendimento’ e são (ou não) encaminhadas para realizar exames e se consultar com especialistas. Nos termos da portaria 2.436/2017, a atenção básica é “coordenadora do cuidado e ordenadora das ações e serviços disponibilizados na rede”. Isso significa que são as equipes profissionais dessas unidades que acompanham o estado de saúde e os problemas da população do entorno no dia a dia, inclusive aqueles que hoje são considerados agravantes dos sintomas de Covid-19, como a diabetes, a hipertensão, e a tuberculose – as chamadas “comorbidades”. Como cada unidade básica atende a uma população específica, cadastrada de acordo com o local de moradia, ela guarda um conhecimento da história do paciente que facilita, por exemplo, o mapeamento e o monitoramento dos grupos de risco do coronavírus em cada região. “O enfoque territorializado e comunitário que a gente estabeleceu para a atenção básica é fundamental para a vigilância e para a intervenção preventiva”, diz Angélica.

A pesquisadora destaca ainda que, numa epidemia como a do Covid-19, que apresenta sinais e sintomas semelhantes ao de outras doenças – como a gripe comum ou a pneumonia, dependendo da gravidade -, esses serviços de saúde que estão nos territórios podem ajudar a diferenciar os casos suspeitos, o que também reduz a procura pelos hospitais. “É claro que a gente está recomendando que as pessoas [com sintomas] leves ou assintomáticas permaneçam nas suas casas, mas se você tiver uma atenção básica bem organizada e articulada ao sistema de vigilância, é possível ter um bom enfrentamento [à epidemia] quando as pessoas procuram os serviços, [favorecendo] também os seus contatos próximos, com orientações em relação aos domicílios e ao território”, completa Cristiani Machado, pesquisadora e atual vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz.

Saúde da Família

A legislação estabelece que, preferencialmente, essas unidades devem funcionar com equipes de Saúde da Família multiprofissionais, compostas por, no mínimo, médico, enfermeiro, auxiliar ou técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde (ACS). Com esse desenho, de acordo com o sistema de informação e gestão da atenção básica do Ministério da Saúde, em dezembro de 2019 existiam 43,7 mil equipes no Brasil. Mas, embora a Estratégia de Saúde da Família (ESF) seja apontada como prioritária, o país mantém ainda um outro modelo, que vinha sendo substituído progressivamente, mas voltou a ser validado – e incentivado – pela nova Política Nacional de Atenção Básica (Pnab), aprovada em 2017, e pela Portaria 2.539/2019, que institui a “equipe de atenção primária”. Para se ter uma ideia da mudança, nesse novo desenho apenas o médico e o enfermeiro são obrigatórios. Segundo dados do MS referentes ao final do ano passado, a ESF alcança 64,47% da população enquanto as outras equipes de atenção básica têm uma cobertura de 74,76%.

“Entender as características sociais dos grupos populacionais, principalmente suas vulnerabilidades, e indicar formas mais eficientes de se promover o distanciamento social é uma das contribuições que uma APS forte traz nesse momento”
Angélica Fonseca

Mas que diferença faz a adoção de um ou outro modelo? “A Estratégia de Saúde da Família vai ao território. Já a unidade básica de saúde trabalha com a ideia de que o usuário deve ir à unidade. Ela não toma posição ativa em relação ao território e ao cidadão, não propõe questões de saúde. Está lá para atender a demanda, com um modelo basicamente biomédico de assistência”, distingue Angélica. Cristiani completa: “A Estratégia de Saúde da Família trabalha com a lógica da visão para o território, para a comunidade, para a determinação social [da saúde e da doença], com atuação multiprofissional e com o apoio de agentes comunitários de saúde, que são sujeitos fundamentais nessa relação com o território. Se tudo isso estiver funcionando, com a perspectiva da integralidade, do vínculo e do conhecimento sobre aquelas famílias que estão sendo acompanhadas na unidade de saúde, pode fazer muita diferença no enfrentamento da epidemia”.

Angélica destaca ainda que, num momento como o atual, em que é preciso evitar a aglomeração de pessoas, fica claro o quanto é fundamental que os serviços e secretarias de saúde conheçam em detalhe a população e o território. “E o que vai proporcionar isso não é o atendimento da demanda só em caso de doença. É o acompanhamento ‘longitudinal’, um dos atributos da atenção primária que orienta a Estratégia de Saúde da Família”, explica. Ela ressalta que nesse cenário da Covid 19, em que as visitas domiciliares feitas regularmente pelos ACS também devem ser restringidas, o acúmulo de informações anteriores é valioso para orientar novas ações.  “Entender as características sociais dos grupos populacionais, principalmente suas vulnerabilidades, e indicar formas mais eficientes de se promover o distanciamento social é uma das contribuições que uma APS forte traz nesse momento”, resume.

E aqui sobressai a importância do papel do agente comunitário de saúde nessa estratégia. Segundo a pesquisadora, mesmo numa fase como a atual, em que esses profissionais devem limitar sua rotina de circulação no território para evitar a transmissão, o vínculo entre o ACS e os usuários contribui para o funcionamento das ações à distância – por celular, por exemplo -, melhorando a qualidade da atenção. Alem de levar à população local informações confiáveis sobre saúde, diz, o ACS pode trazer para os serviços informações sobre sintomas, casos suspeitos e confirmados, além de um retrato mais próximo da tragédia social que uma crise sanitária como essa pode provocar.

Desigualdade social

E aqui surge outra contribuição, de mais longo prazo, que a organização do SUS a partir de uma atenção básica territorializada pode oferecer em meio a uma epidemia como a de coronavírus. “No momento de pico da epidemia, toda a atenção está voltada para interferir na transmissão e atuar no cuidado, mas é preciso lembrar que ela gera também efeitos sociais”, alerta Angélica. E completa: “Uma atenção primária forte tem uma atuação intersetorial que é importante para você lidar socialmente com os prejuízos de uma epidemia como essa. Prejuízos que não são diretamente relacionados à saúde, mas que evidentemente têm repercussão sobre ela porque afetam as condições de vida da população”.

Na concepção que orienta o SUS, embora não sejam efeito direto da ação do vírus, situações como a perda de trabalho e renda, a dificuldade no cuidado com os filhos afastados da escola e o próprio impacto do processo de isolamento social são consideradas possíveis fatores de adoecimento

Um exemplo? No SUS, a atenção primária acompanha o cumprimento das condicionalidades para o recebimento do benefício do Bolsa Família. “Quanto mais ampla e universal a Atenção Primária à Saúde for, mais consistente é esse sistema, mais você vai ter informações e melhor vai poder identificar quem são as pessoas que enfrentam, durante e após a epidemia, situações de dificuldade que necessitam de ação pública”, ilustra Angélica. Isso sem contar as medida referentes ao que a pesquisadora chama de “benefícios sociais”, como o auxílio emergencial que está sendo implementado neste momento no Brasil para contar os efeitos da epidemia sobre desempregados e trabalhadores informais. “Pense no pequeno comerciante que vive vendendo docinho, na manicure ou na diarista que são responsáveis pelo sustento de suas famílias. Em que situação essas pessoas estão? Quem são essas famílias atingidas? Elas têm crianças? Têm crianças doentes? Têm idoso? Uma atenção primária estruturada forte tem esses dados e faz interseção com a assistência social, o que ajuda a viabilizar que esses benefícios sociais cheguem a quem precisa”, explica. E completa: “O recurso pode ser federal, mas a informação é local”.

E isso é importante porque, na concepção que orienta o SUS, embora não sejam efeito direto da ação do vírus, situações como a perda de trabalho e renda, a dificuldade no cuidado com os filhos afastados da escola e o próprio impacto do processo de isolamento social são consideradas possíveis fatores de adoecimento, os chamados “determinantes e condicionantes de saúde” que a própria legislação determina que devem ser considerados pela atenção básica.

“O Brasil tem o SUS, mas tem também uma desigualdade que se aprofundou”
Gastão Wagner

Gastão Wagner afirma que, de fato, a existência de um Sistema Único de Saúde num momento como esse é particularmente importante porque, entre os principais países que enfrentaram a pandemia de coronavírus até agora, o Brasil é o que tem a maior desigualdade social. E isso, na sua avaliação, “tende a agravar a mortalidade e o tamanho da epidemia”. “A saúde pública tem medidas heroicas para enfrentar a desigualdade social. Temos vacinação universal, contra poliomielite e sarampo, por exemplo, que atravessa as limitações da desigualdade socioeconômica e política. Por isso o sistema tem que ser público”, defende, alertando que as medidas emergenciais para atenuar as consequências econômicas da epidemia são importantes, mas, como temporárias, não serão suficientes para “compensar toda a desigualdade existente”. “O Brasil tem o SUS, mas tem também uma desigualdade que se aprofundou com as contrarreformas trabalhistas, com o desmonte da CLT, com o agravamento da informalidade, com o desaparecimento de políticas de habitação…”, lamenta.

Problemas no caminho

E além desses problemas estruturais, mudanças na política e na gestão podem estar distanciando esse desenho de um SUS que começa na atenção básica, com vínculo, acolhimento e efetividade, da realidade concreta das unidades de saúde. Alvo de críticas de pesquisadores e do Conselho Nacional de Saúde, a nova Política Nacional de Atenção Básica, instituída em 2017 em substituição à versão de 2012, é um dos obstáculos apontados. Além da já comentada falta de priorização da Estratégia de Saúde da Família – com mudanças no financiamento, que deixa de induzir esse modelo –, a definição, por exemplo, de que os ACS devem cobrir 100% apenas das áreas consideradas vulneráveis e não de todo o território, é considerada um tipo de focalização das ações, que vai na contramão da universalidade e compromete a integralidade da atenção – dois princípios importantes do SUS. Além disso, a efetividade e mesmo a cobertura da atenção básica varia muito entre os estados e municípios, de acordo com o investimento público e com as opções tomadas por cada gestão. Mesmo entre cidades grandes, como as capitais, a discrepância é significativa. Em São Paulo, que é a cidade com mais casos de Covid-19 neste momento, a Estratégia de Saúde da Família alcança pouco mais de 38% da população e mesmo as equipes de atenção básica não chegam a 63%. No Rio, que está em segundo lugar no número de infectados, a equipe mais restrita chega a um grupo ainda menor – 50,5% – e a ESF a pouco mais de 44% da população. Já Vitória, no Espírito Santo, tem uma cobertura de 72,2% na Saúde da Família e de 88% nas outras equipes. Enquanto isso, Belo Horizonte tem 100% de cobertura na atenção básica, sendo 80,8% na ESF. “A Estratégia da Saúde da Família em alguns municípios, assim que foi implantada, teve resultados muito bons. E vários estudos demonstram que a expansão nacional dessa estratégia teve resultados positivos, como a redução da mortalidade infantil, redução da desnutrição e melhoria, inclusive, no controle de doenças cardiovasculares. Por outro lado, a gente sabe que a Estratégia de Saúde da Família em muitos locais tem sofrido restrições de recursos financeiros, de contratação de profissionais no serviço público. Além das formas de inserção precária dos trabalhadores, com contratos temporários, por meio de Organizações Sociais e outras formas de terceirização, ou mesmo equipes que funcionam de forma incompleta. Tudo isso prejudica o seu funcionamento pleno e, consequentemente, vai prejudicar o enfrentamento de uma epidemia como essa”, resume Cristiani.

E não é só. Como porta de entrada do Sistema Único de Saúde, a atenção básica precisa atuar de forma articulada com os outros níveis de complexidade que, por sua vez, precisam ser capazes de atender à demanda – por exemplo, para dar conta das internações dos casos graves de Covid-19, que se multiplicam. Há testes e vagas nos hospitais para receberem os usuários encaminhados pelas unidades básicas de saúde? A quantidade de leitos disponíveis é suficiente? Mesmo os municípios menores têm capacidade para internar ou encaminhar pacientes de UTI? “A atenção primária, quando é ampla e forte, está no território e concentra uma parte importante das ações de resoluções dos problemas. Mas ela está concebida enquanto parte de uma rede. E a questão da rede, das consultas, dos exames especializados e da assistência hospitalar continua sendo um problema”, alerta Angélica. Mas essas são cenas do próximo capítulo – ou, mais precisamente, são tema da próxima reportagem da série sobre o Covid-19 e o SUS.

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 17/04/2020

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