Coronavírus nas favelas: ‘É difícil falar sobre perigo quando há naturalização do risco de vida’
Por Hara Flaeschen, ABRASCO
A pandemia invade fronteiras sem distinguir idioma, território, poderio político ou econômico. O coronavírus escancara as contradições deste país continental: quem não tem água encanada para lavar as mãos corre mais riscos, e o período de isolamento é desesperador para aqueles que precisam do ir e vir das pessoas e da movimentação das cidades para garantir a própria sobrevivência. Parte significativa da população brasileira – trabalhadores na base da pirâmide de distribuição de renda – será atingida com mais brutalidade pelos impactos diretos e indiretos da Covid-19.
A dificuldade de prevenção e de tratamento, a impossibilidade de manter o distanciamento social, e a ausência de salários fixos ou benefícios para sobreviver à quarentena são alguns dos fatores que delineiam esta dura realidade. Estatísticas recentes do DataFavela, instituto de pesquisa associado à Central Única das Favelas (Cufa) e ao Instituto Locomotiva, indicaram que metade dos trabalhadores que vivem nas favelas brasileiras não possuem vínculos empregatícios formais: 47% são autônomos, 10% são aposentados, 8% são empregados mas não têm carteira assinada, 5% são donas de casa. Só 19% são contemplados pela Consolidação das Leis de Trabalho (CLT). O instituto também apontou que 7 em cada 10 famílias já registraram diminuição na renda desde que o isolamento social foi instituído como a melhor estratégia para enfrentamento do coronavírus.
“Nós por nós”
O ar que entra pelos pulmões nas vielas e becos não é o mesmo ar de quem respira nas áreas nobres, sempre arborizadas. O sol não nasce para todas as janelas, como nos condomínios do asfalto. Também não há acesso fácil à alimentação adequada, e gasta-se muito tempo no deslocamento até o trabalho. A Covid-19 apresenta novos riscos, e intensifica os que já existem por ali, aflorando as discrepâncias sociais. Contraditoriamente às condições mais frágeis de saúde (ou em paralelo?), o medo de morrer é relativo. É o que contou Juliana Pinho, comunicadora popular do complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro. Ela trabalha, junto com outros colegas da comunicação comunitária, moradores, ONG’s e militantes de todo o país, na campanha “Corona nas Favelas e Periferias”.
“Percebemos que muita gente ainda não está por dentro da gravidade do assunto. É muito difícil conscientizar pessoas que são ameaçadas desde sempre [pela violência estrutural] sobre o perigo de vida. Em dias de tiroteios e operações policiais, nossas rotinas não podem parar, o patrão não libera. O dinheiro para colocar comida em casa depende do trabalho. Essa realidade gera a naturalização do risco de vida. É bem difícil”, desabafou Juliana. O esforço de comunicação – digital, impressa e presencial – se dá através de faixas, cartazes e banners virtuais espalhados entre os moradores de favelas e periferias, estimulando ações de solidariedade e divulgando práticas de cuidado, a fim de dirimir os efeitos da doença sobre estas populações.
+ Como se dará a evolução de Covid-19 na população que vive em condições precárias?
Muitas pessoas ainda precisam circular por causa de seus trabalhos, nos comércios locais ou em atividades por outros bairros da cidade, e, segundo Juliana, o volume de circulação aumentou um pouco após o pronunciamento do Presidente da República, na semana passada, que estimulava as pessoas a voltarem aos seus trabalhos. Apesar da dificuldade, as ações de comunicação e saúde surtem efeito e, aos poucos, a população reconhece o movimento: “É importante valorizar esta campanha, que está partindo dos comunicadores e moradores. Aqui na Maré as organizações locais [como ONGs e associações], que têm mais recursos financeiros e ‘braçais’, também estão trabalhando juntas e prestando apoio para as ações independentes, o que é bem legal. Acredito que o momento exige união e solidariedade, características já muito presentes no dia a dia da favela”.
O Estado precisa agir
Se há mobilização popular, também há preocupação dos pesquisadores da saúde coletiva, que estão em alerta com a chegada da doença nestes locais onde vivem pessoas em condições de vulnerabilidade: “Este grupo social é composto, em sua maioria, por indivíduos não brancos – negros, indígenas, imigrantes de países da África, da América do Sul. Sem falar nas pessoas em situação de rua. A cor da pele pode significar, inclusive, agravamento do quadro clínico. Na população negra, por exemplo, temos alta prevalência de doenças crônicas não transmissíveis, como hipertensão arterial e diabetes, que se associadas com a Covid-19, podem aumentar as chances de óbito”, explicou Alexandre da Silva, docente da Faculdade de Medicina de Jundiaí e integrante do Grupo Temático Racismo e Saúde, da Abrasco.
O professor enalteceu as auto-organizações faveladas e periféricas, mas ponderou que o Estado não pode ficar ausente: “É digno, honroso, extremamente importante que exista estas movimentações. Mas, sozinhos, não conseguirão mudar o cenário total da pandemia que vem se instalando em nosso país. As ações intersetoriais agora são muito importantes, é necessário pensar a saúde de maneira ampla – não se trata só de leitos hospitalares e medicamentos, é preciso proteção social. O SUS deveria estar pronto, forte e com capilaridade suficiente para monitorar essa população”.
Outra problemática apontada pelo pesquisador é a saúde mental. A pesquisa do DataFavela sinalizou que 54% das pessoas empregadas têm receio de perder o emprego, e 75% preocupa-se com os impactos da doença em suas rendas. Alexandre da Silva afirmou que essas tensões – relacionadas às questões mais básicas de sobrevivência, como medo de passar fome – podem causar intensificação do sofrimento psíquico nestes grupos sociais.
“Tem que parar este austericídio”
Os dados reforçam a necessidade de medidas emergenciais, de âmbito econômico e social, para atenuar a transmissão comunitária do coronavírus e suas consequências. Em uma Carta aberta à Presidência da República e ao Congresso Nacional, enviada em 18 de março, a Abrasco e outras entidades da saúde coletiva e da bioética defenderam, dentre outras propostas, assistência financeira para as pessoas atingidas economicamente, além de isenção nas taxas de água e luz, desconto nas contas telefônicas e distribuição gratuita de alimentos e de itens de higiene. A renda básica, voltada para famílias que já estão sem meios de comprar itens elementares, foi aprovada na Câmara dos Deputados (em 26/03) e no Senado (em 30/03), e segue para a canetada final, na mesa do presidente. É uma vitória, mas não pode ser a única forma de proteger a população.
A pandemia chegou ao Brasil e encontrou um país já bastante fragilizado, sob forte política de austeridade, congelamento dos gastos públicos com saúde e educação por 20 anos, decretados pela Emenda Constitucional 95, e a retirada de direitos trabalhistas e previdenciários. O Estado está enfraquecido, e a condição extrema da Covid-19 expõe isso: “Há o subfinanciamento crônico do SUS, os ataques às universidades – [o governo federal] cortando bolsas de pesquisa, mesmo durante a crise de coronavírus. Agridem a ciência. Também estão desmontando a proteção social. Mudam o padrão de benefícios com reformas, dificultando o acesso dos cidadãos à aposentadoria ou às pensões. Houve uma contenção no Programa Bolsa Família, a fila de espera está enorme”, apontou a abrasquiana Sonia Fleury, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (CEE/Fiocruz).
Diante do novo cenário colocado, Fleury espera que haja uma mobilização de toda a sociedade para reverter essas políticas que estavam em curso: “A sociedade que aceitou a emenda que fragilizava a educação e a saúde [EC95], hoje não deixaria passar. Este não é o momento de equilíbrio fiscal, é necessário colocar dinheiro para salvar a vida da população e também a economia. Tem que parar este austericídio, precisamos evitar o extermínio. A melhor coisa que temos para combater a pandemia é o SUS. Para sobreviver à doença, e ao que vem depois dela, devemos fortalecer o Estado, o mercado não vai resolver”.
Comunicação é responsabilidade social
Ainda segundo a pesquisadora, outra forma de enfrentar a doença é a comunicação, fazer circular informação de qualidade. Fleury coordena o Dicionário de Favelas Marielle Franco, uma plataforma pública que concentra produção de conhecimentos sobre favelas. O Dicionário agora está com um especial sobre coronavírus, e qualquer pessoa pode encontrar informações sobre como ajudar as favelas durante a pandemia, os materiais produzidos pela e para a favela e outras notícias: “No primeiro mês falando sobre a doença, a imprensa não considerou a realidade das favelas e periferias. Recomendava lavar as mãos, sem considerar que muitos lugares não têm água porque a Cedae não oferece água para as pessoas, apesar de ser uma empresa pública. É preciso informação voltada para estas realidades”, afirmou.
A falta de água é uma preocupação constante, que também dificulta o trabalho de conscientização da população – como convencer pessoas de que suas vidas importam se elas não podem sequer lavar as mãos frequentemente? Juliana Pinho contou que há um mapeamento dos pontos sem abastecimento regular de água pela Maré, e que estes dados são levados às associações de moradores, que, por sua vez, pressionam as autoridades: “Ressaltamos sempre o quanto a água, além de direito humano, é imprescindível para o morador se manter em casa minimamente seguro contra o vírus. Ainda assim, sabemos que muitas outras favelas também têm a distribuição de água limitada. Estamos reforçando a solidariedade entre nós, moradores. Algumas faixas dizem ‘Sabemos que temos um precário abastecimento de água. Caso você tenha água em casa, compartilhe com quem precisa’”.
Nas ruas da Maré, ou no espaço virtual do Dicionário de Favelas Marielle Franco, a favela fala por si. Grita sua capacidade de organização, expressa a potencialidade da vida em comunidade e pede socorro: todas as vidas importam. Saiba como apoiar favelas no Rio de Janeiro e em outros estados para o enfrentamento do coronavírus.
Entrevista publicada pela Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – Abrasco e reproduzida in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 01/04/2020
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