Deslizamentos, enchentes, mortes e o apartheid urbano, artigo de Álvaro Rodrigues dos Santos
Deslizamentos, enchentes, mortes e o apartheid urbano, artigo de Álvaro Rodrigues dos Santos
Por mais que os urbanistas e todos os profissionais que se dedicam à questões urbanas se empenhem em humanizar de alguma forma nossas cidades, essas, inexoravelmente, insistem em reproduzir fisicamente as enormes diferenças sociais e de tratamento entre seus habitantes, a desumana desigualdade social herdada e solertemente reproduzida desde os tempos coloniais.
Rebelando-se a qualquer tentativa de algum planejamento que confronte essa perversa lógica, as cidades vão assim espontaneamente se compondo de áreas nobres que abrigam as classes mais privilegiadas, de áreas urbanisticamente consolidadas em serviços de infraestrutura que abrigam suas classes médias e de favelas e áreas periféricas carentes de todas infraestruturas e benefícios naturais de uma urbe, onde amontoam-se e abrigam-se os deserdados da vida.
A grande verdade é que a população mais pobre, compelida a buscar soluções de moradia compatíveis com seus reduzidos orçamentos, tem sido compulsoriamente obrigada a decidir-se jogando com seis variáveis, isoladas ou concomitantes: grandes distâncias do centro urbano, periculosidade, insalubridade, irregularidade fundiária, desconforto ambiental e precariedade construtiva.
São assim ocupados em encostas íngremes e margens de córregos terrenos que por sua alta instabilidade geológica natural não deveriam nunca ser urbanizados, ou são ocupadas áreas com risco natural médio ou baixo, passíveis de receber ocupação urbana, mas isso feito com tal inadequação construtiva que, mesmo nessas condições naturais mais favoráveis, são geradas situações de alto risco geotécnico.
Importante ter em conta que ponto de vista técnico o Brasil conta hoje com conhecimentos científicos e tecnológicos de primeira linha no que diz respeito a fenômenos de ordem geológica, geotécnica e hidrológica, com um substancial número de profissionais da área pública e privada perfeitamente habilitados a atuar no setor, com farto e qualificado material bibliográfico sobre questões técnicas e gerenciais pertinentes, envolvendo manuais, relatórios, livros, artigos técnicos, etc. e, mais importante, com inúmeros levantamentos e mapeamentos já executados e disponibilizados na maioria dos municípios brasileiros mais susceptíveis aos fenômenos de risco considerados. Entretanto, todo esse suporte colocado à disposição das autoridades públicas federais, estaduais e municipais mostra-se extremamente subutilizado, considerando as medidas práticas e efetivas que dele teriam que naturalmente decorrer. Isso porque as decisões públicas são filtradas por uma abordagem orçamentária onde a população mais pobre não é, desde há muito, incluída entre as prioridades estabelecidas. Por decorrência, as áreas de risco, em vez de se reduzirem, continuam se multiplicando, e as tragédias, como seria de se esperar, repetem-se e se potencializam.
O mesmo acontece quanto à concepção e implementação programas habitacionais mais ousados e resolutivos que conseguissem oferecer à população de baixa renda, moradias próprias, seguras e dignas na mesma faixa de preços em que ela somente encontra nas situações de risco referidas.
Em conclusão, como diria nosso grande Guimarães Rosa, “uma coisa é por ideias arranjadas… outra é lidar com um país de pessoas de carne e sangue, de mil e tantas misérias; de sorte que carece de se escolher”.
Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)
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Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas
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Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”
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Consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia
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Articulista da revista eletrônica EcoDebate
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 11/03/2020
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