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Água: dessacralizando para privatizar, artigo de Flávio José Rocha

 

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Água: dessacralizando para privatizar, artigo de Flávio José Rocha

[EcoDebate] Para muitos Povos Originários, tudo é sagrado. Isso não significa não tirar da natureza o que é necessário e até mesmo algum excedente para a sobrevivência. Aqui não queremos afirmar uma superioridade dos Povos Originários ou romantizar a sua relação com o mundo natural (nenhum grupo social é perfeito) frente a nossa sociedade consumista, mas apenas destacar um outro modo de vida que necessita ser respeitado.

Cada cultura sacraliza a natureza de uma forma diferente e a dimensão do sagrado é muito subjetiva para merecer um julgamento de quem quer que seja. Algumas sociedades modernas também sacralizam lugares, objetos, etc. a depender de questões culturais e religiosas. Esta sacralização pode até gerar lucro como, por exemplo, com a venda da água do rio Jordão ou de pedras com o poder de energizar pessoas. Muitos querem possuir um elemento natural que para eles é sagrado e para isso se permitem por ele pagar. Novamente é preciso ressaltar que aqui não há um julgamento sobre estes fatos, mas uma constatação da realidade.

O caso da sacralidade da água é único já que é um elemento sagrado para os Povos Originais e para religiões dos mundos ocidental e oriental. É parte até mesmo dos mitos de origem de parte de ambos e tem importância angular para estes nas suas cosmovisões. Talvez seja o único elemento natural que une tantas culturas e povos em diferentes ritos e rituais.

No livro Gênesis da Bíblia judaico-cristã a água tem função dupla: ela alimenta e traz riqueza com os rios do mítico paraíso dos primeiros capítulos e é usada para castigar os humanos com o dilúvio. É, portanto, uma força poderosa capaz de mudar os cursos da vida. Há também os orixás das águas como Oxum, os santos católicos ligados aos rios como Nossa Senhora Aparecida, o banho sagrado no rio Ganges para os hindus da Índia, o batismo nas religiões cristãs de todas as vertentes e os mitos indígenas ligados ás águas como a Mãe D´água. É possível ter uma lista enorme de outros exemplos da importância da água para a formação das espiritualidades mundo afora.

Em áreas áridas e semiáridas a água adquire um valor para além do consumo e produção de bens, pois a relação entre ela e os seres humanos habitantes dessas regiões geográficas está ligada por uma realidade em que ela, a água, é um bem que deve ser partilhado, pois todos sabem as dificuldades para encontrá-la. Ela torna-se elo de comunhão principalmente entre os mais necessitados socioeconomicamente e sua sacralidade está também conectada a percepção de sua escassez e a importância que isso adquire no cotidiano dos moradores destas áreas.

A sacralidade da água pode ser uma forte aliada na luta contra a sua privatização. Quem tem coragem de comercializar o que é sagrado? Alguns podem argumentar que lideranças religiosas vendem água “sagrada” para os seus fiéis, mas há que se ressaltar que a quantidade é mínima se comparada com o que é comercializado pelas Transnacionais da Água ou ao que é tomado pelo agronegócio industrial.

Uma das estratégias do Neoliberalismo é a dessacralização da água que passou a ser chamada de recurso hídrico e assim pode ser comercializada mais facilmente. As palavras não surgem do nada e possuem um sentido político por parte de quem as dissemina. Listada como recurso, a intenção é equipará-la ao petróleo e outros minérios que se tornaram produtos comercializáveis. Se antes a água tinha grande valor de uso, mas não de troca monetária, agora ela já está nas Bolsas de Valores mundo afora e é cada vez mais difundido que ela tem um valor econômico.

Uma pergunta que se deve fazer é: como se valora economicamente a água? É inquestionável que nada se paga para “produzi-la”, mas sim pelo seu transporte, tratamento, armazenamento e distribuição. Não se paga pela água que chega às nossas torneiras, mas pagamos uma taxa de serviço para que ela nos chegue em boa qualidade (embora esta realidade esteja mudando em muitos lugares do Brasil).

É bem verdade que a água sempre foi lucrativa para alguns, especialmente em tempos de seca, mas esta privatização era ação de indivíduos ou grupos que se aproveitavam da situação vulnerável de populações dependentes e o governo muitas vezes veio em socorro destas populações. Nas últimas décadas o que assistimos é justamente o contrário: os governos promovem a privatização da água como política pública e ainda alegam que isto facilitará a sua chegada para todas as pessoas.

O que antes mediava a relação com o transcendente, hoje dá lucro às Transnacionais da Água. Empresas públicas de saneamento que abriram o capital, a exemplo da Sabesp, priorizam o pagamento dos dividendos aos acionistas em relação ao investimento na melhoria e expansão do serviço e do atendimento, principalmente nas áreas mais carentes. A Tarifa Social que poderia mitigar a situação dos milhões que não têm acesso a água de boa qualidade (principalmente nas periferias das grandes cidades e zona rural do Brasil) não consta da agenda da maioria dos governantes.

A dessacralização da água traz um desafio para todos e todas que acreditam que a água não é mercadoria e por isso não tem preço.

Flávio José Rocha é doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e administra nas redes sociais a página OPA-Observatório da Privatização da Água.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 04/12/2019

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