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Artigo

Saberes ecológicos indígenas, artigo de Roberto Naime

 

Saberes ecológicos indígenas

[EcoDebate]

Ricardo Cavalcanti-Schiel reflete sobre saberes ecológicos indígenas. Não se trata de opor um fantasioso “espiritualismo” a um materialismo ocidental. Mas de desafiar nosso regime de sociabilidade com outras concepções, disposições e possibilidades

Houve um tempo em que falar de índios no Brasil era um exercício romântico. Tão romântico quanto fantasioso.

No começo do século XX, alguns paulistas batizaram os lugares com nomes tupi, do Anhangabaú a Araçatuba. Quando a região de Guaianases, na cidade de São Paulo, foi batizada com esse nome, havia centenas de anos que os Guainá, que ali teriam sido aldeados à força no século XVI, já não mais existiam para contar qualquer coisa a respeito da sua história.

Não estamos nos confins selváticos e obscuros de uma imensa Amazônia, quase que alheia e que nem parece ter fim.

Entre romantismos, chegamos aos anos 80, em que os índios, eternos candidatos a nobres selvagens, passam a ser agora heróis ecológicos. Estes ainda estavam vivos. É bem verdade que a relação dos índios com aquilo que chamamos “natureza” é muito diferente da que a nossa sociedade tem, a começar pelo fato de que, como nos ensina a antropologia amazonista hoje, eles não a reconhecem como “natureza”.

Como um objeto exterior, feito para ser usado, apropriado e apenas eventualmente “preservado” como coisa patrimonializada.

No entanto, transformar os índios em heróis da natureza, incorporados como parte daquele objeto à parte, e igualmente alheio a nós, pode não ser mais que uma dessas nossas projeções, tão românticas quanto utilitárias.

Se o novo romantismo ecológico ao menos chamou os índios para a agenda enquanto eles ainda estão vivos, sua tônica preservacionista os fez equivaler, mais uma vez, ao passado. A um passado de aparente pureza florística e faunística que precisaria ser sempre revivido e “resgatado”, como gosta de usar a terminologia patrimonializadora.

Os últimos lastros românticos que ainda pareciam nos avalizar a existência dos índios parecem estar ruindo, o que não nos augura necessariamente algo virtuoso, porque ficamos mal-acostumados a depender dos romantismos para assegurar uma legitimidade simbólica desses Outros Nacionais (como os chamou a antropóloga Alcida Ramos).

Não é preciso lembrar o estado de coisas em que andam as políticas de governo e os horizontes obscuros das políticas de Estado com relação aos povos indígenas. Também já é quase ocioso lembrar o quanto um e outro (políticas de governo e projetos de política de Estado) têm se estimulado mutuamente, para promover o etnocídio indígena por meio do solapamento dos direitos.

No cerne desta nova ideologia desenvolvimentista encontra-se uma operação utilitarista singela, a de trocar a cidadania pelo consumo. E o único lugar para os índios é o de se tornarem modestíssimos consumidores, apoiados por programas assistenciais do governo, depois de entregarem seus “meios de produção” a quem realmente interessa. Como aqueles que entregaram outrora o que são hoje terras de boi gordo.

Claro que os que já se renderam inteiramente à coisificação utilitarista do consumo vão dizer que é melhor boi gordo do que índio. Triste civilização que subentende estas concepções.

A troca utilitarista quer apenas ganhar hoje, para a aventura de uns quantos, o que o bem comum poderia, de outra forma, ganhar multiplicado amanhã, se sobreviver até lá. É nesta equação que se movem as curvas de utilidade e que se alargam para variáveis e horizontes impensados pelos mecano-economistas.

Existe a alternativa da reciclagem das projeções românticas, que sempre foi sedutora. E a que propõe uma reflexão antiutilitária, mas estratégica.

Em 1952, num texto escrito para a UNESCO, Lévi-Strauss defendia que as sociedades só sobrevivem porque aprendem umas com as outras. Uma sociedade que se isola na certeza das suas verdades fenece diante dos problemas para os quais sua visão de mundo não alcança soluções.

As tecnologias ajudam, mas o que está sempre por detrás delas são as ideias. De pouco adiantaria, para a expansão europeia dos séculos XV e XVI, o astrolábio que os europeus aprenderam dos árabes, se alguns deles não dispusessem do novo e herético conceito de uma Terra redonda.

O muralista Diego Rivera pintaria em uma das paredes do Palácio Nacional do México a lista do que a tradição ameríndia mexicana havia legado ao mundo. Uma lista de cultivos alimentares que, além de cacau, tomate e feijão, é encabeçada pelo milho.

Por trás da domesticação dos tubérculos nos Andes há um enorme conjunto de ideias sobre como a mãe-terra gera seus frutos, como o trabalho comum os recolhe, como eles podem ser acumulados e conservados, e como devem ser distribuídos.

Na época da Conquista, os indígenas dos Andes eram muitíssimo mais bem nutridos e saudáveis que os europeus. Diante dessa diferença evidente, estes últimos aproveitaram apenas um produto específico, a batata. Há quem acredite que o socialismo e o Estado do bem-estar social teriam sido inventados alguns séculos antes se os europeus, além das batatas, tivessem levado as ideias.

Apostar nos índios e na diversidade cultural, como nosso futuro comum de não-alheamento, não significa meramente apostar que a erva de algum pajé possa trazer a cura para o câncer. Expor nossas ideias ao contato com outras visões de mundo pode nos curar de coisas muito piores como nossos mesquinhos limites.

A Constituição brasileira de 88 consagrou os direitos coletivos indígenas como base positiva do direito à reprodução cultural. Sequestrar os primeiros é também eliminar os últimos.

O que se perde é mais do que uma diversidade meramente nominal, é a diversidade passiva do multiculturalismo objetificador.

Está se perdendo possibilidades de cidadania. E se está perdendo possibilidades de futuro. Pois é neste cenário e não num passado romântico ou instrumentalmente ecológico, que os índios devem ser construídos.

Referência:
http://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-palavras/os-saberes-indigenas-muito-alem-do-romantismo-8236.html

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 24/10/2019

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