RS: Mina Guaíba e o sucateamento da capacidade de gestão e fiscalização ambiental
Mina Guaíba e o sucateamento da fiscalização ambiental. Entrevista especial com Rualdo Menegat
Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin, IHU
A abertura da Mina Guaíba em uma área de quatro mil hectares entre os municípios de Eldorado do Sul e Charqueadas para a produção de carvão mantém um quadro que se repete no Rio Grande do Sul: “Primeiro, mantém-se o estado em permanente crise fiscal e sucateia-se a capacidade de gestão e fiscalização ambiental. Depois, como o estado está com um garrote na garganta, são oferecidos negócios de extrativismo mineral como tábua de salvação. Força-se, então, a liberação ambiental a todo o custo. Como o estado está sucateado e com capacidade de gestão reduzida a um mínimo, o minerador terá campo livre para driblar leis e trazer impactos ao meio ambiente”, critica o geólogo Rualdo Menegat na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. O interesse estatal por este empreendimento, explica, provavelmente está relacionado à possível abertura de financiamento do estado. “O acesso a esse financiamento e a possibilidade de um projeto de megamineração de carvão estar ambientalmente licenciado abrem inúmeras possibilidades de venda desse negócio ao mercado internacional”, afirma.
Segundo ele, a Mina vai aumentar significativamente a escala de produção de carvão no estado e vai gerar impactos ambientais e sociais no coração da Região Metropolitana de Porto Alegre. “O projeto prevê a exploração de cerca de 166 milhões de toneladas de carvão em um prazo de 23 anos em uma área de 4.373 ha, resultando em sete milhões de toneladas anuais”, ampliando significativamente a atual produção de quatro toneladas anuais.
Entre as implicações ambientais decorrentes deste projeto, Menegat menciona a possibilidade de destruir aquíferos localizados na região. “Para alcançar as camadas de carvão que se situam em torno de 100 metros abaixo da superfície, será preciso remover uma camada superficial de argila, depois um pacote de areia de 30 m, seguido de uma pilha de cascalho de 40 m. Esses dois pacotes formam um aquífero, que deveria, segundo o projeto, ser drenado. Ou seja, esse aquífero que acumula tanta água quanto a metade do volume do lago Guaíba, isto é, em torno de 0,5 km³, será jogado fora para dar lugar às cavas da mineração. Trata-se de uma água limpa, cristalina, que poderia ser uma espécie de tanque de reserva para as cidades da Região Metropolitana, em especial aquelas que captam água para abastecimento no Guaíba. Portanto, a possível mineração não apenas vai remover dois arroios que estão na superfície, o Pesqueiros e o Jacaré, bem como vai destruir um aquífero”. Além disso, adverte, como o único manancial de abastecimento da capital gaúcha é o Guaíba, “caso aconteça um acidente industrial no lago Guaíba, a capital poderá ficar sem água”.
Rualdo Menegat é graduado em Geologia, mestre em Geociências e doutor em Ecologia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde leciona atualmente no Departamento de Paleontologia e Estratigrafia do Instituto de Geociências. Também é assessor científico da National Geographic Brasil, membro honorário do Fórum Nacional dos Cursos de Geologia, membro da International Commission on History of Geological Sciences – IUGS e da International Association for Geoethics. Foi presidente do Fórum Nacional de Cursos de Geologia, entre 2010 e 2014, e diretor do Centro de Investigação do Gondwana, entre 2013 e 2014.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que o Rio Grande do Sul parece estar tão interessado em investimentos do ramo da mineração atualmente? E como compreender esse interesse a partir do caso concreto da Mina Guaíba?
Rualdo Menegat – Não diria que o Rio Grande do Sul esteja interessado nestes empreendimentos, mas sim alguns setores do atual governo que repetem interesses do governo anterior. No caso concreto da Mina Guaíba, o interesse pode estar relacionado com possível abertura de financiamento do estado. O acesso a esse financiamento e a possibilidade de um projeto de megamineração de carvão estar ambientalmente licenciado abrem inúmeras possibilidades de venda desse negócio ao mercado internacional. Por isso devem-se redobrar os cuidados com o licenciamento, pois não se sabe quem poderá gerir a mineração no dia de amanhã. Veja o caso da mineração em Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. O cuidado ambiental da mineração por parte da Vale como companhia estatal era muito maior do que o da Vale como empresa privada internacionalizada. O resultado, como sabemos, foi a produção dos maiores acidentes ambientais no Brasil, que repercutirão ainda nos próximos 50 anos.
Devem-se redobrar os cuidados com o licenciamento, pois não se sabe quem poderá gerir a mineração no dia de amanhã – Rualdo Menegat
IHU On-Line – Num estado em crise fiscal e num momento em que é corrente o discurso de flexibilização da legislação ambiental para fomentar investimentos, quais os riscos na instalação de empreendimentos do ramo da mineração?
Rualdo Menegat – Parece que se trata de um mesmo procedimento. Primeiro, mantém-se o estado em permanente crise fiscal e sucateia-se a capacidade de gestão e fiscalização ambiental. Depois, como o estado está com um garrote na garganta, são oferecidos negócios de extrativismo mineralcomo tábua de salvação. Força-se, então, a liberação ambiental a todo o custo. Como o estado está sucateado e com capacidade de gestão reduzida a um mínimo, o minerador terá campo livre para driblar leis e trazer impactos ao meio ambiente.
IHU On-Line – Qual a sua avaliação sobre o projeto de implantação da Mina Guaíba? O senhor pode nos detalhar como essa atividade mineradora planeja ser realizada?
Rualdo Menegat – O projeto prevê a exploração de cerca de 166 milhões de toneladas de carvãoem um prazo de 23 anos em uma área de 4.373 ha, resultando em sete milhões de toneladas anuais. A produção brasileira anual é em torno de 14 milhões de toneladas e a do Rio Grande do Sul, próxima a quatro. Estamos falando, então, de uma mudança significativa da escala de produção cujos impactos vão ocorrer no coração da Região Metropolitana de Porto Alegre.
O carvão mineral é uma espécie de lixão químico – Rualdo Menegat
Devemos iniciar dizendo que a mineração de carvão não pode ser considerada limpa, isto é, ela produz grandes impactos ambientais e na saúde das pessoas. Isso porque o carvão mineral é uma espécie de lixão químico. Contém cerca de 1,5% de enxofre e nada menos que 59 elementos da tabela periódica, entre os quais minerais pesados, como o cádmio, chumbo, mercúrio, arsênico, e até urânio e tório. Por isso, a mineração de carvão deve ter um plano muito eficiente para controlar a contaminação da água e do ar, sob pena de causar muito prejuízo à saúde da população do entorno.
O projeto da Mina Guaíba prevê mineração a céu aberto. Ou seja, serão abertas cavas em tiras sucessivas de aproximadamente 3 km de comprimento por 300 metros de largura e cem metros de profundidade. O carvão encontra-se alojado em camadas subterrâneas em ambiente praticamente anaeróbico. Ao ser trazido para a superfície, o enxofre que contém entra em contato com o oxigênio da atmosfera e a água das chuvas, cujas reações produzem drenagem ácida de mina, ocasionando pH muito baixo, com valores de até dois. Soluções tão ácidas quanto esta são capazes de dissolver o ferro e transportar metais pesados. Como as cavas poderão acumular água da chuva, o tratamento da drenagem ácida deverá ser muito eficiente. Não está previsto no projeto controle nas cavas por meio de barreiras geoquímicas e tampouco está prevista a proteção da Estação de Tratamento de Efluentes contra as possíveis cheias do Jacuí. Logo, os riscos de contaminação da água do Jacuí são muito grandes.
IHU On-Line – Em que medida a Mina Guaíba pode representar um risco ao Aquífero Guarani, ao Quaternário e ao Delta do Jacuí? E que outros mananciais podem ser ameaçados?
Tabela elaborada pelo entrevistado
Rualdo Menegat – Essa é uma importante questão. Veja, para alcançar as camadas de carvão que se situam em torno de 100 metros abaixo da superfície, será preciso remover uma camada superficial de argila, depois um pacote de areia de 30 m, seguido de uma pilha de cascalho de 40 m. Esses dois pacotes formam um aquífero, que deveria, segundo o projeto, ser drenado. Ou seja, esse aquífero que acumula tanta água quanto a metade do volume do lago Guaíba, isto é, em torno de 0,5 km³, será jogado fora para dar lugar às cavas da mineração. Trata-se de uma água limpa, cristalina, que poderia ser uma espécie de tanque de reserva para as cidades da Região Metropolitana, em especial aquelas que captam água para abastecimento no Guaíba. Portanto, a possível mineração não apenas vai remover dois arroios que estão na superfície, o Pesqueiros e o Jacaré, bem como vai destruir um aquífero.
Além do Delta, há também riscos de contaminação das lavouras de arroz nas terras baixas no entorno do Jacuí – Rualdo Menegat
Além disso, devemos considerar que de todos os rios que deságuam no lago Guaíba, o Jacuí é o que se encontra com menores níveis de contaminação. O Caí, o Sinos e o Gravataí têm altos nível de contaminação. A possível Mina poderá, então, levar o Jacuí a níveis elevados de contaminação. Com isso, poderá elevar-se em muito a contaminação por metais pesados na área do Parque do Delta do Jacuí. Esse parque é um verdadeiro santuário que está nas margens de nossas cidades metropolitanas. É um dos mais preciosos estoques ambientais que temos no Sul do Brasil. A contaminação por metais pesados entra na cadeia trófica e vai danificando todo o ecossistema. Além do Delta, há também riscos de contaminação das lavouras de arroz nas terras baixas no entorno do Jacuí. O arroz, por exemplo, pode acumular cádmio. Esse metal pesado é muito danoso à saúde humana. Costuma acumular-se no pâncreas, causando pancreíte, entre outras enfermidades.
IHU On-Line – O senhor define o Delta do Jacuí como o “amazonas gaúcho”. Gostaria que detalhasse um pouco no que consiste o Delta e qual sua importância para a preservação do ecossistema local?
Rualdo Menegat – O Delta do Jacuí é um conjunto de ilhas que se formou há cerca de 120 mil anos e marca o ponto final da erosão fluvial dos rios Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí. São ilhas que resultam da entrada de um jato de água de um desses rios num corpo de água maior, o lago Guaíba. O jato se desacelera e descarrega a areia e lama que vinha trazendo. Forma-se um banco arenoso que, quando emerso, forma as ilhas. Em fases de inundação, as ilhas acumulam grande quantidade de lama e retém as águas, sendo uma espécie de filtro. O Delta do Jacuí é um espetáculo da natureza, pois nessas ilhas alagadiças instalou-se rica fauna e flora. Seguindo a oeste pela Depressão Periférica, onde corre o Jacuí, logo alcançamos as regiões baixas do rio Paraná e, seguindo agora a norte, do Paraguai. Pronto, logo ali atrás estão o Pantanal e a periferia da Amazônia. Um conjunto de terras baixas da porção interna da América do Sul, entre o Planalto Central do Brasil e os Andes, que se conecta com a Região Metropolitana de Porto Alegre por meio da Depressão Periférica e do Delta do Jacuí. Isso é incrível: temos uma conexão direta com as grandes extensões de terras úmidas do interior do continente. É um verdadeiro santuário ecológico que deve ser preservado e, graças à inteligência de gerações passadas, foi tornado um Parque.
O Delta do Jacuí é um conjunto de ilhas que se formou há cerca de 120 mil anos e marca o ponto final da erosão fluvial dos rios Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí – Rualdo Menegat
IHU On-Line – Quais os impactos desse tipo de mineração na qualidade do ar?
Rualdo Menegat – Uma vez extraído do subsolo, o carvão deverá ser beneficiado, triturado em grãos finos e estocado na forma de grandes pilhas com forma de cone, com até 14 m de altura. Esses verdadeiros morretes compostos por grãozinhos de carvão ficam expostos ao vento, que vai levando o pó de carvão adiante. No caso da Mina Guaíba, os ventos fortes vindos de oeste e sudeste podem levar nuvens de pó de carvão em direção às cidades da Região Metropolitana, impactando a qualidade do ar de cerca de 4,6 milhões de pessoas. Nos verões, esse pó pode acumular-se no ar dessa grande metrópole, formando uma espécie de domo de poeira. Em caso de haver chuvas, as gotículas de água reagirão com o enxofre, podendo originar chuvas ácidas. Nos invernos, a poeira de carvão poderá contaminar as cerrações que costumam ocorrer nas áreas baixas. Nesse caso, os gaúchos poderão mudar o provérbio para: “cerração que baixa, pulmão que racha”, pois esse fenômeno poderá aumentar em muito os problemas respiratórios da população.
O abastecimento de água na Região Metropolitana é uma das mais importantes questões ambientais e, por conseguinte, de saúde pública – Rualdo Menegat
IHU On-Line – Quais são os principais mananciais da Região Metropolitana de Porto Alegre e qual a sua importância tanto para a preservação ambiental como para o abastecimento urbano?
Rualdo Menegat – O abastecimento de água na Região Metropolitana é uma das mais importantes questões ambientais e, por conseguinte, de saúde pública. Os principais rios, como o Sinos, Caí e Gravataí, encontram-se muito contaminados. Por conseguinte, também o lago Guaíbae, ao menos, o rio Jacuí. Vou ilustrar com caso de Porto Alegre, cujo único manancial de abastecimento é o lago Guaíba. Praticamente, a cidade não possui reservatórios de emergência. Caso aconteça um acidente industrial no lago Guaíba — esperamos que isso nunca venha a ocorrer —, a capital poderá ficar sem água. Isso mostra a importância de cuidarmos da água de nossos mananciais. Da mesma forma, mostra o grau de saturação de contaminantes que alcançamos. Por isso, uma provável instalação de uma mina de carvão cujos efluentes serão lançados a 23 km do ponto de captação de água dos porto-alegrenses deve ser evitada. Os mananciais da Região Metropolitanajá se encontram por demais saturados. Lembremos que nessa região há um polo petroquímico, uma refinaria de petróleo, curtumes e indústrias metais–mecânicas. Porém, é preciso observar que processos industriais têm maior controle de suas operações do que uma mina a céu aberto sujeita a tempos severos. Inundações do rio Jacuí, por exemplo, já alcançaram em 1928 a cota de 11,9 m. Se isso ocorresse com a provável Mina Guaíba, a estação de tratamento de efluentes seria lavada pelas águas, contaminando-as severamente, pois o projeto situou-a na cota de 5 m.
Devemos nos perguntar se temos o direito de deixar enorme passivo ambiental à água e à saúde de nossos filhos e netos – Rualdo Menegat
Sempre é bom lembrar que o organismo humano é constituído de 70% de água. Podemos dizer que nós somos a água que bebemos. Por isso, costumo dizer que a água do Guaíba é o nosso destino. O que acontecer ao Guaíba, acontecerá conosco. Elaborei o cartazete abaixo para ilustrar exatamente isso.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Rualdo Menegat – O carvão é uma forma de produção de energia muito agressiva ao ambiente e à saúde das populações. Calcula-se que cada tonelada de carvão explorada ocasione custos de 9,5 dólares ao sistema de saúde. Além dos impactos diretos de uma mina, há também os impactos da combustão que emite gases contaminantes como o nitrogênio e o dióxido de carbono. Atualmente, é o maior responsável pelo aquecimento global. Por isso, é uma fonte de energia ultrapassada em todos os aspectos. Por todas essas razões, o projeto da Mina Guaíba coloca um problema sério de justiça intergeracional. Serão as gerações futuras aquelas que deverão arcar com um possível passivo ambiental que essa mina poderá causar. Devemos nos perguntar se temos o direito de deixar enorme passivo ambiental à água e à saúde de nossos filhos e netos.
Calcula-se que cada tonelada de carvão explorada ocasione custos de 9,5 dólares ao sistema de saúde – Rualdo Menegat
(EcoDebate, 01/08/2019) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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