Relatório mostra que dívida da indústria da carne (R$ 88,1 bi) iguala déficit de estados com a Previdência
Dívida da indústria da carne – Levantamento realizado pelo De Olho nos Ruralistas mostra frigoríficos, abatedouros, pecuaristas, comercializadores e curtumes liderando as dívidas do agronegócio; empresas desconhecidas superam débitos de multinacionais como JBS, BRF e Marfrig
Por Bruno Stankevicius Bassi, De Olho nos Ruralistas
Principal devedora entre os setores do agronegócio, a indústria da carne deve R$ 88,1 bilhões à União. O cálculo é baseado em levantamento feito pelo De Olho Nos Ruralistas com dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Além dos frigoríficos, a conta inclui pecuaristas, curtumes e comercializadores de carne e de animais vivos.
O valor equivale ao déficit previdenciário dos 26 estados brasileiros mais o Distrito Federal, estimado em R$ 88,5 bilhões em 2018, segundo estudo publicado em maio pelo economista Raul Velloso. A reinclusão das unidades federativas na reforma da Previdência é uma das principais bandeiras do ministro da Economia, Paulo Guedes, que já afirmou que renunciaria ao cargo caso sua proposta fosse reduzida pelos parlamentares.
Com 4.169 empresas registradas na relação de devedores inscritos na dívida ativa da União, os frigoríficos contribuem com a maior parcela no passivo do setor da carne, com R$ 42,9 bilhões. Foram consideradas os códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) correspondentes ao abate de reses (CNAE 1011-2), de suínos, aves e outros pequenos animais (CNAE 1012-1) e à fabricação de produtos de carne (CNAE 1013-9).
Na sequência aparecem os criadores de gado bovino, suínos, aves, caprinos e outros animais destinados à pecuária (CNAEs 0151-2 à 0159-8), com R$ 17,5 bilhões; seguidos do comércio atacadista de carnes (CNAEs 4634-6/01, 4634-6/02 e 4634-6/99), com uma dívida de R$ 16,8 bi. Complementam a lista as atividades de apoio à pecuária (R$ 6,0 bi), os curtumes (R$ 3,8 bi) e o comércio de animais vivos (R$ 0,9 bi). A relação inclui apenas pessoas jurídicas.
O valor, no entanto, poderia ser ainda maior, não fosse a adesão, em 2017, da JBS ao programa de refinanciamento de débitos tributários da União, o chamado Refis. Graças ao acordo, o frigorífico comandado pelos irmãos Joesley e Wesley Batista – pivô de dois dos maiores casos de corrupção da história brasileira, investigados nas operações Carne Fraca e Lava-Jato – conseguiu quitar boa parte das dívidas do grupo, recebendo um “desconto” de R$ 1,1 bilhão.
De 1º lugar, a JBS caiu para o meio da tabela, com uma dívida tributária de R$ 26 milhões – 0,6% da dívida anterior da empresa que, no seu auge, chegou a valer R$ 4,2 bilhões. Além da dívida com a União, o frigorífico anunciou na semana passada o pagamento de R$ 2,7 bilhões em dívidas adquiridas com o Banco do Brasil, Bradesco e Santander, com o objetivo de manter as linhas de crédito com os bancos.
FRIGORÍFICO ESTÁ LIGADO A TRABALHO ESCRAVO E DESMATAMENTO
Entre os dez maiores devedores da indústria da carne, nove pertencem ao Grupo Arantes. Juntos, os frigoríficos pertencentes ao conglomerado – Arantes, Franco Fabril, Frigorífico Vale do Guaporé, Olcav, Pádua Diniz, Cheyenne e Brasfri – respondem por 26,4% da dívida total deste segmento junto à União, totalizando R$ 11,3 bilhões.
A família Arantes também encabeça os segmentos de comércio de carnes, com a Sertanejo, a Frigor Hans e a A.D. Hans respondendo por R$ 4,9 bilhões, e de pecuária e apoio, com a O.L.A. Agropecuária Ltda, Agropecuária FBH e duas fazendas dos sócios Aderbal Luiz Arantes e de seu filho, Aderbal Luiz Arantes Junior, devendo R$ 1,5 bilhão cada. Ao todo, a dívida do grupo no setor chega a R$ 22,3 bilhões, valor duas vezes maior que o Produto Interno Bruto de Roraima.
A primeira colocação, no entanto, não está com nenhuma empresa do Grupo Arantes. Com uma dívida total de R$ 2,6 bilhões, quem aparece no topo da lista é o Frigorífico Porto Ltda. Desde 2009, a companhia de Rondônia é alvo de um inquérito do Ministério Público Federal (MPF), que tenta apurar a responsabilidade por supostos crimes contra a ordem tributária cometidos por seus administradores.
O processo chegou a ser arquivado em 2014 e foi reaberto um ano depois após serem apontados como sócios Roberto Demário Caldas e Mário Caldas, donos de outro abatedouro em processo de falência, o Frigorífico Novo Estado, em Cacoal (RO), com uma dívida mais acanhada, de R$ 7 milhões. Também pertencente aos Caldas, o Frigorífico Santa Elvira, no mesmo município, possui um passivo de R$ 1,4 milhão.
Os dois já eram investigados pelos procuradores por fraude cometida em 2004, após fecharem a empresa apenas dois meses após terem recebido um financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no valor de R$ 8,7 milhões. Em 2017, a Justiça de Rondônia ordenou a penhora de 2.920 cabeças de gado pertencentes a Roberto, conhecido em Rondônia como “rei do gado“, e seu filho, Guilherme Caldas.
As acusações que pesam contra Roberto Demário Caldas vão além das dívidas tributárias. Entre 2004 e 2010, seu nome aparecia na “lista suja” do trabalho escravo, após 314 trabalhadores terem sido resgatados em suas propriedades, em sucessivas operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho. Na maior delas, em 2010, realizada na Fazenda Mequéns, em Pimenteiras do Oeste (RO), foram libertadas 219 pessoas.
Em 2007, a fazenda foi autuada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) pelo desmatamento ilegal de 5.911 hectares na zona de amortecimento do Parque Estadual de Corumbiara. Segundo relatóriodo Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), Caldas teria sido o principal beneficiário de um projeto de lei aprovado em 2002 pela Assembleia Legislativa de Rondônia que reduziu 40 mil hectares no perímetro do parque.
O pecuarista aparece ainda em uma ação civil pública contra a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Ambiental (Sedam), acusada pelo Ministério Público Federal (MPF) de negligência após ter deixado que expirassem cinco autos de infração lavrados contra Caldas em 2004.
DE AVESTRUZ A DIESEL, EMPRESAS ESTÃO ENVOLVIDAS EM FRAUDES
As dívidas bilionárias não se resumem ao Grupo Arantes e ao Frigoporto. Com 31 empresas na relação de devedores da indústria de carnes, o Frigorífico Margen acumula R$ 1,2 bilhão em dívidas com a União.
Considerada o 2º maior frigorífico do Brasil no começo dos anos 2000, com 21 unidades de abate, a Margen viu seu império declinar a partir de 2004, quando uma operação da Polícia Federal prendeu Mauro Suaiden e Geraldo Prearo, sócios do grupo goiano, acusados de lavagem de dinheiro, sonegação de impostos, formação de quadrilha e apropriação indébita de contribuição da Previdência Social, estimada na época em R$ 85 milhões.
Os dois foram absolvidos, mas o impacto já estava consolidado. Nos anos seguintes, a Margen demitiu 8 mil trabalhadores e vendeu boa parte de suas unidades, mas segue em operação, agora como Total S/A, sem ter quitado as dívidas trabalhistas. Em 2017, a pedido do senador Paulo Paim (PT-RS), representantes da empresa foram convidados a participar junto a outros quatro frigoríficos – JBS, Marfrig, Nicolini e Swift Armour – de um audiência pública da CPI da Previdência. Nenhum sócio da Margen compareceu.
Em 17º lugar na lista aparece a Avestruz Master, cuja falência foi decretada em 2006. Com seis empresas inscritas na dívida ativa da União – Avestruz Master, African Black Tecnologia, Struthio Master, JRF Aves e Struthio Gold – o grupo de criação de avestruzes acumula um passivo de R$ 863 milhões. Sediado em Goiânia, o grupo oferecia contratos de compra e venda de avestruzes para engorda com compromisso de recompra dos animais, garantindo o lucro através da exportação, em um esquema de pirâmide. Após a quebra do esquema em 2005, sem ter abatido uma única ave, os sócios do grupo fugiram para o Paraguai, lesando mais de 40 mil investidores que apostaram no negócio.
Logo depois vem a Guaporé Carnes, com uma dívida de R$ 823 milhões. A insolvência da empresa em 2012, considerada até então um dos maiores frigoríficos mato-grossenses, propiciou a expansão da JBS no estado. O arrendamento das unidades da Guaporé garantiu ao grupo dos irmãos Joesley e Wesley Batista o controle de 48% do abate de bovinos no Mato Grosso.
Completa a lista dos vinte maiores devedores a Indústria Frigorífica Norte Colidense, a Fricol, com um passivo de R$ 784 milhões. A dívida da empresa, no entanto, não se deve à atividade agropecuária. Em 2013, fiscais da Agência Nacional de Petróleo (ANP) e da Delegacia de Polícia Fazendária do Mato Grosso flagraram a comercialização irregular de óleo diesel em um posto de abastecimento dentro da chácara São Francisco, de propriedade da Fricol e de seus sócios Creudevaldo Birtche e Ovaldir Barris Mançano. Birtche aparece na lista de devedores da PGFN com um débito de R$ 775 milhões.
BRF E MARFRIG DEVEM JUNTAS R$ 281 MILHÕES
Anunciada no fim de maio, a fusão dos frigoríficos Brasil Foods (BRF) e Marfrig Global Foods pode gerar não apenas um colosso do agronegócio global, mas também um colosso de dívidas.
A BRF S.A, controladora de marcas como Sadia, Perdigão e Qualy, possui um passivo tributário de R$ 201 milhões. O grupo foi um dos mais impactados pela operação Carne Fraca que, em 2018, prendeu Pedro de Andrade Faria, ex-presidente-executivo, e outras nove pessoas ligadas à empresa, acusadas de fraudar laudos relacionados à presença de salmonela exigidos para a exportação dos produtos em 4 unidades da BRF, levando a um prejuízo de R$ 2,1 bilhões no 4º trimestre de 2018. Em fevereiro, 164 toneladas de frango foram recolhidas das prateleiras por suspeita de salmonela.
A Marfrig, por outro lado, vive um ótimo momento. Em 2018, a empresa se consolidou como segunda maior produtor de carne bovina no mundo, atrás apenas da JBS. Mesmo assim, acumula uma dívida ativa de R$ 80 milhões com a União. Assim como a BRF, a Marfrig possui um histórico de fraudes sanitárias. Em 2012, o MPF ingressou com uma ação civil pública acusando a empresa de realizar o pagamento de servidores do Serviço de Inspeção Federal de Tangará da Serra (MT) em troca de facilidades da obtenção da certificação sanitária internacional.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 01/07/2019
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