O Ocaso da Política Ambiental brasileira, artigo de Cristiana Losekann
O Ocaso da Política Ambiental brasileira, artigo de Cristiana Losekann
IHU
“Para compreender na conjuntura atual o que está em risco na política ambiental brasileira é preciso recuperar um pouco da trajetória dessa política ao longo da história do Brasil. Eu farei essa retomada chamando atenção para o ponto que eu penso que seja o cerne das atuais propostas de mudanças e que é também aquele que caracteriza de forma marcante a política ambiental brasileira“, escreve Cristiana Losekann, cientista política.
Eis o artigo.
Na contramão do pensamento de boa parte do mundo sobre o processo de mudanças climáticas que estamos vivendo, também, na contramão de diversos países que restringem agrotóxicos, começam a proibir materiais plásticos e controlam ferozmente a emissão de gases, o atual governo brasileiro decide irresponsavelmente e levianamente nos conduzir para a contramão de nossa própria história. Sim, contramão da nossa própria história, pois já no século XVIII era possível encontrarmos uma reflexão acerca dos nossos “problemas ambientais”. Nessa época, José Bonifácio, quando escreveu sobre a caça das baleias no Brasil, já havia articulado as noções de respeito e afeto pela natureza com a percepção de que a sociedade inserida nesse sistema maior de vida dependeria de sua manutenção em equilíbrio.
Para compreender na conjuntura atual o que está em risco na política ambiental brasileira é preciso recuperar um pouco da trajetória dessa política ao longo da história do Brasil.
Eu farei essa retomada chamando atenção para o ponto que eu penso que seja o cerne das atuais propostas de mudanças e que é também aquele que caracteriza de forma marcante a política ambiental brasileira. Essa característica tão marcante da nossa política ambiental é uma concepção de responsabilidade compartilhada na proteção da natureza, entre Estado e sociedade.
Existem diversos modelos de política ambiental no que diz respeito a competência e responsabilidade da proteção da natureza, alguns países adotaram um modelo totalmente estatal e outros adotaram modelos privatistas onde a proteção não é simplesmente da sociedade, mas, exclusivamente privada.
No Brasil nós temos adotado legislativamente, desde pelo menos a década de 1930, essa ideia de que para que a gente possa proteger a natureza o melhor seria um modelo de compartilhamento da responsabilidade entre a sociedade e o Estado. Essa concepção está expressa em diferentes instituições nossas e formulada a partir das diferentes concepções de natureza e de problemas ambientais que foram se desenvolvendo ao longo desses anos na nossa esfera pública. É preciso então observar que existem diversas formas de conceitualizar a natureza e de construir aquilo que caracteriza o problema ambiental.
Para melhor compreendermos os significados das mudanças em curso eu proponho entendermos que esse compartilhamento pode ser pensado em termos de dois sentidos centrais atribuídos à natureza e que estão presentes concomitantemente na nossa política. O primeiro deles é o que concebe a natureza como recurso, mas que compreende que esta se configura em um sistema de vida independente dos homens e, portanto, que precisa de um tratamento adequado para que não seja esgotada, o que se reverteria em um mal maior para as atividades econômicas. Essa ideia está na nossa trajetória expressa no código ambiental de 1934 (Decreto 23.793/34) que obrigava os donos de terras a manterem 25% da área de seus imóveis com a cobertura de mata original. O objetivo era garantir a existência de madeira para lenha e carvão que estava acabando em função do desmatamento. Por outro lado já havia a ideia de “florestas protetoras”, o que mais adiante se transformou nas áreas de preservação permanente (APPs).
Essa ideia de que a natureza precisa ser preservada para o bem de nossas próprias necessidades econômicas acompanha nossa trajetória institucional até hoje. Dessa ideia se origina um tipo de modelo de compartilhamento focado em uma concepção de “serviços ambientais”, ou seja, a própria natureza seria provedora de serviços que são essenciais para a manutenção das nossas atividades econômicas. Essa concepção produziu um tipo específico de política de compartilhamento da proteção ambiental entre Estado e sociedade caracterizado de forma central pelo instituto da “reserva legal”, que é uma área localizada no interior de uma propriedade rural, privada ou pública destinada ao uso sustentável dos recursos naturais (ela não é intocável, mas o proprietário deve garantir as suas condições de sustentabilidade).
O segundo sentido atribuído à natureza surge com mais intensidade a partir da década de 1970 e vai conquistar materialidade institucional mais fortemente a partir da década de 1980. Trata-se da compreensão da natureza como possuidora de um valor em si mesma. Essa noção está presente na Política Nacional de Meio Ambiente e na Constituição Federal de 1988. Dentro dessa perspectiva, não só produtores rurais e proprietários de terras, mas toda a sociedade é responsável pela proteção da natureza que deve inclusive ser preservada para as futuras gerações. O reconhecimento institucional dessa complexificação da noção de natureza e da própria concepção de problemas ambientais demandará novos instrumentos e novos arranjos institucionais. Assim, é criado o Sistema Nacional de Meio Ambiente e o Conselho Nacional de Meio Ambiente, além de diversas outras instituições caracterizadas pelo compartilhamento do poder de formular e decidir sobre a política ambiental do país. Aqui, além do Estado é a sociedade civil através de suas formas organizativas que tem a responsabilidade de proteger a natureza.
Nós podemos, então, genericamente pensar nos institutos da política ambiental relacionados a três mecanismos diferentes de compartilhamento da proteção ambiental: a reserva legal que estaria ligada ao mecanismo de corresponsabilidade; os colegiados participativos ligados ao mecanismo de participação política; e, ainda, os dispositivos legais tais como a lei da ação civil pública e dos crimes ambientais funcionando como mecanismos de controle. A ação civil pública ambiental que prevê algo que é muito importante e poderoso, a possibilidade da própria sociedade civil utilizá-la mesmo contra o Estado, já que ela não coloca em discussão a legalidade do ato em julgamento, mas o dano ao meio ambiente. Assim, mesmo que uma decisão seja legítima, se ela causar um dano ambiental poderá ser revogada. Esses três mecanismos correspondem a distintos espaços onde atores do Estado e da sociedade atuam no compartilhamento de suas responsabilidades ambientais.
Pelo menos dois desses três mecanismos estão sendo destruídos pelo governo atual: a reserva legal e os colegiados participativos. Eu gostaria de chamar atenção para o fato de que não são apenas os institutos que estão sendo destruídos, mas o que eles representam enquanto mecanismos que cumprem a função de garantir o compartilhamento da responsabilidade de proteção entre Estado e sociedade. Nesse sentido é importante compreendermos o que perdemos ao perder tais instrumentos da política ambiental. Sendo assim, explico um pouco do funcionamento de alguns deles com mais detalhes.
O CONAMA Conselho Nacional de Meio Ambiente, que está agora sendo desmantelado é sem dúvidas um dos principais modelos institucionais de espaço colegiado onde se encontram atores interessados na política ambiental. É um exemplo mundial, comparado mesmo a um parlamento. Criado em 1981 pela lei 6.938 ele tem caráter consultivo, deliberativo e normativo. Tem poder de estabelecer resoluções, recomendações e decidir sobre multas aplicadas pelo IBAMA. Ali se encontram representantes de cinco setores, a saber: órgãos federais, estaduais e municipais, setor empresarial e sociedade civil. Em sua estrutura interna estão previstos espaços para discussão e dissenso, plenária, assessoria técnica etc.
A importância efetiva dele pode ser observada pelo grau de relevância que todos os setores lhe atribuem, tendo alto nível de quórum em suas reuniões. Além disso, ele apresenta uma concepção bastante sofisticada da noção de sociedade civil abrigando povos indígenas, quilombolas, ONGs, usuários de recursos, sindicatos etc. Apresenta assim, um tipo de participação representativa combinando representação de pessoas e comunidades, interesses e discursos, o que constitui, do ponto de vista das já altamente debatidas teorias da democracia participativa e deliberativa, um modelo valioso. Quando, em 2007, entrevistei ambientalistas de diversas organizações todos foram unânimes ao afirmar que se tratava de um importante colegiado participativo. Por isso, ao observarmos que a representação da sociedade civil com o atual decreto − sobre o qual falaremos mais adiante nesse texto −, caiu de 22 cadeiras para 4, já podemos antever que todo o potencial de diversidade compreendido no conceito de sociedade civil será tolhido.
Além disso, é preciso dizer que o Ministério de Meio Ambiente e seus órgãos, tais como, o IBAMA, passaram por um processo importante de estruturação e institucionalização no início dos anos 2000. Segundo gestões passadas do Ministério do Planejamento, em 2003, 95% da força de trabalho do Ministério do Meio Ambiente não era de servidores concursados, mas de trabalhadores terceirizados, temporários ou comissionados. Ou seja, ao longo dos anos o setor foi se tornando mais estruturado e, ainda que longe do ideal, já apresentava uma condição maior de cumprir com suas funções.
Outra iniciativa importante que inovou os mecanismos de participação política ambiental foram as Conferências Nacionais de Meio Ambiente que se iniciaram na gestão de Marina Silva e traziam uma característica diferente do CONAMA, já que seu objetivo era, fundamentalmente, construir uma base popular para as causas ambientais, engajando a sociedade na construção de um pensamento acerca do meio ambiente desejável. As Conferências ocorriam desde os municípios, passando por Estados até chegar na Conferência nacional; envolviam grandes públicos e ocorreram em quatro edições sendo a última em 2013.
Mas, observem que com toda essa estrutura complexa e de múltiplas iniciativas de abertura, ainda tivemos grandes problemas e grandes enfrentamentos judiciais visando à proteção ambiental. Esse foi o caso, por exemplo, dos transgênicos que passaram por diversos processos judiciais através, sobretudo, do uso das ações civis públicas, mas também de ações diretas de inconstitucionalidade. Da mesma forma, os grandes empreendimentos de infraestrutura do PAC foram em sua maioria objeto de questionamento judicial em um nível de disputa jamais visto em nossa história, envolvendo diversas Cortes e múltiplos atores tensionados entre estado e sociedade. Este foi o caso do chamado novo código florestal de 2012, que após discussão de 10 anos (entre 2009 e 2019) foi acordado entre diferentes setores passando inclusive por apreciação do STF.
A destruição em curso
O Novo código Florestal de 2012 foi fruto de muitas discussões e alvo de críticas de ambientalistas. Sob o argumento da necessidade de gerar segurança jurídica para o produtor, na prática, muitos argumentam que ele representa uma diminuição da proteção. Além disso, criou uma espécie de anistia a muitos desmatadores e permitiu o desmatamento de áreas que deveriam ser protegidas segundo a Constituição (alguns desses pontos foram revistos pelo STF). Outro ponto polêmico é que ele amplia a competência dos estados para legislar.
Com tudo isso podemos ficar admirados ao vermos ambientalistas defendendo a sua implementação no contexto atual. Ocorre que as iniciativas em curso no Congresso, capitaneadas pela base do atual governo, tornam o cenário legislativo ambiental muito pior.
Esse é o caso das tentativas de extinção do instituto da “Reserva Legal”. Recentemente, essa ideia foi apresentada na votação da Medida Provisório 687 que, em princípio, apenas prorrogava o prazo dos Programas de Regularização Ambiental (PRAs) – prorrogado cinco vezes já. O problema da MP é que junto a ela foram feitas 35 emendas que representam mudanças importantes no tão debatido Novo Código Florestal. Entre elas, a redução drástica da Reserva Legal (RL), a concessão de novas anistias a multas ambientais, e a permissão para implantação de aterros sanitários em Áreas de Preservação Permanente (APPs). A MP foi aprovada com as emendas na Câmara dos Deputados, mas perdeu a validade (o popularmente chamado “caducou”) no Senado, não tendo, portanto, qualquer efeito. No entanto, a base do governo já declarou que pretende levar esse debate novamente ao Congresso, desrespeitando o processo democrático através do qual se aprovou o Novo Código – gostemos dele ou não. Voltando a nossa tradição histórica de política ambiental, ao colocar em risco a reserva legal o governo rompe, portanto, com um dos princípios da nossa política ambiental de compartilhamento da proteção, destruindo um mecanismo fundamental que é o da corresponsabilidade.
Mas, o decreto 9759/2019 foi além, anunciando a desestruturação dos órgãos colegiados participativos que atuam de forma vibrante dando conteúdo efetivo para ações da nossa política ambiental. O CONAMA passou de 93 para 23 conselheiros e diversos setores saíram perdendo: foi reduzida a participação de estados e municípios, de setores da economia e, sobretudo da sociedade civil. Se considerarmos as diversas e amplas atribuições do conselho já podemos vislumbrar a paralisia do setor, além das perdas em termos de construção democrática da política pública. Assim, o governo rompeu com mais um dos princípios da nossa política ambiental de compartilhamento da proteção, destruindo um mecanismo fundamental que é o de participação.
A limitação da participação da sociedade e da responsabilidade do produtor, restringindo as responsabilidades de proteção ambiental no Estado, ao mesmo tempo em que desmantela os órgãos de controle e fiscalização (alguns exemplos são a desestruturação e precarização de agências reguladoras e fiscalizadoras, o aviso prévio de fiscalização, a revisão de áreas de proteção ambiental, reservas e parques) marca o ocaso da nossa política ambiental construída com tanto esforço e pactuada desde seu início pelo princípio do compartilhamento da proteção entre Estado e sociedade.
Ao observar toda a nossa trajetória de pensamento e de instituições ambientais cabe questionar se um governo tem legitimidade para promover uma desestruturação dos instrumentos de proteção ambiental, e um processo agressivo de limitação à possibilidade de a sociedade exercer aquele que é não apenas seu direito, mas também, seu dever, de ser corresponsável pela política ambiental do país.
(EcoDebate, 17/06/2019) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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