Áreas Protegidas: Por que, pra que e pra quem? Parte II, artigo de Ricardo Luiz da Silva Costa
Áreas Protegidas: Por que, pra que e pra quem? Parte II, artigo de Ricardo Luiz da Silva Costa
Por Ricardo Luiz da Silva Costa1
O sistema de Áreas Protegidas vigente no Brasil.
Em rigor, no Brasil, diferente de outros países do mundo, a concepção de Área Protegida (AP) se confunde com o conceito de Unidade de Conservação (UC), muito embora existam outras tipologias de Áreas Protegidas (APs), além das Unidades de Conservação (UCs).
Atualmente as UCs encontram-se sistematizadas por meio do já conhecido Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC); bem como, do pouco conhecido Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP).
De acordo com a legislação vigente (Lei 9985/2000), o SNUC cuida especificamente de suas Unidades de Conservação (UCs), classificadas em duas categorias de manejo, as de Proteção Integral e as de Uso Sustentável.
Por outro lado, tendo em vista adequar o Brasil aos compromissos firmados na Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), conforme o Decreto 2519/1998, o governo brasileiro em 2006 instituiu o PNAP (Decreto 5758/2006), ressignificando o conceito de AP que ficou mais abrangente, incluindo também, além das UCs, as Terras Indígenas, as Terras Quilombolas, as Áreas de Preservação Permanente, as Reservas Legais, e as Áreas de Reconhecimento Internacional2. Sendo estas últimas tratadas no âmbito do SNUC.
Segundo MEDEIROS, em seu estudo intitulado Evolução das tipologias e categorias de Áreas Protegidas no Brasil, acerca dessa dicotomia concernente ao significado de UCs e APs na legislação ambiental brasileira, assim esclarece:
“O SNUC, apesar do inegável avanço que proporcionou à questão das áreas protegidas no Brasil, não conseguiu atingir plenamente sua pretensão inicial de criação de um sistema que pudesse integrar, por meio de um único instrumento, a criação e gestão das distintas tipologias existentes no País. Se, por um lado, ele tem o mérito de racionalizar e otimizar em parte esta questão, ele também aprofundou a divisão existente entre as diferentes tipologias de áreas protegidas que ficaram excluídas do seu texto.” (Medeiros,2006)
Com efeito, o citado pesquisador se refere à situação diferenciada das UCs, em termos de esforços de gestão e efetividade em relação às diferentes tipologias de APs existentes no Brasil, que sequer possuem regras básicas de uso quanto mais seus principais instrumentos de gestão, quais sejam, o plano de manejo, ou de gestão, e o conselho gestor. as Áreas de Preservação Permanente (APPs); as Reservas Legais (RLs); as Terras Indígenas (TIs); e as Áreas de Reconhecimento Internacional (ARIs). E nessa relação ainda se soma as Terras Quilombolas (TQs), e algumas Áreas Militares (AMIs) na Amazônia, geralmente localizadas adjacentes a TI, conforme revela o IPAM et alli (2009)3.
Entretanto, tais tipologias subsistem institucionalmente excluídas do SNUC, dispersas em diferentes instâncias administrativas e desligadas das políticas e ações previstas ao fomento e fortalecimento das UCs, muito embora aquelas compartilhem às mesmas aspirações conservacionista e preservacionista das UCs. Porém, com o advento do PNAP (Dec. n° 5758/2006), é possível que parte dessa situação problemática possa ser resolvida, pelo viés da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), que “prevê o desenvolvimento de estratégias para estabelecer sistema abrangente de áreas protegidas, ecologicamente representativo e efetivamente manejado, integrado a paisagens terrestres e marinhas mais amplas até 2015”; de modo a integrar os demais tipos de APs existentes no País, além das UCs, tendo em vista ampliar, estruturar, e fortalecer a governança do sistema, promovendo assim maior eficiência e eficácia do SNUC, e consequentemente, consolidar uma estratégia política de gestão setorial sistêmica e efetiva, porém, que contemple as particularidades de todos os componentes do sistema.
Acerca disso, mais uma vez recorremos a MEDEIROS, que observa:
“Ao consolidar, mesmo que não intencionalmente, as Unidades de Conservação como tipologia dotada de maior visibilidade e expressão, e dotá-las de instrumentos mais concretos de gestão, as outras tipologias que ainda continuaram a existir mesmo após a criação do SNUC – as APPs, as RL, as TIs, as ARIs – continuaram relegadas aos mesmos problemas históricos de gestão e, mais grave, não dispondo de instrumentos de integração e articulação com as ações previstas para as Unidades de Conservação.”(Medeiros, 2006).
Dessa forma, deve ser considerada pertinente, e alvissareira, a observação presumível de Medeiros (2006), quando se posiciona ante ao atual modelo do SNUC e propõe:
“A necessidade de discussão de um novo sistema mais amplo e orientado ao ordenamento das áreas protegidas no Brasil – o Sistema Nacional de Áreas Protegidas (SNAP) – cuja instituição poderia em definitivo contribuir para a integração das distintas tipologias, ações e estratégias hoje em curso no País.” (Medeiros, 2006).
Por fim, segundo sugere esse autor, eis a questão de fundo: Ao invés de Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), não seria mais inteligente e efetivo ao ordenamento e gestão do conjunto das APs do País, o Sistema Nacional de Áreas Protegidas (SNAP)?
No quadro a seguir, para contextualizar e resumir, vamos demonstrar as diferentes modalidades de APs atualmente existentes no Brasil, suas bases legais, categorias de manejo, e instrumentos de gestão.
-
Tipologias
Categorias de Unidades
Base legal
Categoria de Manejo
Instrumentos de gestão
SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação – compreende as UCs Federais, Estaduais e Municipais.
USO SUSTENTÁVEL: Floresta Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de Desenvolvimento Sustentável, Reserva Particular do Patrimônio Natural, Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse Ecológico, Reserva de Fauna, Reserva da Biosfera.
Constituição Federal – Art.225; Lei 9985/2000 e demais normas complementares.
Constituições Estaduais, Leis Orgânicas Municipais e demais normas complementares
São manejadas em regime de conservação, isto é, com uso direto dos recursos ambientais para fins econômicos de rendimento sustentado. Quer dizer, considera a presença e benefício direto de população humana, sem, contudo, a destruição das fontes primárias de produção dos ecossistemas naturais. Neste caso, os beneficiários diretos são os povos extrativistas e outros tradicionais locais.
Plano de Manejo e Conselho Gestor.
Em alguns Estados da Federação é adotado o termo Plano de Gestão, de igual significado a Plano de Manejo
PROTEÇÃO INTEGRAL: Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque, Monumento Natural, Refúgio da Vida Silvestre.
Idem.
São manejadas em regime de preservação, ou seja, sem aproveitamento direto dos recursos naturais. O tipo de manejo aqui é estritamente para finalidades ecológicas e científicas.
Idem.
TERRA INDÍGENA
OCUPAÇÃO TRADICIONAL: Área reconhecida pelo Estado Brasileiro, destinada a posse permanente e usufruto exclusivo de povo indígena.
Constituição Federal – Art.231; Lei 6001/1973 e demais normas complementares.
São manejadas em regime de conservação, com uso direto dos recursos ambientais, podendo ser para fins econômicos, porém, de modo a garantir a manutenção do ambiente natural necessário à vida e à cultura das populações indígenas.
Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA).
Ainda não há oficialmente nenhuma instância de controle e governança do PGTA.
RESERVA INDÍGENA: Área adquirida, ou doada por terceiros, destinada a posse permanente e usufruto exclusivo de povo indígena.
Idem.
São manejadas em regime de conservação, com uso direto dos recursos ambientais, podendo ser para fins econômicos, porém, de modo a garantir a manutenção do ambiente natural necessário à vida e à cultura das populações indígenas.
Idem.
TERRA QUILOMBOLA
TQ: Área reconhecida pelo Estado Brasileiro aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando tais territórios.
Constituição Federal – Art. 68 – ADCT e Decreto 4887/2003, e demais normas complementares
São manejadas em regime de conservação, isto é, com uso direto dos recursos ambientais para fins econômicos de rendimento sustentado. Quer dizer, considera a presença e benefício direto de população humana, sem, contudo, a destruição das fontes primárias de produção dos ecossistemas naturais. Neste caso, os beneficiários diretos são os povos quilombolas.
Ainda não tem.
ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE
APP: criadas no bojo do Código Florestal, com a finalidade ecológica de proteção vegetacional das nascentes e dos cursos d’águas e da biodiversidade associada nesses ambientes naturais dentro do território nacional.
Constituição Federal – lei 12651/2012-Código Florestal, e demais normas complementares.
Pertencem a categoria de Proteção Integral.
Ainda não tem.
Depende da consciência e boa vontade do proprietário do imóvel rural. Do poder público e da sociedade em geral.
RESERVA LEGAL
RL: criadas no bojo do Código Florestal, com finalidades ecológicas e econômicas, mediante instrumento técnico adequado ao uso, dentro de todo imóvel rural, conjugando uso econômico dos recursos naturais, mais esforços de proteção à biodiversidade associada nesses ambientes naturais, dentro do território nacional.
Constituição Federal – lei 12651/2012-Código Florestal, e demais normas complementares.
Pertencem a categoria de Uso Sustentável.
Ainda não tem.
Depende da consciência e boa vontade do proprietário do imóvel rural. Do poder público e da sociedade em geral.
Quadro 1 – situação atual das diferentes modalidades de APs existentes no Brasil .
Conforme dá para depreender, a partir do Quadro-1, é notória e, ao mesmo tempo, desafiadora essa situação das APs no País. Ao tempo em que, também, não há como não reconhecer o quanto já se avançou ao longo de quase 40 décadas de história da política ambiental do País, e de modo especial no tocante às APs, conforme preconiza a Lei 6938/1981, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, e considera em seu Art.9º, como um de seus instrumentos:
“A criação de espaços territoriais especialmente protegidos pelo poder público federal, estadual e municipal, tais como, áreas de proteção ambiental, de relevante interesse ecológico e reservas extrativistas. ”
Além disso, todo o arcabouço jurídico e normativo vigente no País, que regula esta matéria, a CDB, o SNUC, o PNAP, etc., também, já granjeou avanços significativos ao fortalecimento desse importante segmento da vida nacional. Por isso, não há como aceitar sossegado qualquer ideia ou iniciativa que venha de encontro a todo esse progresso ativo do setor ambiental do País, e em contínua construção. Não há dúvidas que, a maioria da sociedade brasileira, da Pátria Amada Brasil, se corretamente esclarecida jamais quererá ou aceitará retrocessos no setor ambiental do País.
Para capitular, e concluir, a favor da importância e relevância da presença desses espaços naturais, especialmente protegidos e administrados, quer seja, em áreas federais, estaduais ou municipais, avalia-se que a sociedade em geral precisa modificar seu olhar e a sua percepção, sem preconceitos ou extremismos, em relação às UC’s e demais AP’s distribuídas pelo território nacional. E passe a enxergá-las do ponto de vista otimista, potencialmente produtivas e rentáveis, como uma área natural propiciadora de bens e serviços, de oportunidades e riquezas, de proteção e produção para a sociedade e à própria natureza. Quer dizer, em rigor, as AP’s exercem funções diversas, de produção, no papel de reserva patrimonial e poupança em termos de matérias primas e insumos, inclusive a água (o liquido vital), atualmente deficitários em outras áreas consideradas não-protegidas no mundo inteiro; de proteção, na medida em que, por exemplo, regulam os ciclos hídrológicos e climáticos, asseguram os processos biológicos de conservação e preservação dos recursos da biodiversidade, e amortecem impactos negativos resultantes de ações predatórias e deletérias da civilização moderna; de cunho social, sobretudo, na possibilidade de geração de oportunidades de trabalho e renda, a partir do manejo técnico dos recursos disponíveis nessas áreas especiais; no fomento a atividades culturais e turísticas; no desenvolvimento de estudos, de ciência e tecnologia, em prol da humanidade.
Assim, tais espaços públicos e privados, se bem administrados, podem servir como fatores de produção e desenvolvimento local e regional, à disposição e a favor da sociedade em geral. E não o contrário conforme muitos apregoam e defendem, no sentido da redução, e em certos casos até propondo a extinção, de APs, como é o caso do projeto de lei n° 2362/2019, que ora tramita no Senado, de autoria dos senadores Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e Márcio Bitar (MDB-AC) que prevê o fim da Reserva Legal, que hoje compõe a área de cobertura vegetal nativa das propriedades rurais no País, em que, pela norma vigente, pode ser feito o aproveitamento econômico dos recursos disponíveis nela, porém, mediante manejo sustentado, enquanto que, pela norma proposta levará ao corte raso da vegetação nativa, seja floresta, cerrado, caatinga, campinas, etc. Este é um exemplo de retrocesso grave, resultante de visões míopes e preconceituosas de certos segmentos da sociedade nacional, em relação a presença de APs, nas paisagens rurais (e urbanas) do Brasil. Enfim, por isso que, mais do que nunca, torna-se justo e necessário fazer o bom combate pelas luzes do conhecimento e da verdade a favor da vida, do homem e dessas APs. É como diz a máxima cristã: “Conhecereis a verdade e ela vos libertará”.
Atenção> Por enquanto é só. Nas próximas edições abordaremos outros tópicos atinentes ao tema. Até a próxima.
1 Engenheiro Florestal, Especialista em Gestão Florestal e Mestre em Gestão de Áreas Protegidas.
2 Reservas da Biosfera, Sítios RAMSAR, e Sítios do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural.
3 Redução das emissões de carbono do desmatamento no Brasil: o papel do Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA) – MMA, UFMG, IPAM, WHRC, WWF, págs. 05 – 09 (2009).
Nota da Redação: para acessar a primeira parte deste artigo clique aqui.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 07/06/2019
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