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Artigo

O zero é uma das maiores invenções da humanidade, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

“E se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Eu tenho que subir aos céus
Sem cordas prá segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar!”

Se Eu Quiser Falar Com Deus, Gilberto Gil

 

O zero é uma das maiores invenções da humanidade

 

zero

 

[EcoDebate] O zero é uma das maiores invenções da humanidade, equivalente à invenção da roda. Aliás o zero e a roda possuem o mesmo formato. A descoberta do zero foi um ponto de inflexão na história humana.

Os números naturais como um, dois e três têm uma contrapartida no mundo sensorial. Podemos contar uma, duas, três ou mais árvores. Podemos numerar e ordenar o nascimento dos filhos e das gerações. Podemos contar e ver uma vela acesa. Mas não podemos contar e ver o zero na natureza.

Números imaginários não existem, mas são cruciais para entender os sistemas numéricos e os sistemas elétricos. O zero nos ajuda a entender que podemos usar a matemática para pensar sobre coisas que não têm contrapartida em uma experiência física vivida.

O Império Romano – com toda a sua força e grandeza – foi incapaz de inventar e incorporar o zero. Os romanos escreviam 503 como DIII e 99 como XCIX. O difícil é fazer a conta DIII + XCIX. Os algarismos romanos não foram desenvolvidos para desenvolver cálculos, mas para registrar quantidades. Um sistema numérico complicado dificulta o desenvolvimento da ciência e da economia.

O primeiro uso do zero surgiu na escrita posicional. Por exemplo, utilizando o ábaco, o número 503 era representado como 5 3. Existia um vazio entre o 5 e o 3. A palavra criada pelos hindus para designar a ausência de unidades foi sunya, que significa vazio. Desta forma, a leitura do número 503 era “cinco sunya três”. O vazio é um marcador, permitindo entender que esse número é quinhentos e três, e não 53.

Se o zero tivesse permanecido simplesmente como um dígito posicional, de espaço reservado, teria sido uma ferramenta profunda por si só. Mas por volta do século VII, na Índia, o zero se tornou um próprio número, o que significou um salto qualitativo. O matemático indiano Brahmagupta escreveu o que é reconhecido como a primeira descrição escrita da aritmética de zero: quando o zero é adicionado a um número ou subtraído de um número, o número permanece inalterado e um número multiplicado por zero se torna zero. Esta invenção hindu tem uma forte base filosófica, pois só poderia surgir em um local acostumado com o princípio do vazio, que é central no budismo.

Os hindus passaram a representar as quantidades utilizando-se os próprios algarismos (0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9) e o princípio posicional, sem a utilização do ábaco. Os numerais ganharam independência e passaram de elemento mecânico para elemento racional. É desta forma que a escrita numérica e o sistema decimal consegue, com apenas dez símbolos, escrever todos os números que o cérebro humano pode contar ou imaginar.

O zero se espalhou lentamente pelo Oriente Médio antes de chegar à Europa. O matemático italiano Leonardo Fibonacci (1170-1250) foi o responsável pela divulgação do chamado sistema numérico hindu-arábico e pela popularização dos algarismos hindo-arábicos na Europa.

Não é exagero dizer que o zero ajudou na busca pela quantificação que se desenvolveu na Europa com os relógios mecânicos, os mapas de precisão geométrica, contabilidade com partidas dobradas, notações algébricas, partituras musicais exatas, pintura em perspectiva, enfim, mensuração do mundo. De certa forma, a renascença, as grandes navegações e a modernidade tecnocientífica só foram possíveis após a invenção e a difusão do zero.

Segundo Crosby, especialmente em um curto período de 50 anos, entre os anos de 1275 e 1325, os europeus ocidentais experimentaram uma mudança ímpar na mentalidade que precedeu e foi fundamental para os avanços na matemática, nas artes, nas ciências e no desenvolvimento tecnológico, que nos faz presumir “que as épocas realmente têm um Zeitgeist (espírito de época), previsível ou até mesmo inevitável” (CROSBY, 1999, p.24).

Na modernidade urbano-industrial, a utilização do zero explodiu. O Plano Cartesiano, que foi criado no século XVII na Europa, por René Descartes (1596-1650), é formado por dois eixos perpendiculares: um horizontal e outro vertical que se cruzam no ponto zero das coordenadas. Também neste século surgiu todo um novo campo da matemática que depende do zero: o cálculo. O que Isaac Newton (1643-1727) e Gottfried Leibniz (1646-1716) descobriram quando inventaram o cálculo é que calcular uma inclinação em um único ponto envolve ficar ainda mais perto, mais perto e mais perto, mas nunca na verdade dividindo por zero. Todos os processos infinitos, em matemática, giram em torno da noção de zero.

Séculos depois o sistema numérico mudou, mas a importância do zero aumentou. A revolução digital que é a base da Revolução 4.0 tem como base o código binário, que é um sistema de codificação onde todos os valores são representados por 0 e 1. Também representam a ideia de cheio e vazio ou ligado e desligado. Quando está ligado, está na posição 1 e quando está desligado, está na posição 0. O mundo digital gira em torno de apenas dois números: O e 1. O sistema binário superou o sistema decimal na era digital e se tornou o “Zeitgeist” da pós-modernidade.

O zero é nada e é tudo ao mesmo tempo: se somado é nada, se multiplicado representa todos os números e muda qualquer valor ao mudar de posição. A matemática luminosa funciona como a luz que se propaga no vácuo e sobrepuja a escuridão. O que a ciência mostrou claramente é que quando trabalhamos com a noção de vazio (nada), acabamos encontrando algo e representando tudo o que existe no universo, pois todas as coisas são impermanentes, interconectadas e interdependentes.

 

José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

 

Referências:

KAPLAN, Robert. O nada que existe – Uma história natural do zero. Rocco, 2001

CROSBY, Alfred W. A mensuração da realidade: a quantificação e a sociedade ocidental 1250-1600. São Paulo: Editora UNESP, 1999

Marcus du Sautoy. Como a Índia revolucionou a matemática séculos antes do Ocidente, BBC, “A História da Matemática”, 09/03/2019 https://www.bbc.com/portuguese/geral-47487130

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 06/05/2019

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