Não somos tutelados, temos parceiros que contribuem para a nossa autonomia, dizem representantes dos povos Deni e Kanamari
Por Lígia Apel, com informações de Chantelle Teixeira, Francisco Amaral e Raimundo Francisco.
Autonomia e independência na elaboração de três documentos e na organização de uma manifestação com a presença de, aproximadamente, 150 pessoas na aldeia Flexal, município de Itamarati (AM), para reivindicar que a Saúde Indígena não seja municipalizada. Esse foi o resultado da 3ª etapa da Oficina Político-jurídica realizada na 2ª semana do mês de abril, que reuniu representantes dos povos Deni e Kanamari das aldeias São João, Flexal e Santa Luzia da Terra Indígena Kanamari do Médio Juruá, e das aldeias Itaúba, Boiador, Morada Nova e Terra Nova, da Terra Indígena Deni.
As Oficinas Político-jurídicas são atividades do projeto “Garantindo a defesa de direitos e a cidadania dos povos indígenas do médio rio Solimões e afluentes”, realizado pela Cáritas da Prelazia de Tefé e Conselho Indigenista Missionário (CIMI-Tefé), com apoio da União Europeia e Agência Católica para o Desenvolvimento Internacional (CAFOD). Seu objetivo é contribuir com o fortalecimento das capacidades e conhecimentos indígenas para que, de forma autônoma e independente, possam incidir politicamente junto aos órgãos governamentais na defesa de seus direitos ao território, cultura e formas de vida.
Desde 2017, as oficinas são realizadas nos municípios da área de abrangência do projeto: Tefé e Alvarães, Cararuari, Itamarati, Japurá e Maraã, com o objetivo de ampliar os conhecimentos jurídicos em relação aos seus direitos sociais, civis, políticos e humanos assegurados na legislação brasileira, especialmente a Constituição Federal de 1988, e nos acordos internacionais que o Brasil é signatário, como por exemplo, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Documentos elaborados e encaminhados
Em Itamarati, nesta 3ª e última etapa das Oficinas, os participantes Kanamari e Deni partiram para a prática. Elaboraram de próprio punho três documentos:
1. Solicitando a renovação da demarcação dos limites da Terra Indígena Kanamari do Médio Rio Juruá e reivindicando materiais e equipamentos para percorrerem os limites da área fiscalizando o território, já que os órgãos responsáveis pela fiscalização e proteção da área não o fazem. Esse documento foi encaminhado para a FUNAI em Brasília, e para a Procuradoria da República no Estado do Amazonas.
2. Petição solicitando informações sobre as ações do Plano Distrital de Saúde Indígena em vigência, do Distrito Sanitário Especial Indígena do Médio Rio Solimões e Afluentes (DSEI-MRSA), para que possam compreender os procedimentos em saúde que lhes são atribuídos. A Petição foi encaminhada para a Coordenação do DSEI-MRSA. Ter conhecimento do Plano de Ação na Saúde é um direito dos povos indígenas amparado pelos incisos XXXIII e XXXIV do artigo 5ª da Constituição Federal, que consagram que todo e qualquer cidadão tem o direito de solicitar informações e certidões de órgãos públicos, bem como pela Lei 12.527/2011, que dá acesso à informação que regulamenta este direito.
3. E um documento específico dirigido ao Ministro de Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para que não recue da decisão tomada junto ao movimento indígena de manter a Secretaria de Saúde Indígena (SESAI). “A criação da SESAI foi uma conquista do movimento indígena para a construção de uma política nacional de saúde indígena que respeite nossas especificidades e chegue até nossas aldeias”, diz o documento, que também relata a precarização do atendimento à saúde no município de Itamarati: “Não há médico e sequer há a visita deste profissional às comunidades que sempre têm de se deslocar, com transporte próprio, pois a prefeitura também não disponibiliza veículos para a remoção de pacientes, ao hospital do município para receber atendimento médico. Das aldeias Deni e Kanamari, localizadas mais distantes da sede do município, o tempo de viagem pode chegar a quase três dias em canoa que é nosso transporte próprio. Nossos doentes acabariam falecendo nesse trajeto”. Esses e outros motivos embasam o documento mostrando a inviabilidade da municipalização da saúde indígena, anexando-a na Secretaria de Atenção Básica, como pretendia o Ministro.
Uma Marcha para continuar mobilizados
Ao final do 4º dia, como forma mais contundente de reivindicar a manutenção da SESAI, os moradores da aldeia Flexal e as lideranças das outras aldeias participantes da Oficina promoveram a Marcha pela SESAI.
Trajeto, cantorias, cartazes, adereços e pinturas corporais, organização das pessoas que queriam dar seu depoimento e outras necessidades organizativas para a manifestação foram providenciadas pelas lideranças Kanamari. Participaram da Marcha, aproximadamente, 150 pessoas.
Caminharam pela aldeia, cantando, reivindicando seu direito à política pública de saúde indígena com Secretaria específica, exigindo a permanência da SESAI e toda sua estrutura, inclusive melhorada, para atendimento diferenciado e específico. Afirmaram que vão continuar mobilizados, “para que o ministro não volte atrás em sua palavra”, disse Umada Kuniva Deni, liderança e conselheiro de saúde distrital.
A capacidade está fortalecida
Ao contrário dos argumentos que o atual governo usa para persuadir as lideranças indígenas, dizendo que “as ONGs tutelam os índios”, os participantes das Oficinas Político-jurídicas realizadas pelo projeto de Cáritas e CIMI Tefé, afirmam que os conhecimentos adquiridos fortaleceram sua autonomia e capacidade de reivindicação pelos direitos assegurados na Constituição Federal. As pessoas e instituições que contribuem com a ampliação e melhorias dos conhecimentos indígenas, trazendo informações e promovendo processos educativos são parceiros na conquista do protagonismo indígena. É o que refletem os depoimentos dos indígenas que participaram das atividades do projeto, em especial das Oficinas.
Para Pha´Ava Hava Deni, presidente da Associação do Povo Deni do rio Xeruã (Aspodex), a satisfação pelos aprendizados foi garantida: “o projeto me deixa muito contente porque eu tive muito aprendizado sobre direitos nas oficinas. Agora eu sei o que são direitos civis, políticos e direitos sociais”, afirmou o Deni, lembrando que em seu grupo de trabalho durante a Oficina, viram que as leis são feitas para assegurar os direitos conquistados: “Sabemos o que a Constituição de 1988 e a Convenção 169 da OIT nos assegura. Todos têm direitos iguais, mas como indígenas temos leis específicas porque somos grupos diferentes dentro da sociedade brasileira. Somos povos originários, estávamos aqui antes dos portugueses chegarem”.
O presidente da Associação do Povo Tâkuna do Rio Xeruã (ASPOTAX), Manoel da Silva Gomes, mais conhecido como Pima, lembrando as discussões do seu grupo de trabalho e os conhecimentos adquiridos durante a oficina, disse que “os Direitos Humanos, Direitos Fundamentais, Direito Civis e Políticos são muito importantes para garantir a cidadania das pessoas”, e afirmou que aprendeu sobre direitos e cidadania nas oficinas: “graças às oficinas que aprendemos tudo isso. Sabia que a gente tinha direito, mas não sabia como exigir, nem por onde começar a exigir. Quando íamos tirar documentos, as pessoas que estavam atendendo mandavam esperar e a gente ficava calado, esperando uma vida toda e, muitas vezes, nem era atendido. Agora sabemos que temos que ser tratados com os mesmos direitos que os não indígenas”, e continua: “essa oficina de formação veio na hora certa trazer instrumentos que vamos usar para exigir dessas pessoas os nossos direitos”.
Reforçando o depoimento de Manoel, o conselheiro de saúde distrital, Umada Kuniva Deni, disse que “a oficina trouxe conhecimentos que vamos por em prática para defender nossos direitos frente às pessoas que só querem nos prejudicar”. Umada também fez referência às políticas indigenistas do atual governo: “estão destruindo o que conquistamos. Mas agora sabemos o que é um Estado de Direitos, um Estado Democrático, como é a Organização Político Administrativa brasileira, como funciona e o que faz o Poder Judiciário, os Projetos de Lei que os parlamentares apresentam, como a PEC 215, o Poder Executivo e as responsabilidades do poder público. Agora sabemos o que cobrar e de quem cobrar”.
Tom Antônio Alexandre Kanamari, vice-presidente da ASPOTAX, deu o seu depoimento com mais irreverência, mas com a mesma certeza: “antes dessas oficinas nós éramos que nem cego, alguém tinha que nos guiar. Mas, agora, sabemos como nos defender e exigir nossos Direitos”.
A ressignificação da luta indígena como um dos resultados
Para a equipe de Cáritas e CIMI Tefé, as Oficinas alcançaram seus objetivos, disse Raimundo Francisco, educador do projeto na região do rio Xeruã: “para nós já é uma certeza de que demos nossa contribuição. Eles sabem seus direitos e sabem lutar por eles”, falou emocionado ao presenciar e participar da Marcha pela SESAI organizada pela liderança Kanamari. “Vamos ainda contribuir com a divulgação das suas ações e reivindicações. Vamos ajudar a ecoar a voz desses povos. São eles que moram nas aldeias. São eles que sabem o que é melhor para suas vidas”.
Na opinião da assessora jurídica do projeto que ministrou as Oficinas, Chantelle Teixeira, “há ressignificação da luta indígena depois das ações do projeto, especialmente após a realização das Oficinas”. A advogada percebe que “além das oficinas se configurarem como espaços de formação e de aumento de capacidades e troca de sabedorias, conhecimentos e informações, elas também foram momentos de formação de alianças, de aproximação e de ressignificação da política indígena local e do próprio movimento indígena”.
Chantelle comemora ao dizer que “hoje, é visível nas comunidades, nas aldeias contempladas pelo projeto, a mudança nas dinâmicas de relação e de construção de pautas coletivas”, e afirma que a capacidade adquirida de elaboração e encaminhamento dos documentos e a iniciativa de organizar a Marcha pela SESAI comprovam a capacidade de realizar suas ações com autonomia e, “claro, são resultados visíveis e positivos das oficinas. Os objetivos de autonomia e capacidade fortalecida foram alcançados”.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 29/04/2019
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Nada vi sobre escolas, educação e trabalho, coisas que evoluem e dignificam o ser humano;
Cultura faz-se como os Gaúchos com seus CTG’s e tantas outras forma culturais pelo Brasil.