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A privatização da água nas hidrelétricas brasileiras, artigo de Flávio José Rocha

artigo

A privatização da água nas hidrelétricas brasileiras

Flávio José Rocha1

[EcoDebate] Estamos vivendo uma retomada radical dos anos noventa quando o governo de Fernando Henrique Cardoso promoveu as privatizações das estatais (a exemplo da Vale), a abertura do capital da Petrobras e tantas outros atos feitos com a promessa de melhora da situação do país. O avanço positivo alardeado pelo então presidente FHC não chegou e o país perdeu parte do seu patrimônio junto com as riquezas naturais. Aos mais novos, aconselho que pesquisem o que foi feito com o dinheiro das privatizações.

As nossas estatais não funcionam a contento, muito pelo contrário. Todos nós sabemos que há muito o que aprimorar nas empresas administradas pelo governo e que a corrupção e a má gestão são problemas sérios, independente do espectro político que assume o poder em Brasília. No entanto, não é vendendo-as que se resolverão os seus entraves. Ao serem repassadas às multinacionais continuarão as mesmas dificuldades (os escândalos da Lava Jato mostraram que o mundo empresarial privado é também muito corrupto), com os preços dos seus produtos mais altos, o desemprego maior e a perda da riqueza construída com os impostos dos brasileiros e das brasileiras ao longo das últimas décadas.

Caminha-se a passos largos para a venda do que resta do setor hidrelétrico estatal com o atual governo. Privatizar este setor é o mesmo que privatizar a nossa riqueza hídrica. As hidrelétricas têm a gestão sobre a vazão dos rios onde estão localizadas, logo as suas águas estão sobre o seu comando. Se este poder estiver a cargo de uma empresa privada, isso configura influência desmedida com interesses de mercado sobre as águas brasileiras utilizadas por milhões de pessoas.

Vale refletir porque se constrói tantas hidrelétricas no Brasil. Muitas das nossas barragens foram construídas durante a ditadura civil-militar de forma impositiva2. Milhares de pessoas tiveram que ser removidas de suas casas e outras tantas morreram durante as suas construções. Tanto sofrimento foi consequência da união entre as multinacionais do setor e a ditadura.

Estudiosos deste tema afirmam que grande parte da energia produzida no nosso país vai para a indústria pesada, principalmente a siderurgia.  Segundo o economista Joan Martinez Alier (2007, p. 180), “A eletricidade de Tucuruí é vendida a pouco mais de um centavo de dólar por kWh para as fundições de alumínio. Em outras palavras, isso significa que o Brasil subvencionou o Japão e outros países importadores.” Essa indústria é grande consumidora de energia e os países ricos preferem deixar os seus passivos ambientais com as nações que ainda estão submetidas aos interesses do mercado internacional.

O rio barrado paga o seu preço pela hidrelétrica nele localizada. Com o controle das comportas, o rio passa a ter uma vazão inconstante e suas margens enfrentam períodos de seca e inundação repentinas. Todos os seres vivos dependentes do rio passam a estar sujeitos aos gestores da vazão que colocam em primeiro lugar a produção da hidroeletricidade. Privatização pode resultar na privação da água para muitas pessoas que dela dependem. Outras consequências do barramento são3:

-Espécies de peixes desaparecem ou diminuem em número;

-Fuga dos animais do seu habitat natural e a consequente perda da biodiversidade;

-A madeira que apodrece no fundo das barragens emite gazes que aumentarão o efeito estufa;

-O alagamento de grandes áreas com a água da barragem causa a perda de ecossistemas;

-A possibilidade de tremores de terras4 na área das barragens;

-Os sedimentos são depositados no fundo da barragem e não conseguem ir rio abaixo;

-Perda na qualidade da água;

-Grande perda da água pela evapotranspiração;5

-Problemas na economia local que é dependente da vazão natural do rio.

Nas últimas décadas milhares as represas foram construídas em nosso planeta, causando enormes impactos socioambientais. É tão grave o problema que existem movimentos sociais que nasceram por casa dele, a exemplo do Movimento dos Atingindo por Barragens –MAB. Grupos similares existem em várias outras partes do planeta, já que o problema se repete em outros países. Estes movimentos sociais são rotulados como setores contrários ao “desenvolvimento” recebendo retaliação por parte do Estado. O surgimento destes grupos se dá, entre outros motivos por causa do descolamento forçado das populações locais que gera, entre outras coisas, a perda de laços comunitários. Outra grave consequência é a perda de monumentos históricos e da riqueza das paisagens naturais .6 Além disso, lugares de grande importância histórica e/ou sagrados para as comunidades passam a não mais existir por serem tomados pelas águas das hidrelétricas.       

Uma das justificativas para a construção de novas hidrelétricas é a necessidade do aumento de produção de energia para a industrialização. No entanto, é necessário se perguntar se vale o preço pago com todas as perdas ou se há outras alternativas. Segundo o geógrafo Walter Costa Ribeiro, (2008, p. 51), “Uma queda d´água natural pode ser usada para produzir energia. Porém, a escolha de grandes projetos, que acabam causando impactos em larga escala, tem sido preferida.” Há algumas soluções para a diminuição destas grandes construções como as hidrelétricas de pequeno porte para suprir as necessidades de pequenas comunidades, a repotencialinzando das turbinas de algumas hidrelétricas mais antigas e o investimento  em outras formas de produção de energia como a solar, a biomassa e a eólica. São possibilidades que podem dar outro rumo a matriz energética brasileira e não causar tantos danos a milhares de vidas que, quase sempre, só encontram o Estado brasileiro quando é para lhes causar prejuízos.7

Referências

ALIER, Joan Martinez. O Ecologismo dos Pobres. Rio de Janeiro: Contexto. 2007.

MCCULLY, Patrick. Silenced rivers: the ecology and politics of large dams. New York. 2001.

Porto-Gonçalves, Carlos Walter. O Desafio Ambiental. Rio de Janeiro: Record. 2007.

RIBEIRO, Walter Costa. Geografia política da água. São Paulo: Annablume. 2008.

SILVA, Flávio José Rocha da. Hidrelétricas e modelo de desenvolvimento. In Revista Cidadania e meio Ambiente. N. 36. Ano VI. 2011. p. 18-20.

TRIERVEILER, Marco Antônio; COSTA, Gilberto Cervinski Luiz Dalla; ZEM, Eduardo. Energia a Serviço da Exploração Capitalista. In Direitos Humanos no Brasil: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. 2004.

1 Flávio José Rocha é doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e Pós-doutorando no PROCAM/IEE-USP. Administra a página OPA-Observatório da Privatização da Água, no Facebook no link https://www.facebook.com/OPA-Observat%C3%B3rio-da-Privatiza%C3%A7%C3%A3o-da-%C3%81gua-852140801528639/.

3 Vários outros impactos são descritos no livro Silenced rivers: the ecology and politics of large dams (McCULLY, 2001).

4 Segundo matéria da National Geographic, “167 terremotos foram desencadeados pelo que o relatório chama de represamento de reservatórios de água ou construção de barragens. Esses são, de longe, os mais perigosos.”. Veja no link https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/2017/10/estudo-comprova-que-atividades-humanas-causam-terremotos-mortais.

5Matéria da Folha de São Paulo afirma que a evaporação das águas armazenadas nas hidrelétricas brasileiras está em segundo lugar na perda de água no Brasil, atrás apenas da irrigação do agronegócio industrial. Leia em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/03/hidreletricas-gastam-4-vezes-mais-agua-que-todo-o-consumo-humano-do pais.shtml?fbclid=IwAR3RoJZqzJJ5e5mDkSUFSQUtkMTW6Q1QkTQ_KdbFUUxirm9e5ohosWCWTjY

6 A Barragem de Itaipu, por exemplo, deixou submersa o conjunto de cachoeiras conhecido como Salto de Sete Quedas, considerada a maior cachoeira em volume de água do mundo. Seu fim foi declamado nos versos do poema Adeus a Sete Quedes de Carlos Drummond de Andrade.

2 thoughts on “A privatização da água nas hidrelétricas brasileiras, artigo de Flávio José Rocha

  • Me congratulo com o autor pela clareza e amplitude de seus argumentos. Porém, com todo respeito, quero ponderar (contribuir) em relação aos seguintes aspectos:

    1º. Está comprovado que o Estado Brasileiro, enquanto administrador de bens e serviços públicos, é péssimo administrador, é lento, é esbanjador, é negligente e é corrupto. Assim, quanto maior for o tamanho do Estado, maior o tamanho dessas bandalheiras e dos desvios, que, no final das contas, acabam acarretando sofrimento e dor aos usuários (consumidores) que pagam e mantêm esse sistema vicioso e viciado. Provavelmente por isso, que nossa Ordem Constitucional (arts. 175 e 176 CF-1988) prevê e permite a bem da Administração Pública, que o Poder Público, na forma legal, utilize de instrumentos de gestão compartilhada, tais como: concessão, permissão, parcerias públicas-privadas, enfim, para que empresas privadas (daí o derivado privatização) possam atuar na explotação de determinada atividade econômica, no entanto, submetidas aos critérios qualitativos de interesse público; ou seja, de modo à atender com excelência à satisfação do usuário-consumidor final. Para tanto, o Estado precisa dispor de mecanismos próprios (autônomos) de comando e controle, por exemplo, agências reguladoras e normativas, articuladas a órgãos de fiscalização e proteção ao patrimônio público e ao direito do consumidor, visando ao combate e à correção dos desvios de conduta e de recursos do sistema, e por fim assegurar a excelência do serviço prestado à coletividade. Nós temos isso? Temos. Está funcionando bem? Não. O que está faltando pra ficar excelente, como manda a Constituição do País? Aí é uma outra discussão que não cabe aqui e agora prosseguir.

    2º. O termo privatização ficou meio ou todo demonizado, a partir do governo FHC (1994 – 2002), eu acho isso meio injusto, quanto a forma, pois o que fora feito foi dentro da norma constitucional, não há o que contestar; quanto ao conteúdo eu não meto minha mão no fogo. Mas o fato concreto é que todos os governos pós Constituição de 1988 usaram e abusaram desse tipo de gestão compartilhada independente do modelo ideológico de governar. Por exemplo, os governos petistas foram campeões no emprego desse tipo de processo, só que, para fugir do termo privatização, adotava o termo concessão, no que se destacaram comparativamente aos demais.

    3º. Estou de acordo que é muito perigoso e inseguro, sobretudo às pessoas que vivem e dependem das águas, que ao mesmo tempo, também, movimentam as turbinas das hidroelétricas, localizadas em bacias hidrográficas em diversas partes do País. Esta preocupação tem tudo a ver com fragilidades, e agora, com flexibilidades, atinentes ao processo de licenciamento ambiental da atividade. Sendo assim, torna-se premente que o Estado e o Poder Público endureçam cada vez mais, ao invés de afrouxar, no processo de avaliação de impacto ambiental, e por conseguinte, no competente licenciamento ambiental desse tipo de atividade.
    Além disso, torna-se necessário e urgente, por parte do Poder Público, o aporte de mais investimentos, na geração e distribuição de fontes alternativas de energia elétrica, para atender as diferentes demandas de crescimento do País, que precisa se desenvolver.

    Obrigado pela oportunidade.

  • Que pode ser acrescentado ao brilhante comentário do Ricardo Luiz? Apenas uma questão de caráter técnico.
    Flávio lembra os graves impactos ambientais produzidos pelos grandes reservatórios de água.
    Isso chamou atenção das empresas projetistas de hidrelétricas, que passaram a adotar o modelo de fio d’água, em que os reservatórios são muito menores.

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