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Artigo

Do rural às localidades; das ruralidades ao enfrentamento do capital, artigo de Julio Cesar Pereira Monerat

 

artigo

 

Do rural às localidades; das ruralidades ao enfrentamento do capital

Julio Cesar Pereira Monerat

Professor do IF Sudeste MG – Campus Muriaé

Doutorando em Serviço Social – UERJ

 

[EcoDebate] Todo mundo tem uma ideia do que é o mundo “rural” na cabeça. Essas ideias certamente são muito variadas e podem se ter graus diferentes de profundidade, indo do senso comum até o estudioso do tema. Profundidade maior, no entanto, não garante convergência de sentido, já também entre especialistas do tema o rural pode ser definido de múltiplas formas – algumas delas até contraditórias entre si. Sem desconhecer o risco que isso implica, partimos do senso comum para quem, grosso modo, o rural é caracterizado em oposição ao urbano, que se expressa na dicotomia campo-cidade.

Daí que na definição de rural sejam privilegiados aspectos como proximidade à natureza, produção agropecuária, um modo de vida tradicional e um certo atraso. É preciso não perder de vista que generalizamos bastante aqui essa ideia de rural, mas também não é difícil verificar que, apesar disso, ela é pode ser encontrada tanto em um papo informal quanto em publicidades de produtos que, vindos “do rural”, apresentam-se com imagens desse “rural ideal” compartilhado por grande parte da população.

Essa definição genérica do rural também pode ser encontrada em estudiosos do tema, ainda que envolvidas em um elevado grau de elaboração, o que, ainda assim, não as isenta de um processo conceitual que primeiro estabelece um conceito de rural para, em seguida, tentar identifica-lo na prática ou na pesquisa. Ou seja, do senso comum aos especialistas, em grande parte das vezes a definição de rural é estabelecida previamente, sendo carregada de conceitos (ou preconceitos) que acabam por impedir visualizar o rural realmente existente – ou melhor, como veremos, os rurais existentes.

Mas essa definição prévia não é uma exclusividade da ideia de rural. Outras “instituições” sociais e conceitos sofrem com o mesmo problema. Apenas para exemplificar, esse nosso texto poderia ter começado com: “todo mundo tem uma ideia do que é uma família…” e aí descreveríamos a grande dificuldade efetiva de definir o que é família. Um debate que certamente teria muitas posições, muitas delas até divergentes. O debate sobre a família ainda tem outra semelhança com o debate sobre o rural. É que em certo sentido em ambos existe a intenção ou possibilidade de um desdobramento das conceituações em uma determinada prática. Assim, nesses temas o debate pode se vincular ao estabelecimento de ações políticas, que no caso do rural, também de uma forma bastante genérica, acabam por discutir seu desenvolvimento. Afinal – e aqui até podemos identificar uma coerência -, se o rural genérico é entendido como lugar do atraso, nada mais lógico dentro dessa abordagem que desdobrar seu debate para o chamado “desenvolvimento rural”. Frisemos: dentro dessa abordagem.

Nesse sentido, mais uma vez estamos diante da repetição da dicotomia rural-urbano, porém, enquadrando ambos os polos em uma escala de desenvolvimento, onde à cidade cabe o ponto hierarquicamente superior. Como agravante temos a incorporação a um tema de difícil de caracterização – que é o rural – de outro que também dificilmente conta com consensos, que é o tema do desenvolvimento.

Vinculando desenvolvimento e cidadania, o desenvolvimento rural acaba sendo entendido em muitos casos no dilema de “como levar a cidadania ao mundo rural”. Cidadania essa definida como acesso aos serviços básicos que teoricamente são acessíveis aos habitantes urbanos: saúde, educação, moradia etc. Está claro que esse debate assim posto abre a possibilidade de se discutir a própria cidade – e a cidadania -, já que, na realidade brasileira, tais direitos não são garantidos a grande parte de seus habitantes, o que não nos ajuda muito no desfio de definir o rural e seu desenvolvimento.

Cientes das dificuldades de definição do rural, algumas possibilidades apresentam-se para quem pretende a construção de um conhecimento acadêmico. Por mais paradoxal que seja, a primeira delas obviamente é não tentar definir o rural, escapando pela tangente. Dessa forma, tratamos nosso tema, o rural, ainda que sem defini-lo explicitamente. Além do logro auto imposto que uma posição dessas implica, ela carrega outro grave problema, que é deixar a definição de rural ser feita por quem recebe o conhecimento acadêmico, ou seja, por que nos lê.

Se estivermos corretos naquilo que apresentamos desde o início do texto, ao realizar essa sua própria definição de rural o nosso leitor estará incorrendo no risco de repetir as “definições” de rural cujos problemas já apontamos: o rural previamente definido como contato com a natureza, o atraso etc. Enfim, não é lá muito intelectualmente honesta uma postura assim por parte de quem produz conhecimento acadêmico.

Outra possibilidade é não definir propriamente o rural e estabelecer outra categoria para substituí-lo, como, por, exemplo, o território. Certamente deve ser uma definição de território que não carregue o adjetivo “rural”, pois dessa forma os problemas apenas estariam sendo retomados em outro patamar. Mesmo assim, acreditamos que o problema persistiria com outros elementos. Afinal, definir “território” também não é tarefa fácil, o que pode ser verificado por suas variadíssimas acepções em vigor também do senso comum à academia. Mais do que isso, mesmo que não explicitada, a caracterização de um dado território como rural ou urbano pode acabar traiçoeiramente perpassando o conhecimento produzido, principalmente quando o desdobramento do conhecimento em ações políticas específicas – particularmente aquelas voltadas ao desenvolvimento – que devem necessariamente adequar-se ao contexto local em que serão aplicadas. Ou seja, aqui também as dificuldades permanecem, ainda que seja uma possibilidade.

Certamente que mais fácil seria, finalmente, aceitar o fim do mundo rural, uma tese com muitos defensores. Fim esse que, para variar, também tem fórmulas variadas, mas cujo eixo comum pode ser definido como a decomposição do campesinato.

Assim sendo, o antigo camponês se encontraria diante de uma dupla possibilidade: a) empobrecer-se de tal forma a não mais poder manter-se na condição camponesa e, consequentemente, proletarizar-se no campo ou na cidade e, como segunda opção, b) esse camponês poderia ascender socialmente modernizando-se como agricultor familiar.

A história tem tratado de desmentir a primeira das possibilidades na medida em que o fim inexorável do campesinato não se concretizou, ainda que essa situação tenha sido concretamente vivenciado por muitas famílias camponesas. Com relação à segunda possibilidade é que precisamos ir com calma para sua compreensão.

Afinal, o que seria esse agricultor familiar “moderno”, especialmente no que se contrapõe àquilo que estaria sendo identificado anteriormente como rural? Seria esse um rural “atrasado” em contraposição à modernidade do agricultor familiar? Voltamos às interpretações marcadas pela linearidade do pensamento? Estamos andando em círculos?

Um necessário cuidado a se tomar nesse caso é reconhecer que não podemos trocar um modelo idealizado de rural atrasado por outro modernizado. Para isso é preciso reconhecer duas coisas: primeiro que os ideais não existem efetivamente e, em segundo lugar, que a dimensão temporal não nos permite “congelar” qualquer das definições de rural. Ou seja, o que é rural hoje tem que necessariamente ser diferente do que já fora há algum tempo atrás. As relações que são estabelecidas, sejam com outros rurais, sejam com a cidade são sempre perpassadas pela temporalidade. Nesse entendimento estamos tão somente chamando atenção para a temporalidade cuja dinâmica integra: a) o tempo das coexistências, ou seja, o campo em que se dão as múltiplas relações entre os sujeitos sociais no presente; e b) o tempo histórico, que é aquele que liga o presente ao passado e também a um futuro (SAQUET, 2011).

A consequência dessa preocupação com a temporalidade nos previne contra uma possível “novidade” de um “novo rural”. Explico melhor: diante das modificações verificáveis no rural no tempo presente, há autores que defendem que estejamos diante de um “novo” mundo rural ou de uma nova ruralidade. Ora, só fica caracterizando com “novo” quem desconhece que a vida é permanente devir, movimento, colocação do novo a cada momento. O novo sempre vem. O tempo todo. Há ainda aquelas interpretações que identificam esse novo rural como uma emergência, no sentido daquilo que não se referencia a nada do tenha havido antes.

Ora, a temporalidade tal qual entendemos aqui é justamente esse complexo resultado dos que já foram e que, por terem se relacionado nos tempos idos com outros que também já foram, são hoje diferentes do eram, como também o são aqueles com quem hoje eles se relacionam. Enfim, simplesmente é preciso não desconhecer a historicidade do rural. Um exemplo de uma novidade nem um pouco nova é identificar a pluriatividade como fenômeno tão somente do tempo presente, desconhecendo o passado pluriativo dos camponeses. Para aprofundamento dessas temáticas discutidas nesse parágrafo, verificar: CARNEIRO (1998; 2008); VEIGA (2006); WANDERLEY (2000).

Se por um lado é bastante fácil concordar em reconhecer a importância da dinâmica do tempo histórico (a letra “b” do parágrafo mais acima) e que, portanto o rural de hoje será necessariamente diferente do rural de ontem, é preciso estar atento ao que chamamos de tempo das coexistências (a letra “a” do mesmo parágrafo), que é justamente o tempo das relações no presente. O que nos leva ao desafio de definir quem são esses sujeitos sociais que se relacionam entre si em um determinado presente.

Elemento indispensável para um enfrentamento adequado desse desafio é não “trazer na manga” uma definição prévia desse sujeito a ser identificado. Para isso aquele que pretende conhecer tal sujeito deve ser capaz de perceber a identidade própria desse sujeito. Ou seja, é preciso ouvir o que tal sujeito diz de si próprio. Mas é uma escuta dinâmica que, ao problematizar (FREIRE, 1981) aquela identidade apresentada pelo sujeito, objetiva auscultá-la em profundidade para apreendê-la naquelas dimensões da temporalidade já elencadas. Mais do que isso, para problematizar para verificar suas contradições, posto que são justamente as contradições que inserem os sujeitos sociais em um permanente devir. Contradições internas e externas. E é isso que mantém nosso foco no tempo das coexistências.

Aprofundando um pouco mais podemos verificar que o tempo das coexistências é marcado por uma dimensão espacial. Não um espaço fisicamente demarcado, mas sim um espaço relacional (SAQUET, 2011). Assim sendo, vamos verificando que as coexistências conectam espaços variados e mesmo fisicamente descontínuos. Essa conexão só é possível se existe uma identidade própria que se relaciona com identidades outras. Juntado, portanto, a perspectiva identitária com a espacial, chegamos ao conceito de localidade. Ou seja, localidade é aquela forma identitária do sujeito que se relaciona com outras identidades/localidades em um espaço que é relacional.

O fato de um indivíduo de determinado grupo identitário afastar-se de sua base de espaço físico não o faz perder sua identidade. Ela tão somente passa a estabelecer outras relações que farão parte da história pessoal daquele indivíduo. Quando do retorno desse indivíduo ao espaço físico de origem, haverá a possibilidade de novas conexões. Em ambas as situações estamos diante da complexificação do tempo das coexistências.

Situações mais dramáticas podem ser vivenciadas por determinada localidade quando ela se encontra frente à possibilidade de perda permanente da base material que também faz parte de sua identidade. É que um entendimento relacional do espaço não nos permite esquecer a importância dos elementos materiais que também necessariamente o compõe. Assim é que a perda do espaço físico de um grupo social ameaçado pela construção de grandes projetos, por exemplo, pode constituir-se em um desafio à identidade do grupo, seja fortalecendo-a ou destruindo-a. Enfim, agrupando elementos materiais e simbólicos a localidade é justamente essa identidade que se dá no tempo das coexistências pelo estabelecimento de relações que se dão por meio de redes em um espaço relacional, seja de colaboração ou conflito, perpassado pelo tempo histórico.

Tendo em vista essa ideia de localidade, como podemos voltar a refletir sobre o rural? Basta substituir o termo “rural” por “local”? Não, não se trata de substituição, mas sim do reconhecimento de que as múltiplas localidades carregam diferenças e especificidades, dentre elas aquelas que levam determinados sujeitos sociais a identificarem-se como rurais. Tendo em vista a multiplicidade de identidades rurais, mais adequado é, então, referir-se a ruralidades, abandonando de vez a ideia de um rural ideal previamente definido.

Ao optarmos pelo uso de “ruralidades”, mais do que o reconhecimento de suas diversidades, está implícito o papel do sujeito social estudado em sua própria construção como sujeito. O conhecimento produzido nessa relação entre também diferentes sujeitos sociais – por exemplo a academia e movimento social – reconhece as especificidades de cada um dos sujeitos, mas o faz sem hierarquias, constituindo-se em troca de saberes. Só assim se pode verificar a intimidade empírica de determinada ruralidade.

O entendimento das ruralidades como projeto identitário forjado pelos próprios sujeitos sociais tem rebatimento na ideia de desenvolvimento. É que se as prévias e ideais definições de rural vinham carregadas de um modelo de desenvolvimento específico de modernização, com o reconhecimento do papel dos sujeitos na sua identidade, vem junto o reconhecimento de seus papeis na definição daquilo que eles entendem ou querem como desenvolvimento. Não há possibilidade de “pacotes” e “modelos” a serem assimilados, mas sim construção coletiva de conhecimento e, consequentemente, daquilo que se entende por desenvolvimento.

Paradoxalmente, essa diversidade identitária que o uso da categoria ruralidades no plural nos possibilita aponta também para seu oposto. É que, sem abrir mão da diversidade, movimentos sociais têm buscado elementos comuns que lhes possibilitem, em dadas situações, estabelecer uma identidade comum. Isso se dá não só, mas especialmente, no enfrentamento de situações sociais conflituosas.

Assim é que diferentes identidades camponesas, por exemplo, reforçam elementos comuns e se unem internacionalmente num movimento como a Via Campesina para enfrentar o agronegócio. O que nos leva, enfim, ao necessário recurso à dialética que nos possibilita ver a diversidade e a unidade convivendo contraditória e complexamente.

É também o recurso à dialética que nos possibilita o trânsito entre aquilo que havemos de definir como diferentes escalas narrativas. O abandono das metanarrativas históricas que tornavam opacas ou mesmo invisíveis aquelas múltiplas localidades não pode perder de vista a metanarrativa posta pelo movimento de valorização do capital sob risco de tornar-se uma história em migalhas. Essa metanarrativa da reprodução ampliada do capital atinge de forma diferenciada o rural e o urbano entendidos em suas diversas localidades, mas preservando seu caráter fundamentalmente incontrolável (MÉSZÁROS, 2002) que tende a dominar combinada e contraditoriamente aquelas localidades, articulando-as a seu processo expansivo.

Assim sendo, frente à avassaladora dinâmica do capital de privatização da natureza, dos meios de produção e reprodução da vida e também dos saberes podemos verificar uma “contra-metanarrativa” articulando-se num conjunto unificado de diferentes localidades com o objetivo de resistir coletivamente.

Nem a resistência nem o caráter expansivo do capital são novidades contemporâneas, visto que já se colocavam em polos opostos sujeitos sociais desde os cercamentos dos campos e das leis sobre furto da madeira (BENSAÏD, 2017), dentre outras situações, mas hoje a possibilidade de privatização da natureza e dos saberes a ela relacionados assume proporções absurdas por conta do aparato tecnológico disponível ao capital (PORTO-GONÇALVES, 2012).

É nesse sentido que há uma exigência urgente posta aos que ousam resistir ao avanço do capital: se é certo que as identidades se constituíram tendo por fundamento uma temporalidade histórica elaborada num tempo pretérito, por outro lado há que se considerar que o mero apego saudosista a esse passado identitário não é, por si só, capaz de enfrentar os desafios colocados pelo tempo presente. Ou seja, estamos aqui também diante de um apelo para que a resistência não cometa os erros de um “congelamento” temporal das identidades, mas que, articule o tempo das coexistências – marcado, nesse caso, pelo conflito em andamento – e o tempo histórico, sendo esse em uma perspectiva que não deixe de considerar sua dimensão futura.

Longe de saudosismos identitários, as contradições que se agudizam no tempo presente exigem ousadia para se pensar um futuro para além do capital. Afinal, não se pode perder de vista que é justamente a valorização do capital que, mesmo combinando de forma contraditória diferentes realidades locais, uniformiza toda diferença na troca de mercadorias.

Sendo assim, a produção mercantil é aquele horizonte em que diferentes trabalhos e localidades tornam-se equivalentes, destituindo-se de toda a riqueza e complexidade que possuem em suas diversidades.

Somente a superação da lógica mercantil pode possibilitar o florescimento da plena diversidade. Essa é uma aposta para o futuro.

REFERÊNCIAS

BENSAÏD, Daniel. Os despossuídos: Karl Marx, os ladrões de madeira e o direito dos pobres (Apresentação). In: MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. São Paulo: Boitempo, 2017.

CARNEIRO, Maria José. Ruralidade: novas identidades em construção. Estudos Sociedade e Agricultura, nº 11, out. 1998.

CARNEIRO, Maria José. Rural como categoria de pensamento. Ruris. 02 (01), março 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1981.

MÉSZÁROS, I. Para além do capital – rumo a uma teoria da transição. São Paulo/Campinas: Boitempo/Unicamp, 2002.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A ecologia política na América latina: reapropriação social da natureza e reinvenção dos territórios. R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.9, n.1, p.16-50, Jan./Jul. 2012. (https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/view/1807-1384.2012v9n1p16).

SAQUET, Marco Aurélio. Por uma Geografia das territorialidades e das temporalidades: uma concepção multidimensional voltada para a cooperação e para o desenvolvimento territorial. São Paulo: Outras Expressões, 2011.

VEIGA, José Eli da. Nascimento de outra ruralidade. Estudos Avançados. [online]. 2006, vol.20, n.57, pp. 333-353. ISSN 0103-4014.

WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. A emergência de uma nova ruralidade nas sociedades modernas avançadas: o rural como espaço singular e ator coletivo. Estudos Sociedade e Agricultura. no.15, Out. 2000