Tietê permanece adoecido na região metropolitana devido ao mau planejamento urbano, artigo de Sucena Shkrada Resk
A sensação de déjà-vu é contínua. Entra ano, sai ano, esta é a realidade perversa que vivemos diariamente nas regiões metropolitanas. De um lado, algumas nascentes que resistem, sabe-se lá até quando à pressão humana e, por outro, rios que são engolidos, em diversos trechos de seus percursos, por plásticos e por todos os tipos de resíduos que são recicláveis, além da imensa descarga clandestina de esgotos domésticos e industriais. No estado de São Paulo, o exemplo clássico é do Tietê. Um dos efeitos colaterais do mau planejamento urbano por décadas.
Mas muitos rios em diferentes localidades do país poderiam ser objeto desta reflexão. Só em relação à poluição orgânica, o Atlas Esgotos – Despoluição de Bacias Hidrográficas, da Agência Nacional de Águas (ANA), publicado em 2017, expôs que a maioria dos municípios brasileiros despeja pelo menos 50% do esgoto que produz diretamente em cursos d’água próximos, sem submetê-los a qualquer trabalho de limpeza.
Nascente conservada
No caso do Tietê, o exercício de observação se torna interessante ao ver sua nascente ainda preservada em Salesópolis, a 96 quilômetros da capital. Praticamente escondida sob as rochas e mata, se encontra em uma unidade de conservação – Parque Estadual das Nascentes do Rio Tietê, criado por decreto estadual, em 1988, e inaugurado oficialmente em 1996. Antes havia sido um terreno particular, com atividades pecuárias e carvoeiras. Mas a descoberta da nascente foi feita bem antes, em 1954, pela Sociedade Geográfica Brasileira.
Depois de 20 anos, estive lá novamente, no dia 02 de fevereiro. Foi um momento de significativa contemplação e reflexão sobre estes contrates que se arrastam indefinidamente, principalmente desde as primeiras décadas do século XX. O contraponto no curso das águas do Tietê, em situação de “poluição”, foi destaque recentemente na mídia e flagrada na região do município de Salto, depois das chuvas que aumentaram o nível do rio e carrearam os resíduos despejados irregularmente nas vias .
Responsabilidade compartilhada
Todas essas situações certamente não derivam de geração espontânea. Estamos em 2018 e ainda parece um bicho-de-sete-cabeças falar de responsabilidades compartilhadas, neste contexto, não é? Sim, gestão pública (municipal, estadual e federal), empresas e sociedade civil. O Projeto Tietê foi proposto para sua despoluição na Região Metropolitana do Estado de São Paulo, desde 1992, com financiamento vultoso do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), e está sendo coordenado pela Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp). A sua concepção foi decorrente de mobilização social, que contou também com um abaixo-assinado com mais de 1 milhão e 200 mil assinaturas, ocorrida na capital, com a iniciativa da rádio Eldorado, do Jornal da Tarde e da SOS Mata Atlântica.
Ao longo do processo, é possível observar que avançou em alguns pontos, com coleta e estações de tratamento de esgotos, mas ainda precisa avançar muito no saneamento, pois depende também das ações municipais. Hoje se encontra na terceira etapa, que deve seguir até 2020 e depois iniciar a quarta etapa.
Durante todos estes anos, o cenário que se vê é de que muitos municípios ainda continuam a despejar esgoto clandestinamente no rio. Ao mesmo tempo, há a falta de educação quanto ao consumo consciente e o despejo em grande volume de resíduos que deveriam ser reciclados. Um ciclo vicioso das lacunas do saneamento ambiental, que envolve diretamente a sociedade.
Existe um antagônico retrato do desenvolvimento principalmente na região metropolitana de São Paulo, com mais de 20 milhões de pessoas, que segue na contramão do que seria esperado de um comportamento civilizado nas cidades. Seja sob temporais ou em períodos de estiagem, esse contexto resulta em um Tietê “sufocado”, que está bem longe de seus áureos tempos em que ainda era totalmente sinuoso (não retificado em seu curso), onde antepassados nadavam, pescavam, andavam de barco, participavam de provas aquáticas e no qual, o ecossistema fluía livre.
Até quando será possível vislumbrar nascentes com água insípida, inodora e incolor, como vi em Salesópolis? A sensação é quase de êxtase e com licença poética para recobrar a inspirada letra da música “Planeta Água”, de Guilherme Arantes, não é? Sem pecar pelo excesso de romantismo. Mas vale repetir o questionamento – até quando? Uma série de pressões vem de todos os lados, acrescentando às fontes poluidoras, os agrotóxicos utilizados em cultivos próximos das águas, em alguns municípios.
O rio carece, em muitos trechos, da falta de matas ciliares, e de florestas nativas. O próprio parque é resultado de regeneração após exploração carvoeira que havia na área anteriormente e se transformou em UC por pressão da sociedade e decisão de uma política pública. Mas não é suficiente. O município também apresenta simultaneamente áreas de reflorestamento com espécies exóticas, devido ao mercado de papel e celulose regional, e carece de mais áreas nativas.
Facetas da poluição
As diferentes facetas da poluição hídrica resultam na “morte” de partes do Tietê. Exagero? Não. Em julho passado, o que se via, era a carga de espuma, retrato da poluição, por exemplo, na mesma Salto e na região de Cabreúva. Em outubro, uma “lama negra”, provavelmente decorrente da abertura de comportas de usinas, como foi destacado em noticiário à época. Mais recentemente o “mar de plásticos”. Os resultados dos comprometimentos físico, químico e biológico são comprovados por análises técnicas.
Onde o rio está morto
Parece redundância, mas falar a respeito dessas situações se repete em relação aos anos e décadas anteriores. Em 2018, o relatório Observando o Tietê, da Fundação SOS Mata Atlântica, expôs que a mancha de poluição era de 122 quilômetros, em sua extensão, entre Itaquaquecetuba e Cabreúva. Isso quer dizer 10,6% dos seus 1.150 quilômetros.
O monitoramento foi feito nas bacias hidrográficas do Alto e Médio Tietê e sub-bacias dos rios Sorocaba, Piracicaba, Capivari e Jundiaí, no período de setembro de 2017 a agosto de 2018. O Tietê deságua no rio Paraná, no município de Itapura (divisa entre São Paulo e Mato Grosso do Sul). Em 2010, esta mancha era de 243 quilômetros. Houve um decréscimo, mas ainda falta muito para melhorar, não é?
Mais um dado a refletir: toda poluição gerada nos 39 municípios da bacia hidrográfica do Alto Tietê, chega a 612 toneladas de Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO)/ dia (dos 62 que compreendem toda extensão do rio). Daí é possível entender por que não é possível ver peixes ou outros tipos de vida nestes trechos. Como resistir a tanto esgoto? Em 63,4% dos 112 pontos de coleta, a condição de água estava regular, segundo o estudo.
Segundo o relatório, a qualidade de água boa foi mantida em 4 pontos de coleta: dois localizados no rio Tietê, nos municípios de Salesópolis e Biritiba-Mirim, em área de manancial e os outros 2 em afluente do rio Caulim e em nascente afluente da represa Billings, no parque Shangrilá, ambas na Capital paulista.
Esse conjunto de dados demonstra que o rio não sairá desta condição, se continuarmos a perpetuar este mesmo modelo de desenvolvimento às avessas nas regiões metropolitanas. Quem ganha com um Tietê morto?
* Sucena Shkrada Resk é jornalista, formada há 27 anos, pela PUC-SP, com especializações lato sensu em Meio Ambiente e Sociedade e em Política Internacional, pela FESPSP, e autora do Blog Cidadãos do Mundo – jornalista Sucena Shkrada Resk (https://www.cidadaosdomundo.webnode.com), desde 2007, voltado às áreas de cidadania, socioambientalismo e sustentabilidade.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 26/02/2019
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Sucena, parabéns pelo artigo.
Você falou na nascente do Tietê. Eu vou falar no Tietê perto de Barra Bonita, em que o rio se torna polo de atração turística.
Quando passeei de barco pelo Tietê no ano passado, mal pude acreditar. O rio está uma beleza. A população de Barra Bonita não joga lixo nele. Entre na Internet e veja as fotos.
A pesquisadora da Universidade de Stanford, na Califórnia, Newsha Ajami visitou São Paulo durante a crise hídrica que assolou a cidade em 2014. Ao ver o Tietê cheio e o povo passando falta de água, ela desabafou:
– Há um rio passando na cidade e vocês estão sem água?
DA NECESSIDADE DE PROTEÇÃO DOS CORPOS D’ÀGUA URBANOS, EM TODO TORRITÓRIO BRASILEIRO, CONTRA LANÇAMENTO DE LIXO E ESGOTO.
É urgentemente necessário que sejam criadas e postas em prática, com todo rigor, leis que PROTEJAM OS CORPOS D’ÁGUA URBANOS EM TODO TERRITÓRIO BRASILEIRO, determinando afastamento mínimo de 10,00 m, dependendo da largura (em caso de rios e riachos) e da extensão (em caso de lagos e lagoas); determinando, inclusive, a arborização das margens desses corpos. Também é necessário que essas leis de proteção dos corpos d’água proíbam construção de edificações com fachadas posteriores voltadas para qualquer corpo d’água.
AS LEIS DE PROTEÇÃO DOS CORPOS D’ÁGUA URBANOS devem ser adotadas para as novas ocupações urbanas e, na medida do possível, para fazer as correções das ocupações preexistentes.
A adoção das recomendações acima apresentadas promoverá a arborização dos aglomerados urbanos, a melhoria da qualidade das águas e do clima e, por consequência, a saúde das pessoas e dos animais, e, também, contribuirá para o abastecimento hídrico dos aglomerados.
NOTA: sou Arquiteto e Urbanista.
Valdeci, entendo sua ideia, mas não concordo em proibir a construção de edifícios com fachadas sejam anteriores, sejam posteriores, que voltadas para qualquer corpo de água.
Isso inclui proibição de criar edifícios com janelas voltadas para o mar?
Não creio que seja uma boa ideia.
Prezado Paulo Afonso,
No comentário que fiz ao artigo em foco, e que se encontra posterior a dois comentários seus, os quais considero importantes, declarei que “sou Arquiteto e Urbanista”, com a finalidade de deixar patente para os leitores do Portal EcoDebate tratar-se de abordagem técnica. Como não tenho conhecimento de sua formação profissional e/ou área de atuação, encontro-me diante de grande dificuldade de argumentar quanto à sua declaração de que discorda da proposta por mim apresentada, de que devem ser criadas leis proibindo a construção de edificações com fachadas posteriores voltadas para algum corpo d’água, e me pergunta se minha proposta significa impedimento de, nas edificações próximas à orla marítima, haver janela(s) com vista para o oceano.
Respondendo sua pergunta, digo que o objetivo da proposta que apresentei é, exatamente, o oposto, é evitar que os corpos d’água sejam tratados como entes desprezíveis, e, como consequência, ‘dando as costas para eles, e neles lançando lixo e esgoto’. Concluo o presente comentário esperançoso de que a minha resposta à sua pergunta possa levar você a concordar com a proposta em apreço. Abraços.